Nas ferrovias a tragédia e a esperança do Brasil
20 de dezembro de 2021 § 16 Comentários

A história das nossas ferrovias é uma síntese perfeita da saga do Brasil Real em sua luta em “busca da felicidade” idêntica à de todo o resto da humanidade mandada que emergiu da longa noite feudal para a alvorada democrática, e o Brasil Oficial mandante para impedi-lo de alcançá-la à custa da perda de seus privilégios ancestrais.
São Paulo só é o que é hoje porque, por uma dessas conjunções de acasos que só a vida real é capaz de produzir, foi uma exceção no padrão nacional de bloqueio político à ferroviarização.
A República nunca “viveu” entre nós. Com exceção de Prudente de Moraes — e a bem da verdade também de Pedro II que, se não podia ser chamado “republicano”, por acidente de nascimento, estava mais sintonizado que quase todos os brasileiros de seu tempo na modernidade por traz desse conceito — o Brasil jamais teve outro presidente que tivesse noção, para além do “lero”, do que realmente significa a expressão “república democrática”.

Ruy Barbosa foi outro dos que justificam esse “quase”. Primeiro ministro da Fazenda depois do 15 de novembro, mais em função do prestígio que lhe sobrava e faltava a Deodoro que por afinidades eletivas com ele, Ruy teve a oportunidade de baixar, a 17 de janeiro de 1890, os quatro decretos que constituíram a “Lei Áurea” da iniciativa privada no Brasil, antes de ser defenestrado em 1891 como o estranho no ninho que era entre os positivistas que deram o golpe em nome da república.
“As companhias ou sociedades anônimas, seja civil ou comercial o seu objetivo, podem estabelecer-se sem autorização do governo” rezava a peça que transformava num direito do cidadão investir sua poupança num empreendimento privado reconhecido pela lei, expediente até então proibido.
É uma fórmula que guarda não poucas semelhanças com o texto do novo marco legal das ferrovias aprovado terça-feira passada na Câmara dos Deputados (PLS 261/18 e MP 1065/21 de Bolsonaro). Ela extingue o regime de “concessão do governo” como o único permitido e dispensa licitações para que uma empresa privada construa e opere ferrovias. Agora basta uma autorização para um projeto privado tornar-se realidade. Ou seja, não é mais a política(gem) que estabelece qual a ferrovia necessária ou possível para o Brasil, são os brasileiros que precisam usá-las ou faze-las render que decidem isso, o que faz toda a diferença do mundo.

Desde Ruy têm havido, porém, mais esforços para fazer regredir que para fazer avançar o desenho das instituições do Brasil que ele vislumbrou. O PSOL, na melhor tradição dos seus precursores, tentou enfiar na votação de terça-feira um destaque, felizmente rejeitado por 243 a 88, proibindo a construção de ferrovias por autorização em vez de concessão. Talvez ainda consiga derrotar o conjunto dos brasileiros e seus representantes legitimamente eleitos com uma decisão monocrática de algum dos 5as colunas enfiados no STF a pedido de alguma ONG de uma noruega qualquer, pois no Brasil, como sabemos, nem mesmo o passado é estável. Mas por enquanto estamos diante de uma nova janela de oportunidade que não se abre ha quase 200 anos no que tange a transporte ferroviário.
O primeiro trem circulou pela Terra em 27 de setembro de 1825 entre Stockton e Darlington (51 km), na Inglaterra. Os Estados Unidos rodaram sobre sua primeira linha já em 1827, entre Baltimore e Ohio. De ululante que era o impacto dessa revolução, tão cedo quanto 1828 dá-se a primeira tentativa da iniciativa privada brasileira de importar a novidade. Mas ela é sabotada até a morte pelo imperador Pedro I.
Era o começo de uma longa sucessão de batalhas perdidas…

