O execrável mundo novo

15 de julho de 2022 § 4 Comentários

Os lockdowns e a guerra de Putin exacerbaram o que já vinha vindo, mas a crise é do sistema planetário de trabalho e vai piorar antes de melhorar.

A “disfuncionalidade” não é do sistema democrático. O que há é uma incompatibilidade entre ele e a nova ordem econômica socializante pró-monopólios em que desaguou, ao fim de meio século de recordes sucessivos de fusões e aquisições de empresas, a aceitação pelo Ocidente dos termos chineses para a competição pelos mercados globais. 

Em vez de cobrar impostos para a entrada em seus mercados dos produtos do trabalho semi escravo em cima de patentes roubadas, foi o Ocidente, onde emprego é voto, sob o mote “crescer ou morrer”, quem passou a desmontar o arcabouço antitruste que garantia a competição pelos trabalhadores pelo aumento constante dos salários, e pelos consumidores pela redução constante dos preços – o ponto mais alto da civilização democrática – para atirar-se à corrida insana para trás a pretexto de combater com monopólios os monopólios do “capitalismo de estado” que exploram a miséria socialista. 

A consequência é a mesma que quase matou a democracia americana na virada do século 19 para o 20: sem competição entre patrões e fornecedores, com toda a riqueza concentrada em cada vez menos mãos, os salários ocidentais é que passaram a regredir aos padrões chineses, em vez do contrário que seria o desejável. 

É essa a razão fundamental pela qual nenhum governo que precise ser eleito se mantem mais em cima das pernas, seja qual for a sua suposta “coloração”. 

Economia monopolizada só sobrevive com política monopolizada. Enquanto continuar sendo impossível vencer pelo trabalho as crises continuarão em ciclos cada vez mais curtos e a tentação totalitária seguirá em alta. Não ha expediente democrático que mate a frustração da marcha-à-ré, não importa de que altura se tenha partido para ela. 

A outra face do “partido único” dos totalitarismos socialistas, sucessores do absolutismo monárquico, é o ditador vitalício “proprietário único” de todos os meios de produção, antes ditos “reis”, e os “barões”, hoje ditos “tycoons chineses”, “oligarcas russos”, “campeões nacionais brasileiros” e por aí afora, a quem eles outorgam o privilégio de explorar esta ou aquela vertente da economia de monopólios em troca da punição com o degredo econômico, hoje dito “cancelamento” ou “desmonetização”, de quem resistir à sua majestade. 

Nenhum outro direito, onde quer que esteja escrito, sobrevive à morte do direito fundamental da liberdade para escolher patrões e fornecedores. 

E então o único cimento da coesão social passa a ser a certeza do “tiro na nuca”, sucessor do machado, da corda no pescoço ou da fogueira da Inquisição que sustentou o absolutismo por milênios.

Na atual fase em que morre “o sonho”, os logrados reconhecem-se enredados no logro e o discurso sedutor é substituído pelo exercício explícito da força, o instrumento por excelência da opressão é o hiper-concentrado universo das plataformas sociais. 

O truque é nada menos que banal. Tendo a vida toda, especialmente a econômica, migrado para o espaço virtual, ele consiste em negar que o antigo espaço público é hoje a reprodução matemática do verdadeiro animado por empresas privadas, e dar aos donos delas, que não foram eleitos nem devem satisfações a ninguém, a prerrogativa de exercer plena soberania sobre ele.

O espaço público virtual tem de ser regido pelas mesmas normas que regulavam o espaço público físico pelas mesmíssimas trágicas razões que fizeram a humanidade queimar miolos ao longo de milênios de sangue, suor e lágrimas para desenhá-las.

