Jornalismo, censura e democracia

28 de abril de 2022 § 1 comentário

Esta entrevista foi dada a Rodrigo Romero, da TV Câmara de Jacareí, SP, em meados de março e liberada para republicação no Vespeiro esta semana.

1a Parte

2a Parte

3a Parte

Nas ferrovias a tragédia e a esperança do Brasil

20 de dezembro de 2021 § 16 Comentários

Joaquim Saldanha Marinho

A história das nossas ferrovias é uma síntese perfeita da saga do Brasil Real em sua luta em “busca da felicidade” idêntica à de todo o resto da humanidade mandada que emergiu da longa noite feudal para a alvorada democrática, e o Brasil Oficial mandante para impedi-lo de alcançá-la à custa da perda de seus privilégios ancestrais.

São Paulo só é o que é hoje porque, por uma dessas conjunções de acasos que só a vida real é capaz de produzir, foi uma exceção no padrão nacional de bloqueio político à ferroviarização.

A República nunca “viveu” entre nós. Com exceção de Prudente de Moraes — e a bem da verdade também de Pedro II que, se não podia ser chamado “republicano”, por acidente de nascimento, estava mais sintonizado que quase todos os brasileiros de seu tempo na modernidade por traz desse conceito — o Brasil jamais teve outro presidente que tivesse noção, para além do “lero”, do que realmente significa a expressão “república democrática”.

Ruy Barbosa foi outro dos que justificam esse “quase”. Primeiro ministro da Fazenda depois do 15 de novembro, mais em função do prestígio que lhe sobrava e faltava a Deodoro que por afinidades eletivas com ele, Ruy teve a oportunidade de baixar, a 17 de janeiro de 1890, os quatro decretos que constituíram a “Lei Áurea” da iniciativa privada no Brasil, antes de ser defenestrado em 1891 como o estranho no ninho que era entre os positivistas que deram o golpe em nome da república.

As companhias ou sociedades anônimas, seja civil ou comercial o seu objetivo, podem estabelecer-se sem autorização do governo” rezava a peça que transformava num direito do cidadão investir sua poupança num empreendimento privado reconhecido pela lei, expediente até então proibido.

É uma fórmula que guarda não poucas semelhanças com o texto do novo marco legal das ferrovias aprovado terça-feira passada na Câmara dos Deputados (PLS 261/18 e MP 1065/21 de Bolsonaro). Ela extingue o regime de “concessão do governo” como o único permitido e dispensa licitações para que uma empresa privada construa e opere ferrovias. Agora basta uma autorização para um projeto privado tornar-se realidade. Ou seja, não é mais a política(gem) que estabelece qual a ferrovia necessária ou possível para o Brasil, são os brasileiros que precisam usá-las ou faze-las render que decidem isso, o que faz toda a diferença do mundo.

Desde Ruy têm havido, porém, mais esforços para fazer regredir que para fazer avançar o desenho das instituições do Brasil que ele vislumbrou. O PSOL, na melhor tradição dos seus precursores, tentou enfiar na votação de terça-feira um destaque, felizmente rejeitado por 243 a 88, proibindo a construção de ferrovias por autorização em vez de concessão. Talvez ainda consiga derrotar o conjunto dos brasileiros e seus representantes legitimamente eleitos com uma decisão monocrática de algum dos 5as colunas enfiados no STF a pedido de alguma ONG de uma noruega qualquer, pois no Brasil, como sabemos, nem mesmo o passado é estável. Mas por enquanto estamos diante de uma nova janela de oportunidade que não se abre ha quase 200 anos no que tange a transporte ferroviário.

O primeiro trem circulou pela Terra em 27 de setembro de 1825 entre Stockton e Darlington (51 km), na Inglaterra. Os Estados Unidos rodaram sobre sua primeira linha já em 1827, entre Baltimore e Ohio. De ululante que era o impacto dessa revolução, tão cedo quanto 1828 dá-se a primeira tentativa da iniciativa privada brasileira de importar a novidade. Mas ela é sabotada até a morte pelo imperador Pedro I.

