Mantendo a virgindade

17 de janeiro de 2018 § 13 Comentários

Artigo para O Estado de S. Paulo de 17/1/2018

O Secretário da Previdência Social, Marcelo Caetano disse ao Valor do fim-de-semana que são 29,8 milhões os aposentados do INSS mas que se a reforma for aprovada nos termos a que está reduzida apenas 9,5% – entre eles o grosso daquela fatia do funcionalismo federal que segue o padrão salarial de Wall Street – “teriam a sua renda afetada em mais de 1%”. A regra de transição é escandalosamente lenta para o tamanho do incêndio que se propõe amainar. A idade mínima de 65 anos para homens e 62 para mulheres só começaria a se alterar a partir de 2020 e só estaria valendo plenamente em 2038. Quase nenhum dos privilegiados vivos (posto que só a “nobreza” que tem 100% dos proventos da ativa realmente se aposenta no limite de idade de hoje) seria afetado. E, por consequência, nenhum miseravel também. Permaneceria praticamente intacto do começo ao fim desse caminho, portanto, o vasto favelão nacional cuja raiz é diretamente irrigada por essa sangria desatada.

Mas esse pormenor não diminui um milímetro a intransigência da nossa privilegiatura. “Sacrifício” e “contribuição” para o esforço de salvação nacional são palavras que não constam dos dicionários do Planalto Central mas esses 1% num prazo de 20 anos não se enquadram nessas categorias. A questão, aqui, não é de perda de qualidade de vida nem muito menos de sarcifício. É de perda de virgindade. É a criação do precedente que os aterroriza. Ceder a migalha que for da montanha de “direitos adquiridos” empilhados em cima da qual se refestela a fera pode expor o tigre de papel que devora o Brasil como o que é.

Vai que o país acorda!

De todos os aposentados do Brasil, lembra o secretário, 60% recebem 1 salário mínimo. Os “direitos” dessa ralé e de todo o resto da sub-ralé que, multiplicada por 29,8 milhões de vezes custa o que custam as 980 mil “excelências” para a previdência, podem ser alterados por lei ordinária ou até por Medida Provisória. A presente reforma só tem de passar por Projeto de Emenda Constitucional (PEC), que requer quorum especial, para poder incluir esse milhãozinho de funcionários cujos direitos previdenciários estão inscritos nessa constituição que só por exclusão é a “dos Miseráveis” deste país onde, em pleno Terceiro Milênio nada, das prisões para cima, é igual para nobres e para plebeus.

Mesmo assim, fato é fato, até o providencial evento estrelado pela dupla Janot & Joésley da véspera da votação de 18 de maio de 2017, a reforma da previdência, por todas as contagens, ia passar no Congresso Nacional. E isso depois que uma maioria de deputados e senadores, um por um declinando seu nome e suas razões diante das câmeras da rede de televisão que os ameaçava de fuzilamento sumário, votou a favor da reforma trabalhista no primeiro horário nobre sem novela de que ha memória neste país. E o mesmo estava marcado para acontecer com a previdenciária. É tão negra a alma que se requer para continuar indiferente à chuva de balas perdidas e balas acertadas que implica não abrir mão desse 1% que já nem no Congresso Nacional, onde todos fazem jus aos privilégios visados, é possivel encontrá-las em numero suficiente.

Junto com o outro poder eleito, o Legislativo é sempre quem acaba recebendo toda a carga da cobrança pela desgraça nacional. Mas relevadas as figuras teratológicas que lhe fazem a fama e considerada apenas e tão somente a sequência dos acontecimentos desde a aprovação no voto da cláusula de barreira (1995) depois também derrubada pelo STF (2006), não se sustenta a acusação de que é ele quem barra as reformas sem as quais o Brasil não sai dessa sua anacrônica idade média. Sistematicamente, tem havido quem faça e quem desfaça para impedir todo e qualquer avanço institucional. E eles estão sempre nos mesmos lugares.