Sem elas, como estamos vendo, instala-se, no âmbito político a Babel subliminarmente instrumentalizada por algoritmos que substitui a ética jornalística pela do marketing, quando não pela antiética dos profissionais da guerra suja que cooptaram as plataformas sociais a pretexto de combater o terrorismo do 11 de setembro em diante. Onde antes deblaterava a ínfima minoria da minoria dos ilustrados, hoje está toda a multidão dos fugidos da escola da História, cada um deles com capacidade de gritar à mesmíssima altura. E o divergente que antes enfrentava um tiro por vez, com o espaço de um dia entre cada tiro, hoje enfrenta diretamente a turba dos linchadores, cada milhão dos quais armado de dispositivos de alcance planetário e com capacidade de disparo de milhões de tiros por segundo.

É um cenário sombrio, sem dúvida. Mas viver sempre foi muito perigoso. Como desde sempre, as alternativas são, ou que os indivíduos aprendam, passo a passo a lidar com esse novo cenário e decidam o que, para cada um deles, é digno de ser acreditado, ou que o Estado decida isso por cada um, o que resulta em que seja arrancada a estaca que o pensamento ocidental começou a cravar no coração do vampiro da opressão desde o início do século 16 até finalmente matar o monstro da censura e entregar o poder ao povo lá no final do 18.

O poder e o ser humano são entidades incompatíveis. O que nos diz a História da nossa espécie é que qualquer risco é menor que o de concentrá-lo nas mãos de uns poucos. Deixar que os transtornos decorrentes da potencialização da mentira pela tecnologia resulte na substituição do livre arbítrio pelo totalitarismo algoritimizado para substituir-se a cada um de nós na determinação do que pode e do que não pode ser dito e pensado no espaço público privatizado, com tudo que vem necessariamente junto com isso e quem quiser pode conferir desde já nas chinas da vida, seria o suicídio da civilização.

Eleições democráticas x eleições brasileiras – 2

24 de junho de 2022 § 2 Comentários

O Brasil discute apaixonadamente a insegurança das urnas e tem boas razões para isso. Ninguém recheia pacientemente um supremo tribunal com militantes, anula irreversivelmente as três instâncias do Poder Judiciário abaixo dele resgatando um criminoso condenado para enfia-lo diretamente na eleição e mata a pau o Poder Legislativo inteiro ao derrubar três votações democráticas maciças dos representantes eleitos do povo mandando imprimir um comprovante do voto alegando razões futeis porque esteja bem intencionado. Tirar da eleição o caráter de argumento indiscutível da pacificação nacional que a transparência da contagem dos votos lhe confere em todas as democracias do mundo certamente não vale os caraminguás que se quer “economizar” negando ao eleitorado brasileiro um comprovante do voto que ele possa ler.

Mesmo assim, na merda em que estamos a questão da urna chove no encharcado!

A “fraude”, quando “aparece”, verdadeira ou “falsa”, consiste na pessoa votar num nome e seu voto ser transferido para outro pela máquina. Mas o fato é que o otário do eleitor brasileiro vota numa pessoa e elege outra sem o concurso de qualquer hacker. No sistema do voto proporcional essa transferência fraudulenta já é operada PELA LEI. Só 15 a 20% da fauna que habita os legislativos brasileiros, conforme lembrou artigo publicado ontem por José Serra em O Estado de S. Paulo, foi eleita por votos em sua pessoa. 80 a 85% dela ganhou o poder de ditar-nos leis “de carona”.

Hoje essa fraude sistematizada está delimitada ao interior de cada “partido político” criado e sustentado pelo Estado. Até 2020 rolava até entre partidos diferentes, desde que estivessem mancomunados numa mesma “coligação”.

O resultado é esse que está aí. O eleitor não sabe quem elegeu e o eleito não deve lealdade a ninguém senão ao “dono” do partido em que se homiziou. E sua única missão na vida passa a ser a de defender o sistema sem o qual jamais se elegeria e reelegeria, os menos ruins para ter privilégios vitalícios e hereditários às custas do favelão nacional, os mais iguais à média para assaltá-lo impunemente. 