Era o começo de uma longa sucessão de batalhas perdidas…

Com a expansão do café pela Noroeste de São Paulo travada pela inviabilidade de custo de transporte até o porto do Rio de Janeiro, um grupo de empreendedores paulistas cotiza-se, em 1839, e encomenda a ninguém menos que Robert Stephenson, engenheiro inglês filho de George Stephenson, o inventor da locomotiva em pessoa, um projeto de ferrovia ligando o planalto paulista ao porto de Santos.

Mas a iniciativa é julgada “prematura” e, novamente, proibida pelo imperador.

De negativa em negativa um Brasil parado à espera nas cercanias do porto do Rio de Janeiro só teria seu marco inicial nas ferrovias com o projeto de Mauá, já sob Pedro II, quando o Império evoluiu do peremptório “não” para um “talvez” em matéria de ferrovias, para 14 escassos km de trilhos entre o fundo da Baia da Guanabara e Raiz da Serra, embaixo de Petrópolis, um projeto de valor apenas simbólico de vitória contra o Estado. Ele se envolveu em nove projetos ferroviários diferentes, todos amputados e mutilados, tendo os sobreviventes sucesso sempre relativo. Com mais algumas iniciativas igualmente modestas no Rio e em Recife, Mauá, de cuja fama e riqueza sua majestade “tinha ciúmes”, só vai conseguir retomar o projeto da Santos-Jundiaí e trazer os trilhos dessa cidade no interior paulista até o pé da serra em 1859, altura em que os Estados Unidos já tinham assentado quase 100 mil km de trilhos.

Mas brasileiro não desiste nunca. Sem pejo de pagar pelo melhor, como todo empreendedor do seu calibre, Mauá contrata em Londres Daniel Makinson Fox, construtor de ferrovias nas encostas dos Pireneus, para executar a transposição dos 800 acidentados metros de desnível da Serra do Mar, projeto então muito além da capacidade da engenharia brasileira. Mas o problema técnico era, como sempre, o de menos. Somente em 1867 estaria vencida a gincana político/corrupto/burocrática e pronta a ferrovia que até hoje é a que vence a Serra do Mar.

Nesse meio tempo um Pedro II mais maduro nomeia Joaquim Saldanha Marinho, pernambucano que já governara Minas Gerais entre 1865 e 1867 presidente da Província de São Paulo (em 1867 e 1868). Advogado, jornalista, sociólogo, maçon e político, esse grande brasileiro sobre cuja biografia faltam estudos mais aprofundados, aproveitando o momento conturbado do esgotamento financeiro do império pela Guerra do Paraguai (1864 a 1870), concentra-se numa campanha pela extensão da The São Paulo Railway Company Ltd., que seus proprietários ingleses, sem segurança jurídica, recusavam-se a levar além de Jundiaí, para a criação, em moldes estritamente capitalistas como nunca antes tinham sido permitidos no Brasil, do que viria a se tornar a Companhia Paulista de Estradas de Ferro.

Saldanha promovia nos teatros de São Paulo e Campinas, um centro tradicional de tropeiros que conheciam o Brasil que ainda não tinha estradas, noitadas de apresentação do projeto e venda de ações da futura ferrovia que integraria a Noroeste Paulista à economia brasileira. E ela avança: em 1875 até Rio Claro, 76 até Descalvado, mais umas tantas batalhas burocráticas e vai a Ribeirão…

Os efeitos são explosivos, como se poderá constatar nos livros revolucionários de Jorge Caldeira que, rompendo a patrulha pseudo “marxista” que dominou a historiografia brasileira ao longo de todo o século 20, contam com números, personagens e pormenores fascinantes “Uma História do Brasil com Empreendedores, a história de “Julio Mesquita e seu Tempo” que é também uma história da economia de São Paulo em seu melhor momento, e a “História da Riqueza no Brasil”, que sintetiza e extende suas obras anteriores.

