O maior inimigo da democracia

26 de março de 2021 § 16 Comentários

Carrefour compra Big e se torna o 2º do varejo na AL” foi a manchete do Valor de quinta-feira, 25. A transação foi de R$ 7,5 bi e o grupo resultante passa a ter 24% de todo o varejo alimentar do país (em 2019 tinha 16%). Hoje a receita bruta do Carrefour no Brasil é de R$ 74,9 bilhões. Somada à do Big chegará a R$ 100 bilhões (o concorrente, Pão de Açúcar faturou R$ 55,7 bi em 2020).

Há mais de 40 anos transações como esta acontecem todos os dias pelo mundo afora. É quase meio século de recorde sobre recorde de fusões e aquisições de empresas.

Quem ganha com esse processo?

As ações do Carrefour saltaram 12,77% ontem. As dos concorrentes baixaram 4%. Uma parcela dos 3 milhões de brasileiros que investem em bolsa, 1,5% da população, pode ter lucrado. A gestora Advent, de private equity (dinheiro de milionários), multiplicou por quatro o investimento que fez em 2018 quando assumiu o controle do Walmart Brasil, rebatizado Big, por R$ 1,6 bilhão. Levou R$ 6,23 bi na transação. Algum grande escritório de advocacia mordeu um pedaçinho desse bolo para ajeitar o negócio…

O resto do país – todos os fabricantes e compradores de comida, de produtos de limpeza, de insumos para a casa e todos os outros bens essenciais que todos os que continuamos vivos somos obrigados a consumir todos os dias e são vendidos nos supermercados – perde mais uma alternativa de comprador e/ou de fornecedor. São 876 lojas que antes pertenciam ao concorrente que passam a pertencer, agora, ao mesmo dono.

Do Oiapoque ao Chuí o pequeno e o médio agricultores, o pequeno e o médio industriais pagarão integralmente o tanto que o preço for rebaixado para o penúltimo intermediário, agora com 876 compradores de menos para disputar o seu lote. Seu frango, seu porco, sua alface, sua caixa de frutas sairão a preço ainda mais vil. Os trabalhadores de baixa renda, como são os de supermercados, perdem mais uma alternativa de empregador. Mas na banca do novo mega supermercado, quando esses mesmos produtores e trabalhadores se apresentarem com o seu chapéu de consumidores, os preços estarão, como eternamente têm estado, mais altos a cada dia. E todos eles estarão muito mais próximos dos dentes dos “carrefoures” da terra que, mais cedo ou mais tarde, acabarão por engolir suas propriedades. 

Os funcionários do Cade, que têm o poder de aprovar ou não esse negócio, têm o seu voto valorizado. E o “poder de convencimento” desse novo monstro de R$ 100 bilhões de faturamento junto ao regulador legislativo que poderá, um dia, vir a mudar a regra do jogo para algo mais favorável ao consumidor, aumenta violentamente. A mídia, cuja função é transmitir a pressão da maioria sobre esse regulador e vive de propaganda, terá um anunciante a menos e se tornará mais dependente do que sobrou. 

Cada vez menos gente é dona de cada vez mais coisas. A humanidade caminha em velocidade de desastre de volta ao ponto de partida em que o rei, que faz a lei, é o dono de tudo, mas delega uma parte do que é seu à sua corte que se encarrega de manter o populacho com o nariz um milímetro acima da linha d’água e, portanto, facinho de ser mantido sob controle. É um panorama que só mudou de nome com as chamadas “revoluções socialistas”, que agora rebatizam-se outra vez como “capitalismos de estado”. São o de sempre: “reis” vitalícios e suas cortes proprietários de todos os meios de produção e povos inteiros reduzidos a súditos cujo direito à sobrevivência física ou econômica esses reis e seus partidos e religiões “únicas” controlam absolutamente.

“Socialismo” é sinônimo de monopólio, o antípoda da democracia. Os monopólios dos bens de produção só se sustentam com o monopólio do poder e do discurso políticos. “O proletariado”, que cada vez mais é tudo que não é a corte que ele é obrigado a sustentar, é reduzido à obediência na miséria na base da censura e da porrada. Contra a vida, nada mais. Tudo isso está fresco no horizonte. Tudo isto esteve e está acontecendo. O socialismo, proverbialmente, transformou-se exatamente no que acusava o capitalismo de ser.