E enquanto rasga-se assim, já não digo a nossa constituição drogada e prostituída, coitada, mas até a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, a imprensa nacional das redações franqueadas aos “jornalistas” formados no “sistema educacional” criado pela fauna dos 15 a 85%, dança em frenesi a dança do “estado democrático de direito” em torno da fogueira da ignorância (e não só da ignorância) como um bando de anacrônicos pajés de uma tribo institucionalmente primitiva.

O resto da tragédia nacional é mera consequência.

O lulopetismo nunca entregou o poder perdido no voto. Parte sempre para a chantagem. Trata de destruir a economia e tornar o país ingovernável até que, sufocado pela miséria multiplicada, pela violência e pelo desespero resultantes o eleitorado aceite pagar-lhe o resgate da devolução ao poder. A diferença é que, até Bolsonaro, alguma imprensa resistia-lhe…

A “vantagem” de quem destrói sobre quem constrói é proverbial. Daí terem tomado os milênios todos do primeiro homem até hoje para que tão poucas democracias se tenham consolidado no mundo. Os bens imateriais que só elas provêm não podem ser “entregues”, nem direta, nem imediatamente. São conquistas indiretas e progressivas do controle do poder de fazer leis pelos próprios interessados nelas que dependem, como toda obra humana, de longos e intrincados processos de construção coletiva aprendidos por ensaio e erro sob a pressão das intempéries formadas nos bolsões onde resiste com unhas e dentes a multimilenar privilegiatura, seja no próprio país, seja nos inúmeros clusters ditatoriais ou totalitários que subsistem na cena planetária. Forças que hoje atuam com potência redobrada pela internet que deu materialidade ao internacionalismo em que só o socialismo antidemocrático investiu e se especializou desde que nasceu.

Só no campo do Brasil do pós-lulismo houve uma mudança “material” de qualidade na recuperação do direito de trabalhar em paz que veio como corolário da reconstituição do direito de propriedade. No vasto favelão nacional houve, quando muito, alterações na quantidade da opressão exercida: o crime seguiu imperando como sempre, mas agora com a polícia formalmente proibida de entrar no território dele pelos supremos militantes, outro dado inacreditável dessa nossa nova “normalidade democrática”. 

E se eles já se sentem livres para agir assim e para “prender e arrebentar” quem lhes ofereça resistência estando fora do poder, imagine dentro, e com todas as condições de reconstituir o pleno sistema de seleção negativa que se vinha tentando desmontar na educação, no serviço público, nas forças de segurança e no resto das instituições do nosso Estado onipresente.

A inflação da soma dos efeitos dos lockdowns, da guerra de Putin e dos trilhões de dólares “grátis” com que Joe Biden engraxou sua eleição que ameaça derrubar todos os governos que estão no poder, independentemente de serem “de esquerda” ou “de direita”, é apenas um fenômeno episódico. Nos países com sorte a tempestade chega para enfraquecer governos antidemocráticos. Nos sem sorte…

A ameaça real é, no entanto, muito mais profunda e resiliente. Nem a democracia americana está incólume ao ódio crescente aos monopólios criados a pretexto de enfrentar os dos “capitalismos de estado” que hoje todo socialista doméstico trata de cooptar e ao achinesamento dos salários e com eles, dos direitos civis que, eliminados os da escolha do patrão e do fornecedor, deixam de existir.

Mesmo as democracias mais sólidas deixaram o inimigo entrar pela porta de saída e agora ninguém sabe como pô-los para fora.

Nesse mundo em que resta tão pouco em que se agarrar, a que distância está este Brasil monocrático, indigente de qualquer memória de cidadania, do ponto de não retorno?

Essa é a pergunta que deveria orientar esta eleição, se conseguíssemos voltar a pautá-la pela razão.