Esses efeitos, que perduraram por todo o século 20, moldaram e consolidaram a vocação empreendedora de São Paulo. Assim como a ferroviarização sem peias nem limites, possível num ambiente genuinamente democrático a serviço dos interesses da maioria, fizeram dos Estados Unidos o que são hoje — em 1890 já tinham 129.774 km de ferrovias; hoje chegaram a 226.600 — São Paulo decolou para um destino melhor que o do resto do Brasil.

Conforme avançava a sucessão de falcatruas e golpes da era republicana e aumentava o inchaço do monstro corporativo-corrupto dos “donos do Estado” brasileiro o país foi, de enguiço em enguiço, jogando fora projetos como a ligação da Mantiqueira com o porto de S. Sebastião ainda no século 19 e inúmeros outros no 20, até cair na estatização do pouco que a iniciativa privada tinha feito de ferrovias em 1946 e daí em diante, de brejo em brejo, nos exíguos 29.755 km de trilhos que nos restam hoje, boa parte dos quais desativados, enquanto a China constrói 20 mil km de trens ultra-rápidos a cada quatro anos.

Sobre a falta que isso fez e faz, estão aí os 14 projetos envolvendo 8 mil km já contratados diante do mero anúncio da presente liberação. A ver até onde conseguiremos chegar neste país em que, se fosse vivo, Ruy Barbosa muito provavelmente estaria preso por “anti-republicano” pela polícia política de Alexandre de Moraes — que prova mais conclusiva do que ter Pedro II dito dele, no exílio, que “Nas trevas que caíram sobre o Brasil, a única luz que alumia, no fundo da nave, é o talento de Ruy Barbosa“? — se os pessóis e esseteefes deixarem.

Racismo dublado

8 de dezembro de 2020 § 33 Comentários

Se há controvérsia quanto ao diagnóstico do racismo no Brasil o erro do remédio “de uso tópico” prescrito – as “ações afirmativas” ancoradas no racismo institucionalizado que pune ou premia pessoas segundo a cor da sua pele – é um fato medido.

Toussaint-Louverture, no Haiti de 1791-94, comandou a primeira força na Terra a derrotar Napoleão Bonaparte com a bandeira da liberdade. Mas, sem a democracia e a elevação do nível geral de educação que só a democracia promove o Haiti que ele fundou, depois de 16 governantes depostos ou assassinados nas disputas pelo poder, acabou nas ditaduras ferozes dos Tonton Macoute do “Papa” e do “Baby Doc” e, desde então, vive mergulhado na corrupção generalizada, desde sempre a doença que mais mata no mundo. 

A exploração do homem pelo homem, que levava africanos a entregarem africanos aos traficantes de escravos das Américas, desaguou na exploração de ex-escravos por ex-escravos no país nascido de uma rebelião de escravos.

Em 19 de novembro passado, véspera do “Dia da Consciência Negra”, João Alberto de Freitas, quase negro, é espancado e morto após agredir um segurança quase branco de uma loja do Carrefour em Porto Alegre, e aquela imprensa que não pensa, é pensada – e ultimamente em inglês – sai “dublando” o #Vidas negras importam! que mantinha ha meses engatilhado na garganta à espera de um pretexto.

Dois dias antes João Alberto estivera no mesmo supermercado embriagado e sem máscara. Embora a imprensa não investigue, corre a informação de que a moça a quem se vê nas gravações das câmaras ele se dirigir de forma a provocar a primeira reação dos seguranças é uma velha conhecida. Mas não importa. Ao ser escoltado para fora sem ser tocado, João Alberto acerta um murro na cara de um dos seguranças e … a cena pega fogo …

Essas circunstâncias eliminam a brutalidade que resultou na morte dele? 

Certamente que não. 

Mas descarta liminarmente a hipótese de que a agressão a João Alberto foi desencadeada gratuitamente apenas por ter ele a pele alguns tons mais acima do “branco” que a de seus agressores. 