Morto “o sonho”, só resta como discurso gênero, raça, meio ambiente. O que o ser humano é e não consegue deixar inteiramente de ser de estalo é o que dá pra “cobrar” das democracias. E é preciso gritar ininterruptamente sobre isso porque não ha nada a prometer ou sequer a sugerir sobre o principal: como impedir que continue essa desenfreada deglutição dos muitos pelos poucos.


O único momento na história da humanidade em que essa lógica perversa foi interrompida foi na segunda etapa da terceira tentativa da democracia de caminhar sobre a Terra que mais uma vez ameaça chegar ao fim, quando Theodore Roosevelt, na virada do século 19 para o 20, interrompeu um processo exatamente semelhante a este que se repete hoje e redirecionou a democracia americana para um decidido viés antitruste. 

Pulverizar o poder – o econômico e o político JUNTOS – eis a questão. 

O resultado foi o surgimento da sociedade mais livre, mais rica e menos desigual que a espécie humana jamais constituiu, com reflexos explosivos no desenvolvimento de todas as ciências com força suficiente para projetar toda a espécie humana para níveis de liberdade, afluência e conhecimento jamais sonhados. 

Confrontado com a concorrência desses “capitalismos de estado” proporcionada pela informatização da vida, o Ocidente democrático, em pânico, aceitou a luta nos termos deles – disputar com monopólios criando os próprios monopólios – e suspendeu as proteções antitruste, ponto mais alto da cultura democrática, começando pelas que regulavam e garantiam a diversidade de opinião na industria da informação, para que não houvesse resistência contra esse retrocesso reacionário, na sequência de acontecimentos que descrevi, passo a passo, no artigo “A ameaça da imprensa corporate” de 2005, reproduzido no Vespeiro ( https://vespeiro.com/2009/08/04/a-democracia-vai-sobreviver/).

Monopólios na economia levam ao monopólio  do poder político. Cada vez mais tudo o mais vira carne para moer na defesa de privilégios que só se sustentam com sangue. É esse o inimigo.

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§ 16 Respostas para O maior inimigo da democracia

  • Prezado Senhor
    É exatamente essa a questão muito bem apontada. Descentralizar o poder. Político e econômico.
    Pugno pelo Municipalismo como forma de reorganizar e reaver nossa representatividade .

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  • anajardimbr disse:

    EXCELENTE ARTIGO FERNAO: dia desses eu escrevia para alguns amigos: a luta contra os monopolios e oligopolios do sec 19 se perdeu totalmente no sec 21. Estamos numa situação de total controle pelo poder economico e politico, contra os interesses de liberdade economica e de expressão pelas populações do mundo inteiro. O Brasil é apenas um detalhe desse panorama.

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  • Maria Moraes disse:

    Brilhante!

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  • Herbert Sílvio Augusto Pinho Halbsgut disse:

    Excelente seu artigo Fernão. Quanto a sua lembrança de Theodore Roosevelt penso que ele soube na economia e no poder como dividir o pão para satisfazer as necessidades da sociedade como um todo democrático, fortalecendo o Estado e a Nação norte- americanos. Simples assim, teve vontade política e experiência de estadista para realizar o que se demonstrou urgente para o bem do povo que representava. Carecemos no Brasil de representantes eleitos com essa envergadura.

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  • José Luiz De Sanctis disse:

    Precisamos de outro Theodofe Roosevelt com urgência! Enquanto isso aguardo sentado algum pronunciamento da esquerda.

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  • Sérvulo Corrêa disse:

    A operação deixa o Carrefour como um quase-monopólio no setor de hipermercados. Mas receio que o Fernão esteja pessimista demais uma vez que: 1. O Cade ainda deve examinar a operação; 2. O Setor de alimentação em geral deve faturar umas 3x o total de Carrefour + Big; 3. As pequenas lojas continuam a existir e a concorrência estará assegurada (assim espero).

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  • Emocionante! lindo e triste texto! Me deixou perdido apesar de em quase totalidade tivesse pensado aos trancos e barrancos O que fazer?

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  • Pedro Marcelo Cezar Guimaraes disse:

    O “gado”, a pelo menos trinta anos no Brasil, rumina o farelo do socialusmo globalista Fabiano! Não vale regurgitar e reconsumir os mesmos excrementos, lambendo os beiços!!!!
    G K Chesterton avisará há um século atrás….o caminho não era e não é esse! Ainda há tempo para retroceder do caminho cego do precipício! Refacamos
    nossa escolha! Pela vontade e nasc liberdades individuais de cada cidadão brasileiro consciente e de bem!