Jornalixo x Jornalismo: a eterna batalha – 4

8 de fevereiro de 2022 § 3 Comentários

Havia menos de 50 jornais nos EUA em 1776 e mais de 250 em 1800. Eram muitos milhares na virada do século 19 para o 20.

Com a decolagem esfuziante dos Estados Unidos nos primeiros ¾ do século passado, depois de derrotado o nacional socialismo, o conceito de democracia foi universalmente adotado, ao menos como sonho. Até as ditaduras do internacional socialismo precisavam vender-se como “democracias excessivas” e incluir no seu figurino institucional elementos que ao menos se parecessem com instituições democráticas. 

O jornalismo e sua ”freguesia” resistiram bravamente apesar do persistente mutirão do jornalixo desde Walter Duranty, progressivamente subsidiado pelo trabalho da “intelligentsia orgânica”, que se foi tornando hegemônica nas universidades e nas artes na medida em que ia desaparecendo a memória viva das duas Guerras Mundiais.

Para “justificar” o massacre de cada década – o da China, o de Cuba, os da Europa do Leste, os do Sudeste Asiático, o da Coréia do Norte e da China de Xi Jinping – usou-se primeiro os termos de Gramsci. Mas admitir que onde está bem plantada ela só pode ser destruída por dentro, a partir de uma deliberação da maioria contra si mesmo, e que só uma trapaça pode produzir esse efeito, o resumo da tese do teórico comunista italiano e a definição da essência do jornalixo, homenageia a superioridade moral da democracia que seus inimigos sempre lhe negaram ao longo do século 20.

Depois da internet a luta contra a democracia “burguesa” se foi paulatinamente transformando, de uma disputa entre verdades concorrentes, na destruição do próprio conceito de verdade, o que inclui o reconhecimento da relação indissolúvel entre democracia e verdade. 

Mas essa história, como toda a História da Humanidade, pouco tem a ver com racionalidade.

A legislação que restringia o crescimento sem limites das empresas proprietárias de rádios, TVs e jornais nos Estados Unidos foi reforçada em 1975, a data que marca o apogeu da democracia.3, pela Federal Communications Comission, uma agência criada nos anos 1930 não para se preocupar com conteúdos, mas para regular o uso das concessões de frequências de rádio e, mais tarde, também de TV.

Sempre sob  ataque e roídas aqui e ali, as regras da FCC de 75 sofrerão o primeiro golpe fatal sob os eflúvios da “bolha” da internet e da ignorância dos legisladores sobre a nova tecnologia e suas implicações, com o Telecomunications Act de Bill Clinton de 1996. 

Sob a pressão dos produtos a preço vil do trabalho quase escravo e do roubo de propriedade intelectual dos sobreviventes do socialismo convertidos ao “capitalismo de estado” inundando seus mercados e matando empregos, os legisladores americanos, na mais absoluta  dúvida sobre o que fazer, inverteram o ônus da prova contra a acumulação de poder na mídia. O parágrafo 202 determinava que o FCC revisse suas regras a cada dois anos “modificando as que não conseguisse demonstrar serem de interesse público”.

A “razzia” resultante começou pelo setor de rádios. Entre 1996 e 2002 operações de fusão e incorporação envolveram mais de 10 mil emissoras. Ao fim daquele ano, apenas três grandes cadeias já controlavam 80% dos ouvintes e do mercado publicitário.

Sob o silêncio da mídia diretamente interessada no processo, cada nova fusão aprovada na Justiça criava um precedente em favor de regras “mais realistas” para um mundo onde a opção era “crescer ou morrer” para opor monopólios aos monopólios chineses. “A multiplicação dos sites de informação”, diziam, “compensa de longe a quantidade de rádios, jornais e TVs fechados ou fundidos”. Ficava debaixo do tapete o “pormenor” de que esses sites, como até hoje, não produzem nem apuram informação, apenas reproduzem e debatem as que a imprensa profissional levanta ou qualquer aventureiro inventa.