Com a expansão do café pela Noroeste de São Paulo travada pela inviabilidade de custo de transporte até o porto do Rio de Janeiro, um grupo de empreendedores paulistas cotiza-se, em 1839, e encomenda a ninguém menos que Robert Stephenson, engenheiro inglês filho de George Stephenson, o inventor da locomotiva em pessoa, um projeto de ferrovia ligando o planalto paulista ao porto de Santos.
Mas a iniciativa é julgada “prematura” e, novamente, proibida pelo imperador.
De negativa em negativa um Brasil parado à espera nas cercanias do porto do Rio de Janeiro só teria seu marco inicial nas ferrovias com o projeto de Mauá, já sob Pedro II, quando o Império evoluiu do peremptório “não” para um “talvez” em matéria de ferrovias, para 14 escassos km de trilhos entre o fundo da Baia da Guanabara e Raiz da Serra, embaixo de Petrópolis, um projeto de valor apenas simbólico de vitória contra o Estado. Ele se envolveu em nove projetos ferroviários diferentes, todos amputados e mutilados, tendo os sobreviventes sucesso sempre relativo. Com mais algumas iniciativas igualmente modestas no Rio e em Recife, Mauá, de cuja fama e riqueza sua majestade “tinha ciúmes”, só vai conseguir retomar o projeto da Santos-Jundiaí e trazer os trilhos dessa cidade no interior paulista até o pé da serra em 1859, altura em que os Estados Unidos já tinham assentado quase 100 mil km de trilhos.

Mas brasileiro não desiste nunca. Sem pejo de pagar pelo melhor, como todo empreendedor do seu calibre, Mauá contrata em Londres Daniel Makinson Fox, construtor de ferrovias nas encostas dos Pireneus, para executar a transposição dos 800 acidentados metros de desnível da Serra do Mar, projeto então muito além da capacidade da engenharia brasileira. Mas o problema técnico era, como sempre, o de menos. Somente em 1867 estaria vencida a gincana político/corrupto/burocrática e pronta a ferrovia que até hoje é a que vence a Serra do Mar.
Nesse meio tempo um Pedro II mais maduro nomeia Joaquim Saldanha Marinho, pernambucano que já governara Minas Gerais entre 1865 e 1867 presidente da Província de São Paulo (em 1867 e 1868). Advogado, jornalista, sociólogo, maçon e político, esse grande brasileiro sobre cuja biografia faltam estudos mais aprofundados, aproveitando o momento conturbado do esgotamento financeiro do império pela Guerra do Paraguai (1864 a 1870), concentra-se numa campanha pela extensão da The São Paulo Railway Company Ltd., que seus proprietários ingleses, sem segurança jurídica, recusavam-se a levar além de Jundiaí, para a criação, em moldes estritamente capitalistas como nunca antes tinham sido permitidos no Brasil, do que viria a se tornar a Companhia Paulista de Estradas de Ferro.

Saldanha promovia nos teatros de São Paulo e Campinas, um centro tradicional de tropeiros que conheciam o Brasil que ainda não tinha estradas, noitadas de apresentação do projeto e venda de ações da futura ferrovia que integraria a Noroeste Paulista à economia brasileira. E ela avança: em 1875 até Rio Claro, 76 até Descalvado, mais umas tantas batalhas burocráticas e vai a Ribeirão…
Os efeitos são explosivos, como se poderá constatar nos livros revolucionários de Jorge Caldeira que, rompendo a patrulha pseudo “marxista” que dominou a historiografia brasileira ao longo de todo o século 20, contam com números, personagens e pormenores fascinantes “Uma História do Brasil com Empreendedores”, a história de “Julio Mesquita e seu Tempo” que é também uma história da economia de São Paulo em seu melhor momento, e a “História da Riqueza no Brasil”, que sintetiza e extende suas obras anteriores.
Esses efeitos, que perduraram por todo o século 20, moldaram e consolidaram a vocação empreendedora de São Paulo. Assim como a ferroviarização sem peias nem limites, possível num ambiente genuinamente democrático a serviço dos interesses da maioria, fizeram dos Estados Unidos o que são hoje — em 1890 já tinham 129.774 km de ferrovias; hoje chegaram a 226.600 — São Paulo decolou para um destino melhor que o do resto do Brasil.