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  • Não tenho conhecimento de que em nossa história tenha havido alguma vez desmonopolização de empresas privadas. Por maior que seja o dano social causado pelo monopólio, sai governo, entra governo, e a questão permanece. Foi assim com a JBS, conglomerado cria do PT e rival da Petrobras na distribuição de propinas. O mesmo com a Sadia-Perdigão. E o assunto não se limita às grandes empresas. As ações de um governo, por pior que sejam, não são abolidas pelo governo de oposição que lhe segue. Os grupos brigam ideologicamente, mas nunca chegam aos efeitos práticos. Fraudes em laudos antropológicos na definição de terras indígenas e quilombolas da Bahia ao MS e RS nunca foram levadas a uma revisão pelo governo Bolsonaro. Uma ciclovia que depois de 10 anos não trafega mais do que uma bicicleta por hora não é reavaliada pelo novo prefeito que se diz de oposição. Uma vez malfeito, nunca mais se volta atrás, a não ser que outro grupo de interesse apareça para disputar com o lobby do anterior. E a população? Sequer é consultada. Depois de 20 anos de rodízio em Sampa, não existe uma única discussão sobre a validade de sua existência. Virou costume.

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    • José Luiz de Sanctis disse:

      O voto distrital puro com recall como incansavelmente prega o Fernão L. Mesquita poderia ser o começo da mudança, mas como convencer os autuais políticos a aprovarem essa mudança, que seria suicídio político para eles? Só a força.

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  • luizleitao disse:

    Argumentação lúcida e absolutamente pertinente. A BRF é dona da Perdigão e Sadia,e, se não me engano, pertence à familia Diniz. A concentração bancária é uma indecencia. Mas parece que isso acontece em âmbito mundial. O Google monopolizou as busas na internet, e detém um poder assustador, tanto financeiro quanto pelas informações que detém de todos nós.

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  • Francisco Gorgonio Nobrega disse:

    Outro grande artigo. O que está por detrás do “pânico do Ocidente democrático”? Não seria o avolumar do poder do lobby nos EUA e outros, e o domínio do lucro de empresas e acionistas ao transferir para a China, com vantagens suas operações sem pensar para as consequências? Thomas Sowell está preocupado, acha que o governo Biden pode se tornar o “point of no return” para a democracia americana.

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    • Flm disse:

      Eu também acho.

      Isso de dar US$ 1400 POR PESSOA a título de “ajuda de pandemia” não tem volta. Um casal com dois filhos passa a receber US$ 5.600 por mês pra não fazer nada. E vem agora, ou pelo menos ele pretende, outro pacote de US$ 3 tri “pra construir infraestrutura” tais como moradias grátis e etc.

      O Bernie Sanders deu entrevista ao NYT declarando-se mais feliz que se tivesse sido eleito.

      Começou desabalada a corrida pra subornar o povo…
      Quem ameaçar recuar isso não se elege mais

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  • juan atalla disse:

    Excelente , seu artigo explica porque é tão raro encontrar artigos como este na grande mídia , o monopólio está acabando com muitas coisas inclusive , com o jornalismo .

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  • GATO disse:

    É nada não gente, isso vem ocorrendo desde a fundação da empresa mais antiga do mundo, Igreja Católica Apostólica Romana, tem 2021 anos de atuação no mercado e vai em frente, aparecem concorrentes mas nada muda, os mais agressivos até bombas disparam. As grandes cias. não recuam, seguem explorando seus clientes, atendendo bem ou mal suas demandas e necessidades. As mais eficientes continuam utilizando mão de obra escrava para alavancar seus resultados, os acionistas adoram pois com isso obtém mais benesses. Sempre foi assim e assim vai continuar, de quando em quando surgem algumas rebeliões que acabam em nada, meia dúzia de mártires a menos e vida que segue. Governos são conduzidos ao poder financiados pelos donos do dinheiro, que como sempre troca de mãos por ilusão do sexo, amor, felicidade, poder e jogo. Todos os grandes lideres quase nada deixam para seus herdeiros, com raras excessões como os Reis da Inglaterra, Espanha, Monaco e Suécia, acabam perdendo tudo pelas ilusões acima citadas. Se aqui chegas no momento certo, no lugar certo e na comunidade familiar certa sofrerás menos, mas juízo, que não seja o final, pois se este for mala vita………

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