Na “era Bush” o FCC deixa cair a máscara. Cumprindo um prazo legal convoca, em plena mobilização do país para a Guerra no Iraque, uma votação de seus cinco membros em 2 de junho de 2003 e derruba o embargo à propriedade cruzada de jornais e TVs, extende para 45% o limite de audiência das grandes redes, altera as exigências para a propriedade de múltiplos canais e tipos de TV. E tudo se passa sob exemplar “patrulha do silêncio” conforme medido pelo Project for Excelence in Journalism. As três grandes redes de TV mencionam o assunto pela primeira vez apenas na véspera da votação.

Em 1983 quando escreveu um livro sobre o encolhimento da imprensa independente nos EUA, Ben Bagdikian, reitor da Berkley Graduate School of Journalism, mostrou que os americanos se informavam, naquele momento, com base em notícias produzidas por 50 empresas diferentes. Em 2004, na 7a revisão do livro, sobravam só seis conglomerados gigantes, com faturamento de bilhões, que não eram nem empresas de informação nem empresas de entretenimento. Possuiam TVs, jornais, rádios e editoras; produtoras e distribuidoras de filmes; gravadoras e distribuidoras de musica assim como empresas promotoras de shows; times esportivos e estádios onde se dão os campeonatos que só elas transmitem, e assim por diante…

A crise do modelo de negócio das empresas jornalísticas completou a aniquilação da cultura do jornalismo democrático que se vinha apurando no processo orgânico descrito nesta série entre os praticantes dessa arte e seu público não redutível a manuais de melhores práticas de gestão corporativa. O poder e as prioridades, nessas empresas, passaram das mãos das áreas de jornalismo – de quem se esperava o comportamento de um fiscal do poder público orientado por um sentido fundamentalmente ético – para as áreas administrativas – de quem se exige o comportamento de agentes implacáveis da expansão da riqueza de um grupo de acionistas. E como é impossível, mesmo para jornalistas experimentados, controlar à distância uma redação que lida com uma realidade nova a cada fato e tem de processá-los em questão de horas, para um administrador de empresas, que dessa história toda contada até aqui não sabe nem uma linha e, em geral, tem raiva de quem sabe, isso é absolutamente impossível.

E como é nelas que se decide o jogo do poder nas democracias, mesmo as melhores redações do planeta, com raríssimas exceções, tornaram-se totalmente imunodeficientes ao assédio do jornalixo.

Debatezinho de ano novo

3 de janeiro de 2022 § 9 Comentários

Ontem recebi, num grupinho de debates que temos no whatsapp, uma entrevista publicada no Globo de 1/1/2022.

Francis Fukuyama, aquele “acadêmico conservador” como o chamou o entrevistador do Globo, que disse que a História tinha acabado em 1989 quando caiu o Muro de Berlin e a democracia ia se instalar urbi et orbi, agora deu um cavalo de pau e anda super pessimista, dizendo que a decadência dos Estados Unidos vai aumentar nos próximos anos, e tal e coisa.

Não discordo dele, apesar de saber que aquela democracia “de nascença” deles, das comunidades, só morre de morte matada porque eles não sabem ser de outro jeito. Mas discordo radicalmente das razões pelas quais isso poderá realmente acontecer se caras como ele e outros luminares do Ocidente continuarem esquecidos de sua própria história e não enxergando o que está diante dos seus narizes.

Veja o que você acha. 

Meu comentário:

Acho que caras como o Fukuyama e até outros que têm se enganado muito menos que ele estão perdidos no barulho do acessório e esquecem o principal.

E o principal é que o Ocidente “achinezou-se” ao topar a disputa com os capitalismos de estado, novo nome do velho socialismo de sempre, nos termos deles.

Em vez de taxar a entrada em seus mercados de produtos fruto de trabalho escravo e roubo de propriedade intelectual em nome da proteção das conquistas da classe trabalhadora só possíveis nas democracias, abaixaram as proteções antitruste e vêm em disparada, ha 50 anos ininterruptos, concentrando a propriedade dos meios de produção.