Tem-se no máximo um homicídio culposo, mas o “jornalismo de dublagem” exige mais. Não conseguiu reproduzir as manifestações de rua que queria desencadear porque o Brasil Real continua muito melhor que suas elites, mas talvez consiga o “homicídio triplamente qualificado” que pode resultar do acovardamento padrão diante desse tipo de pressão que impera hoje entre essas ditas “elites” no Brasil e no mundo, o que não seria mais que uma versão estatizada da Lei de Lynch. Mais um grande feito desta imprensa que, quando “vai às compras” nos Estados Unidos, em vez de importar o voto distrital com recall, os direitos de iniciativa de lei popular, de referendo das leis dos legislativos e de promover eleições periódicas de retenção (ou não) de juizes que são a cura da corrupção e o fim da exploração vil do favelão nacional pelo banditismo estatizado, importa o racismo “raiz”, o ódio entre os sexos e a criminalização do amor.

O Brasil que o “jornalismo de dublagem” está tentando construir é bem pior que o original. Neste, do homem quase negro morto pelos seguranças quase brancos, praticamente não houve brancos durante 389 anos, até começar a imigração dos explorados da Europa do feudalismo, a versão totalitária da privilegiatura sustentada pela força bruta que está aí até hoje e desde sempre tem sido a divisória real entre a humanidade escravizadora e a humanidade escravizada de todas as raças, em todos os tempos e nos quatro cantos da Terra. 

A Nação brasileira mesmo foi forjada pela Campanha Abolicionista, mais uma das verdades que essa imprensa decaída e uma academia doente tentam soterrar em “narrativas” desonestas. O movimento que, dos meados até o final do século 19, mobilizou o país por 40 anos ininterruptos fez o Brasil, pela primeira vez em sua história, reconhecer-se como um todo que tinha a mesma idéia fundamental sobre o que não queria ser. Até então o país não passava de um punhado de vilas quase independentes que mal se conheciam umas às outras, mas que eram pedaços de humanidade que, por seus portos e suas picadas, conseguiam, como têm conseguido sempre os pedaços de humanidade de todos os tempos, manterem-se conectados ao todo … fundamentalmente pela esperança da liberdade.

É em 1850 que se forma no Rio de Janeiro a Sociedade Contra o Tráfico de Africanos de Tavares Bastos, a primeira de centenas, em contato com a British and Foreing Anti-Slavery Society (BASS).

Mas o abolicionismo brasileiro foi mais moderno … e mais cínico que aqueles em que se inspirou. “Se o escravismo estadunidense fora um sistema coeso e desabrido de apelo à desigualdade racial e à retórica religiosa, o nosso foi enrustido” – diz Angela Alonso na conclusão do seu monumental “Flores, Votos e Balas”, uma história da Campanha Abolicionista que o Brasil de hoje faria bem em re-examinar, senão por tudo mais, pela sua surpreendente modernidade tática, que garantiu a penetração do movimento em todas as classes sociais e a mobilização do país inteiro. “Em vez de escravistas de princípio, com legitimação enfática, tivemos escravistas de circunstância: compelidos pela conjuntura a justificar a situação escravista sem defender a instituição em si que, como reconheciam todos, a civilização e a moral condenavam (…) A Câmara e o Senado defendiam a situação escravista mas não a escravidão (…) Ninguém no Brasil combate a emancipação. Porem quer-se um procedimento ‘racional’, prudente, prevenido, não se sacrificando a propriedade atual”…

Pouco mudou, desde então, no Brasil dessa privilegiatura que não larga o osso apesar de ser a primeira a reconhecer a própria iniquidade. Nossos parlamentos nunca representaram nada senão as pessoas sentadas nas suas bancadas. Continuam como sempre – outorgados e não negociados e contratados que foram e continuam a ser os seus poderes por sistemas eleitorais espúrios – não só impermeáveis como fundamentalmente antagônicos ao Brasil Real. São eles a força reacionária que nos mantêm amarrados a um passado revogado em todo o resto do planeta, com exceção de Brasília e seus arredores, e à esta nossa miséria medieval meticulosamente construída e mantida. 