O fato presente em todas as mentes mas que os brasileiros dificilmente trazem à boca ainda é que nós estamos em plena vigência de uma forma mal camuflada do “excesso de democracia” bolivariano onde a vontade expressa do povo pode ser anulada e cassados os seus representantes eleitos ao arrepio da lei ao bel prazer de meia duzia de tiranetes. A terceirização das culpas para as próprias vitimas, o povo que “não sabe votar” basicamente porque não permitem que mudem as regras que o obrigam a votar como vota, só se torna possivel pelo viés sistemático com que trata esses acontecimentos a parcela das mídias de massa mais claramente embarcada nesse jogo de interesses inconfessáveis.

Alimentar qualquer ilusão a esta altura é suicídio. A festejada “recuperação da economia” não passa, por enquanto, de especulação em cima de uma expectativa de mudança cuja probabilidade real foi mais exatamente medida pela desclassificação do Brasil pela Standard & Poors que pela fervura da bolsa de valores, de resto doentia nesse paroxismo cheirando a Baile da Ilha Fiscal em que anda. Cinco estados não conseguiram pagar o 13º salário de 2017 e a maioria dos demais está na ponta da prancha para o mergulho. A pré-estréia do que vem vindo foi dada pelas polícias sem soldo deixando o crime rolar. Está caindo a ultima barreira antes do nada enquanto os “camisas pardas” do PT e profundezas são abertamente atiçados contra a parte sã do poder judiciário que, de Curitiba para cima, se tem mantido, por assim dizer, em claro “desafio atitudinal” à outra.

O Brasil só se começará a curar quando armar os eleitores dos instrumentos necessários para fazer com que finalmente se imponha a regra da maioria. A receita é conhecida: despartidarização das eleições municipais e eleições primárias para a remoção dos velhos caciques políticos, iniciativa para a apropriação da pauta nacional por quem tem o direito legitimo de defini-la, recall e referendo para impor a vontade dos eleitores aos seus representantes eleitos. Mas para que se torne possível sonhar com esse futuro é preciso antes impor a lei a quem a desafia com a força que se mostrar necessária e restabelecer os limites dos tres poderes, sem o que naufragamos já.

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§ 13 Respostas para Mantendo a virgindade

  • luizleitao disse:

    FLM, eu sempre pensei nisso que você expôs aqui: de que adianta uma reforma previdenciária só passar a valer em 2020 ou 2038? Precisamos de mais 20 anos para mudar esse perverso estado de coisas?

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  • luizleitao disse:

    Republicou isso em Luiz Leitão Estúdio de Textose comentado:
    Mais um esclarecedor artigo de Fernão Lara Mesquita

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  • Saulo Mundim Lenza disse:

    Pois é Fernão, por enquanto nenhum privilegiado mostrou a urgência de acabar com as aposentadorias e benefícios dos caciques políticos, judicais, comissionados, etc.
    Reforma da previdência dos cidadãos “comuns” não vai resolver nada.
    Os municípios, estados e a União vão quebrar, pois, chegará o dia em que, simplesmente não haverá dinheiro para pagar os privilégiados e não privilegiados.
    Parabéns pelo seu excelente texto.

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  • Fernão
    Acabamos de publicar em uma tese visando a organização formal e o uso metódico da racionalidade humana. Talvez se viabilize um referencial metodológico que possibilite o acordo entre mentes livres e independentes e possa ser superada a atual situação onde cada um pensa segundo lhe permite a particular experiência de vida. Teus leitores podem se interessar.

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  • Paulo Repinaldo disse:

    Reforma apenas para os barnabés e os políticos. Pronto, garanto que vai sobrar dinheiro.

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  • flm disse:

    Aí discordo, Paulo.
    Faz sentido pra todo mundo a mudança da idade mínima de acordo com a realidade da expectativa de vida de hoje. Ignora-la é sacar antecipadamente da conta dos seus filhos…
    O que, sim, é inadmissível desde 1776, são regras diferentes para pessoas iguais (nos e os donos do estado).
    Todo mundo tem de caminhar em direção à realidade e o ponto é que “eles” estão muito mais distantes dela do que nós e, portanto, deveriam ser constrangidos a fazer-lo numa velocidade maior para que, ainda que com 1/4 de milênio de atraso em relação ao resto da humanidade, nos encontremos todos dentro dos limites da democracia, da justiça e da decência ali adiante.