Com isso estão ficando mais iguais a eles a cada dia que passa: tudo pertence a meia dúzia de pessoas e, como consequência, cessou a disputa pelos melhores trabalhadores pelo aumento de salários e dos consumidores pela redução de preços que fez com que cada geração dos capitalismos democráticos fosse mais livre e mais rica que a anterior. Não é mais possível vencer pelo esforço individual e o sucesso depende cada vez mais da corrupção que, para se manter, requer, como sempre, cada vez mais censura que é a antessala da violência física.

É isso que faz a “desilusão com a democracia” que está no ar mas não é mais que o horror de viver na antidemocracia. As chinas instalaram primeiro o partido único para chegar ao proprietário único de todas as coisas. O Ocidente está fazendo o caminho inverso: o proprietário único – ou quase – é que vai desaguar no partido único.

A esquerda e sua “revolução identitária” é só a última versão da falência da sua utopia e da ausência de propostas concretas para os problemas reais em que está encalacrada hoje. Vai morrer na balburdia que produz sem resultar em nada.

O homem está cada vez mais diante do que é, nua e cruamente, mas acha isso pouco, quando na verdade é muitíssimo…

Pirâmides do Egito, pirâmides maias, muralhas de Nan Madol, muralhas da China, palácios dourados do Rei Sol, igrejas inteiras folheadas a ouro, rodovias e aeroportos espampanantes ligando o nada a lugar nenhum de uma gente proibida de viajar monitorada a cada passo e palavra pelo celular…

O povo embarca e a humanidade cultua para sempre as obras faraônicas dos egos faraônicos e só lembra de vez em quando das gerações escravizadas e dos rios de lágrimas e sangue que construí-las custou.

Espero que descubram o que na verdade são as obras faraônicas – mais socializadas mas apenas “pirâmides” eternizando egos gigantescos e sustentando poderes despóticos – das chinas de hoje antes de ter de experimentar na própria pele o regime atroz que as produz…

A entrevista de Fukuyama a Eduardo Graça de O Globo de 1/1/2022:

Como vê os EUA no atual tabuleiro político planetário?

Houve um inegável declínio da influência americana. As razões são muitas, mas as principais se relacionam com os erros políticos cometidos por Washington de lá para cá, especialmente a invasão do Iraque e a crise financeira global de 2008. Foram dois momentos históricos que desacreditaram nossas elites e as ideias que as guiavam. Hoje a maior fonte de fraqueza dos EUA é o grau jamais visto de polarização política em um país cada vez mais partido. A política externa, especialmente, carece do mínimo de consenso entre democratas e republicanos, crucial para a defesa de uma ordem global democrática. Nosso retrato como país hoje é o de uma entidade anômala e isso me faz crer que a decadência americana vai aumentar nos próximos anos.

Pode dar exemplos?

A extensão da pandemia pode desestabilizar politicamente países, incluindo os nossos. Precisamos observar o efeito que ela terá no curso dos populismos. Constatou-se numericamente uma relação clara entre governos comandados por populistas e a dimensão da tragédia da Covid-19. Houve, como consequência, o enfraquecimento de governantes como Donald Trump e Jair Bolsonaro. Porém, não me iludo: 2022 seguirá seu curso, as pessoas se esquecerão, mês a mês, semana a semana, da tragédia. O Ano Novo começa com um sentimento de esgotamento e ansiedade compreensível: passamos 2020 e 2021 usando máscaras, isolados, nos vacinando. O que temo é que a reação, especialmente à direita, contra as medidas sanitárias, modifique o cálculo político, oferecendo a oportunidade de um novo tipo de populismo, calcado em uma falsa ideia de liberdade de expressão.

A discussão em torno da vacinação de crianças contra a Covid-19 que se vê hoje no Brasil já é um reflexo desta nova cepa de populismo de direita?