O que mudou mais, de lá para cá, é o posicionamento da imprensa. Na Abolição, de que ela foi um dos motores essenciais, a maior parte da imprensa brasileira estava do lado certo da História.

Por que o Rio ruiu

29 de setembro de 2020 § 73 Comentários

O Rio é o Brasil de amanhã?

Felizmente não…

Quando penso no Rio de Janeiro a imagem que vem-me à cabeça é sempre a de uma criança inocente violentamente abusada pelo pai. O tipo de coisa que deixa marcas que só muita, mas muita “análise” mesmo, pode levar a uma superação. 

Pela primeira e única vez na História uma colônia, virgenzinha ainda, sediou uma capital de império. Foi talvez a corte mais decadente da Europa, a de um dos últimos monarcas absolutistas, que desembarcou na futura Cidade Maravilhosa. 15 mil encostados de um homenzinho balofo, filho de uma louca, Maria I, que tornou-se rei depois que o primogênito d. Jose morreu e a mãe foi declarada incapaz, que fugiram correndo para cá com tudo quanto puderam carregar quando seu povo mais precisava deles na véspera da invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão. Foi essa “a malta” que, em 1808, desembarcou no cais do Valongo de um Rio que era ainda uma aldeia linda, chutando as pessoas para fora de suas casas, confiscando, violentando, corrompendo…

A corte de d. João VI roubou ao Brasil o século 19 das revoluções democráticas. Capital desde 1763, já se reformulara de porto de contato com o mundo de seu tempo em cobrador de impostos que ia bem quando o resto do Brasil ia mal … e vice-versa. Foi esse o alvo da Inconfidência Mineira, a derradeira despedida do Brasil da modernidade política.

A partir de 1808 passa a ser, ele próprio, a metrópole que explorava a colônia. Uma vez instalada aqui, saiu sua majestade vendendo títulos de nobreza a traficantes de escravos e funções do Estado a quem pagasse para explorá-las. Foi com a revolução americana que Tiradentes sonhou mas foi como a sede da corte, da corrupção, do funcionalismo e das estatais que o Rio de Janeiro acordou e evoluiu para a vida real. O balneário de todos os ladrões de sucesso de todos os governos do Brasil. A maior porcentagem de encostados com emprego e sem trabalho. A capital da jogatina de Bêjo Vargas. O paraíso dos aposentados aos cinquenta anos de idade. A pátria da “malandragem” onde trabalho sempre foi “coisa de otário”, “mané” é o ladrão que vai preso e “malandro” o que não se deixa pegar.

E tudo isso potencializado pela memória da escravidão dependurada dos morros.

De repente, juntando Witzel com Bolsonaro, saem os jornalões com uma semana de análises sobre porque o Rio ruiu. Mas quando Bolsonaro entra pela porta de uma redação a racionalidade sai pela janela…

A passagem da capital, com Juscelino, nunca foi a causa do desastre carioca. Foi só mais uma “co-morbidade”. O governo se foi mas a elite do funcionalismo ficou. Chagas Freitas, o único governador do MDB de sua época, apoiava os militares que o partido “combatia”. Brizola foi o primeiro a proibir a subida da polícia aos morros que o STF reedita agora sob o tonitruante silêncio dos jornalões. 

O crime organizado sempre elegeu representantes nos legislativos cariocas. Condecoram milicianos hoje como é praxe desde os tempos dos Reinados, do Império e da Republica. As milícias só inovaram por eleger os próprios milicianos. O governo federal as protege assim como os reis faziam os seus barões negreiros, o jogo do bicho bancava os governadores antes e depois de 1964 e o PT protegia as Farc e suas versões nacionais que só davam acesso aos cabos eleitorais do lulismo aos morros. O PSOL, herdeiro da esquerda da esquerda e fenômeno tipicamente carioca, é ostensivamente ligado ao crime “ideologizado”. Sua base-raiz são os presídios de segurança máxima…

Os artistas e os intelectuais “orgânicos” sempre foram um corolário do absolutismo. Nasceram com ele e fizeram-no crescer desde a primeira universidade lá na Bolonha de 1300. Só continuam onde estão, na era do avião, porque Brasília é intragável, menos para quem vive do contato físico com O Poder.