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    • flm disse:

      E lembrando ainda que entre barnabés e marajás vai uma enorme distância o que justifica diferentes velocidades para as diferentes prateleiras. Menos para nos da 3a classe, um pouco mais para os barnabés na “executiva” e muito mais para os marajás da 1a classe nec, plus, ultra.
      É o que é justo e razoável fazer

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  • crdecastro disse:

    Fernão

    Enviado do tablet Samsung.

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  • Mora disse:

    Tivesse essa realidade a mesma divulgação na mídia em geral, com a mesma ênfase que se dá à febre amarela, seria a forma dos brasileiros começarem a tomar pé da situação. Mas a mídia em geral também “mama” no status quo atual. É lamentável que o artigo em tela não tenha a penetração desejável, atingindo, tão somente, um número ínfimo de leitores, antenados e up to date com a situação atual, que, na maioria das vezes tem ao seu redor interlocutores alheios aos problemas e pouco interessados ao que acontece. Só vai restar para o Sr. LFM, no futuro, um prêmio em reconhecimento pela visão que tem. Até lá, pode estar sendo chamado de “chato” e “arranjador de problemas”. Aliás, acho que até vale para o Brasil os comentários do Sr. Trump.

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  • Nelson disse:

    Para corrigir o rombo das aposentadorias absurdas do serviço público, bastaria aplicar o fator previdenciário a todos eles.

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  • Márcia disse:

    Depois que o conto das 1001 noites do pré-sal mixou, todo o esforço intelectual das larvas estatais deve estar voltado para a produção de um novo milagre de arrecadação capaz de exorcizar a reforma previdenciária e continuar bancando suas assombrosas “conquistas sociais”. Algo me diz que a panacéia da vez é a legalização das drogas porque o lobby pró se intensificou muito depois que a questão da Previdência ressurgiu no horizonte. Tenho visto liberais aos montes surgindo do nada, todos muito empenhados em defender sua liberdade individual de impor as drogas aos outros sem consultá-los nas urnas _ detalhe que costumam omitir matreiramente quando papagueiam o “milagre econômico” da cannabis nos EUA.
    Uma maneira fácil e rápida de fazer dinheiro de imposto brotar da terra, com clientela certa e fidelizada. A salvação da lavoura estatal. Já para os pobres, apenas mais um fenemê a atropelar suas vidas atribuladas.
    Tomara que seja apenas um mau pressentimento.

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  • vpepe disse:

    Não é a Previdência que deve ser Reformada,é o Brasil.A sociedade que emergiu apos o Regime Militar,lá em suas entranhas foi gestada,e desta gestação nasceu essa Criatura que hoje explora os pobres em favor dos mais ricos,dos espertalhões de toda a sorte.
    Somos um povo doente,sequer uma sociedade temos.As castas que já existiam permaneceram,o que emergiu é muito pior.A Previdência pode ser sim usada como exemplo.Antes de 1988 o limite de aposentadoria pelo INSS era de 20 S.M.,foi reduzida para 10.reduziram ainda mais.Os trabalhadores que serão aposentados por ai não são contra.Contra são os Golpistas,e egoístas.Castas de Funcionalismo,e políticos) que transformaram-se em Reis do Brasil com a Constituição Cidadã.Que do cidadão só suga o Sangue,e o suor..As lágrimas eles fingem que não enxergam.As minhas as suas,as nossas.

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  • marcos disse:

    Pais acorda? Leia o que aconteceu em JF e veja como é básico acabar com as castas e municipalizar fortemente! https://tribunademinas.com.br/noticias/cultura/09-02-2018/shows-sao-interrompidos-para-folia-terminar-as-21h.html MAM

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