Conforme avançava a sucessão de falcatruas e golpes da era republicana e aumentava o inchaço do monstro corporativo-corrupto dos “donos do Estado” brasileiro o país foi, de enguiço em enguiço, jogando fora projetos como a ligação da Mantiqueira com o porto de S. Sebastião ainda no século 19 e inúmeros outros no 20, até cair na estatização do pouco que a iniciativa privada tinha feito de ferrovias em 1946 e daí em diante, de brejo em brejo, nos exíguos 29.755 km de trilhos que nos restam hoje, boa parte dos quais desativados, enquanto a China constrói 20 mil km de trens ultra-rápidos a cada quatro anos.
Sobre a falta que isso fez e faz, estão aí os 14 projetos envolvendo 8 mil km já contratados diante do mero anúncio da presente liberação. A ver até onde conseguiremos chegar neste país em que, se fosse vivo, Ruy Barbosa muito provavelmente estaria preso por “anti-republicano” pela polícia política de Alexandre de Moraes — que prova mais conclusiva do que ter Pedro II dito dele, no exílio, que “Nas trevas que caíram sobre o Brasil, a única luz que alumia, no fundo da nave, é o talento de Ruy Barbosa“? — se os pessóis e esseteefes deixarem.
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Parabéns Fernão pelo excelente trabalho de pesquisa. Oxalá seja dessa vez!
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Parabéns. Muito bom artigo
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Um paralelo bem apanhado. Chega a ser curioso como as coisas são enrustidas em nosso país. Sempre a presença de gente jogando contra. É como se o “deitado em berço esplêndido” configurasse inescapável destino. Urucubaca? Mau olhado? Mandinga?
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Nada.
Ausência de democracia.
Sistema falsificado.
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Ótimo, obrigada. É a eterna história do Brasil.
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Enquanto isso, a Itapemirim congestiona aeroportos.
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São Paulo também foi precursor na implantação do Metrô (linha Norte-Sul) na década de 70 do século passado. Eu era então funcionário da CMSP e depois que deixei a companhia continuei atuando na área de consultoria metro-ferroviária, até os dias de hoje. Faço parte de grupos de whats-app de profissionais que atuam na área e hoje o sentimento é de que parece que voltaremos a caminhar. Pelo menos na área de transporte de carga e quiçá, algum dia, de passageiros também. Ponto para o atual governo federal, não só na questão dos trilhos mas na infraestrutura de transportes como um todo (portos).
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Parabéns pelo excelente artigo, Fernão. O que é de se espantar é que parece que por aqui não há correção de erros. Quase duzentos anos para se constatar que ferrovias são necessárias. Não sei a história em si de todo o processo, mas depois de prontas as ferrovias foram abandonadas. Onde estavam os políticos “pensantes” que permitiram esse completo abandono? Não existiram. Sou dessa região da Mogiana e por aqui desmontaram tudo. Nem o trajeto foi preservado. Sobraram ainda os fantásticos prédios em estilo inglês muito bem construídos, mas um restabelecimento do trajeto é impossível. Se tivessem conservado o trajeto, uma modernização seria até fácil. Acho que nós, dessa região antes pujante, mas que ficou “velha” não tão cedo veremos ferrovias que agora estão sendo construídas em regiões novas. Destaca-se que a completa falta de visão e racionalidade de nossa classe política é uma constante – completamente vazia. Principalmente agora, onde se fala tanto em economia ESG, note-se que ferrovias por si só já atendem essa “modernidade” há mais de 200 anos. Não se tem notícia de nenhum país no mundo que deixaram um negócio pronto, em funcionamento ser completamente abandonado como aqui. Todos valorizaram e preservaram suas ferrovias.
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Não é bem assim, Sonia.