E agora? O que fazer?

A História, a “análise” das sociedades, e somente a História, poderá proporcionar uma remissão. E a do Rio é freudianamente clara. Ele terá de compreender, passo a passo, como foi que se transformou no que é para curar-se. Mas este é um luxo de sociedades ricas. 

A solução, portanto, é enriquecer. E muito!

Desanimou?

É mais fácil do que parece. A imprensa – e aí falo dos jornalões aos jornalinhos pretensamente mais aguerridos da internet – finge que não entende, mas é mentira. Qualquer sujeito um grau acima da debilidade mental, não precisa nem ter instrução formal, entende que a instituição do voto distrital puro com recall (vale dizer a expulsão sumária de todo ladrão ou mentiroso pego no pulo), mais referendo e iniciativa de fazer e recusar leis vindas de cima, de modo que o povo é quem passa a dizer o que deve ou não ser discutido e votado, entende o poder fulminante que esse sistema tem contra a corrupção. Onde quer que vigore ele acaba com praticamente 100% da roubalheira. E, num país de dimensões continentais como o Brasil, pode ser implantado nos 26 estados e nos 5570 municípios onde se dá a “ladroagem do cotidiano” bem conhecida de cada um de nós. 

Sobra a que se pratica daí para cima, e mesmo assim, sob um nível de fiscalização e poder de decisão dos roubados que torna os ladrões efetivamente tímidos. Com esse sistema aguenta-se até um Donald Trump praticamente sem dor, a não ser para os fanáticos por conversa mole sobre os temas caros à “patrulha ideológica” que custam quantias verdadeiramente risíveis para quem vive sob o tacão de funcionários indemissíveis e seus STF’s de comedores de lagostas com vinhos tetra-campeões por decreto.

A solução para o Rio de Janeiro ver aquelas favelas todas se transformarem em Alfamas e o Brasil sair do brejo passa por aí e não, obviamente, como sabe deus e a torcida do Corinthians, por aumentar o numero de candidatos negros e mulheres fabricados em cima da perna na base de injeções de contribuições do Fundo Partidário arrancadas a força de eleitores que nunca ouviram falar neles antes mas acabarão, na hora de votar, por te-los como únicas opções para mais uma tentativa frustrada de fugir ao cativeiro.

A constituição revelada

21 de julho de 2020 § 18 Comentários

Artigo para O Estado de S. Paulo de 21/7/2020

Falta a Brasília e ao resto dos nossos “chefes” – definição que se opõe à de “líderes” – o incentivo de viver no pesadelo que criam. Como têm o sábio cuidado de isentar-se dele podem admirar sua obra a uma distância sempre segura e dedicar-se sem pressa nenhuma a essa tertúlia silogística na qual temos dado voltas sem fim.

Todo esse conforto assenta na constituição. Na semana passada assisti uma longa entrevista do ministro Carlos Ayres Britto à CNN sobre a “dos Miseráveis” e o modo como o Supremo a tem cavalgado. Devo dar o “disclosure” de que tenho especial simpatia por Ayres Britto. É um sentimento “epidérmico”. Ao contrário da maioria dos personagens do País Oficial, que provocam-me urticária, este não me faz mal à pele. É sereno. Transmite boa fé. Não ficou obscenamente rico. Até quando discordo do que diz, como discordo quase sempre, reconheço em muitas das licenças que toma com a lógica o esforço para baixar a febre deste país doente.

Mas, nem tanto ao mar, nem tanto à terra. O autoritarismo brasileiro, como ele mesmo adverte na entrevista, é absolutamente orgânico. Inconsciente. Por isso e pela condição extrema a que reduziu o país não basta constatar esse “desvio formativo”, é preciso enfrentá-lo.