Essas marchas à ré são mais a regra que a exceção. Basta olhar os nossos vizinhos e mais além. A exceção são os países onde o povo realmente tomou o poder, vulgo democracia real, aquela em que ele manda nos politicos com os instrumentos do recall, da iniciativa e do referendo de leis, em vez do contrário.
Neles o Sistema serve o povo em vez de explora-lo. O resto, com variações no nível de brutalidade e decadência é que é a regra…
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Adoro transporte sobre trilhos. Ainda hoje andei de CPTM – Agua Branca – Luz. Limpo, eficiente, funcional. Agora vai até o ABC sem baldeação. Padrão de metrô, o que destoa são os vendedores gritando.
Se para passageiros over ou underground, tanto faz, já é maravilhoso, para carga é mandatório !
Rodar este Brasil em cima de caminhões chega a ser patético, com as estradas que temos fora do estado de S.Paulo.
Quem sabe a minha terceira ou quarta geração veja trilhos novos neste país…….
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O trem é o melhor modal de transporte, carga e passageiros, baixo índice de acidentes, baixo custo de implantação, etc. Aí surge a questão de qual o motivo ter sido sabotado no Brasil, simples, quando trabalhado por capitais privados, a contribuição ao jabacule da privilegiatura é infinitamente menor que os outros modais, pena Juscelino não estar vivo pra explicar as relações escusas com as montadoras de automóveis. Quando estatal aí fica muito pior, tem funcionário ferroviário federal que vendia trilho por quilo pra sucateiro, ou seja até o nivel E da folha de pagamento participava do butim. Não existe negócio que sobreviva ao ataque das saúvas.
Hoje temos uma notícia, que não será mostrada na Globo e no resto do lixo, onde o ministério da infraestrutura entregou +\- 108 obras que estavam abandonadas e posso afirmar que 95% foram inauguradas. Aqui em SP o ocupante da cadeira de governador não conseguiu entregar nenhuma nova estação de metrô, o Rodoanel está paralisado e mais um monte de obras só recebendo reajustes, afinal é preciso reforçar o caixa pra verba publicitária que foi aumentada e pra campanha do candidato com 0,01% das intenções de voto. Quem dera eu ter um voto distrital pra poder enfiar uns tapas na cara do meu candidato se ele for contra meus interesses e quanto ao STF , o povo, deveria ter o direito de fazer como se faz no futebol de várzea, pega o apito de volta e muda o juiz, afinal esses caras são impostores jurídicos
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Concordo no geral mas não espanque os fatos. A estação Vila Sonia da linha Amarela foi entregue estes dias com N anos de atraso, mas foi. Obra metroviária não é o mesmo que inaugurar ponto de onibus.
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Kkkkk estação Vila Sônia era pra ser usada na Copa, se fizer uma auditoria no contrato vai ter muito ladrão levando dinheiro, principalmente a nova dupla Larapio e Chuchu.
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Pelo amor… Corrija “por traz” por “por trás”, no terceiro parágrafo. Grato!
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Excelente artigo Fernão, parabéns. Resume claramente a dificuldade que nos impõe o sistema político brasileiro que, nunca, analisa os projetos do ponto de vista dos brasileiros mas do quanto dá para tirar de proveito pessoal desta aprovação. Já diziam que este país é muito maior que o buraco e para resolver suas questões basta pararem de roubar. E se além de parar de roubar tomarem medidas liberais, deixarem o povo tomar a iniciativa e trabalhar, vamos longe.
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Muito instrutivo esse artigo, e a critica é merecida quanto ao permanente e já velho vício de nossos políticos de pensarem só em si, nunca no país. Haja vista que essa nova legislação sobre rodovias é uma da poucas iniciativas do governo atual na privatização de estatais. Pena que esforço semelhante não tenha sido feito em outros notórios casos, já bastante divulgados mas nunca efetivados. Em tempo, embora de menor importância, mas para bem da lingua portuguesa:: “eXtende” está correto?
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