Dizia o ministro que a constituição brasileira deve ser vista como “uma turbina da cidadania”. Mas a função das constituições não é “turbinar cidadanias”. Não é construí-las segundo uma receita qualquer mas ser dócil ao modo como ela “emanar” dos cidadãos e, para tanto, tratar exclusivamente de cercear o poder do Estado de cerceá-los. Uma constituição, para ser democrática, não pode parecer um mapa minucioso do caminho para um destino determinado, tem de ser um manual de normas de navegação e não entrar jamais em considerações sobre onde se quer chegar com elas.

Disse ainda o ministro que “democracia é o maior legado da constituição”, e que “o nosso sistema foi inspirado no americano”. O problema é que a nossa versão exclui o princípio fundamental da deles: a absoluta fidelidade da representação do País Real no País Oficial e a relação hierárquica de subordinação dos representantes aos representados. Esse princípio materializa-se na precariedade do mandato, sempre sujeito a retomada (recall), e na regra de que mesmo enquanto vigente esse mandato não inclui delegação bastante para dispensar o referendo formal, pelos eleitores, de cada ato que implique mudança substancial – isto é, qualquer nova lei de maior alcance ou, vai sem dizer, alteração constitucional – no contrato originalmente acertado entre as partes. E isso inverte todos os efeitos que o sistema produz daí por diante.

“A Nação nos legou essa maravilhosa constituição. Ela é democrática, civilizada, humanista. Ela é a luz no fim do túnel. Ela é maior que o Estado e maior que o povo”, desmanchou-se afinal o ministro. Mas quem a definiu como tal? Quem lhe atribuiu os poderes que se arroga? Ninguém. Não houve negociação. Não houve anuência do povo e nem ela lhe foi pedida. Não houve contrato-social. 

A constituição brasileira é uma constituição revelada. E não houve sequer a precaução de atribui-la aos deuses como se costumava fazer antigamente…

Não é, portanto, porque o nosso sistema “baseou-se” no americano que o que se passa aqui pode ser analisado como se se passasse nos Estados Unidos. “O STF não faz Direito, o STF interpreta o Direito”, disse Ayres Britto para encerrar. Mas como coadunar essa afirmação com o poder monocrático auto atribuído pelos 11 de alterar casuisticamente o Direito para prender ou para soltar, para nomear ou para desnomear, para confirmar ou para anular os atos constitucionalmente reservados aos poderes eleitos?

Este é mais um dos mistérios sem mistério desta nossa peculiar privilegiatura. Não ha lógica que resista ao privilégio. E no entanto, por mais que o desastre nacional se configure como um desastre e por mais minucioso e completo que o desastre seja, os donos do poder continuam repetindo do Oiapoque ao Chuí, do bico do Acre à Ponta do Seixas, sem que ninguém conteste uma vírgula, que “nossas instituições estão entre as mais avançadas do mundo”. Disso decorre, primeiro, que não ha que buscar remédios fora daqui, vamos debater eternamente nós com nós embora nunca tenha havido uma democracia em português e, segundo, que não ha nada a fazer para mudar as coisas senão trocar o comandante da vez do desastre nacional pois, estando tudo o mais certo e na vanguarda, quem está e vota sempre “errado” é o povo.

A parcela da imprensa que aceita essa tese é parte da doença, não da cura. E as TVs jornalísticas 24/7 dentro dessa categoria põem a coisa em ritmo de metástase. Depois do advento delas qualquer minúcia a respeito da qual, com esforço, possam ser ditas três ou quatro frases pertinentes, passa a ser “narrada” e “analisada” por horas, dias e até semanas a fio. E não ha como faze-lo sem recorrer ao abobrol de múltiplos “especialistas” em assuntos por definição fluidos, mutantes, imprecisos e dialéticos, em geral selecionados dentro da privilegiatura, que vão fornecendo, minuto a minuto, mais tijolos para a nossa Babel.

E aí é osso!

Onde estou?

Você está navegando atualmente a Historia do Brasil categoria em VESPEIRO.