Sim. É legítima a preocupação dos pais em o Estado usar a emergência sanitária para interferir em decisões que afetam as famílias. Mas a realidade é bem outra e mais sinistra.

Cultua-se a desconfiança do conhecimento científico e há a invenção e divulgação de teorias da conspiração sobre agências de vigilância e a indústria farmacêutica.

Em 2018, o senhor argumentou em “Identidades: a exigência da dignidade e a política do ressentimento” que há uma conexão direta entre a defesa feita por progressistas das políticas identitárias e a ascensão do populismo de direita. As democracias liberais seguirão em risco?

Sim. Em abril lanço “Liberalism and its discontents”, examinando como as pessoas foram ficando mais infelizes com o modelo de democracia liberal nos últimos 50 anos. A nova esquerda combate diversos tipos de desigualdade, não apenas os de classe e econômicos, mas os de gênero, raciais e de orientação sexual. E isso seguirá alimentando uma direita decidida a enfrentar o que percebe ser um ataque a suas tradições culturais e religiosas.

O Brasil irá às urnas este ano e as pesquisas indicam uma polarização entre forças que representam, também, estas tensões. Como o senhor vê uma disputa entre Bolsonaro e o ex-presidente Lula?

A reeleição de Bolsonaro seria o equivalente a uma segunda Presidência de Trump nos EUA, a celebração coletiva de um líder muito fraco e incompetente. Um segundo mandato de Bolsonaro será ainda mais destrutivo para a democracia brasileira. A escolha oferecida, no entanto, me parece estar longe do ideal: faz todo sentido votar em qualquer pessoa que não se chame Bolsonaro, mas Lula representa um passado recente que inclui escândalos sérios e volumosos de corrupção. A disputa também parece acentuar a diminuição da importância dos centros e o fortalecimento da polarização, dos extremos, como aqui nos EUA, que parece ser uma tendência na América Latina para os próximos anos, como observamos no Peru e no Chile. Isso me preocupa muito.

Mas Gabriel Boric se aproximou do centro no segundo turno das eleições chilenas e a política ambiental teve protagonismo em seu programa de governo. A consciência verde não terá o poder de aproximar os extremos?

Ela deveria, mas ainda não vejo no horizonte o combate lógico e urgente ao aquecimento global como fator na redução da polarização política. Em 2022, estaremos distantes de um consenso sobre como preservar a natureza sem explorar de forma irracional as riquezas naturais. E muito ocupados discutindo tópicos como o aumento de impostos, se é direito ou dever sermos vacinados e o culto à desinformação para nos unir na defesa do verde.

Sobre a disseminação de fake news, o senhor acredita que haverá mais pressão pela vigilância das big tech?

Este é um processo inevitável e não se refere apenas às redes sociais, mas a todo universo digital. Houve uma multiplicação de universos alternativos em que as pessoas discordam não apenas a respeito de conceitos mas de fatos.

Precisamos encontrar uma maneira de regular o mundo livre das redes sem bater de frente com valores intensificados pelas próprias características centrais do mundo digital, como a liberdade de expressão. Tão importante quanto denunciar as fake news será construir uma maneira legal para fazê-lo sem assumir o manto do censor, do totalitário. Este será um dos desafios centrais de 2022 e dos próximos anos.

A falta que a democracia faz

13 de outubro de 2021 § 13 Comentários

A China tem apartamentos vazios suficientes para abrigar 30 milhões de famílias. O bastante para 90 milhões de pessoas, mais que as populações inteiras de países como França, Alemanha, Reino Unido ou Itália. Mas falta energia elétrica a ponto de paralisar a produção em vários pontos do país.

Como se explica isso?

Fácil. A “bolha imobiliária” tem o exato tamanho da corrupção no país do partido único, proprietário único de tudo, inclusive da única imprensa existente. Numa economia que saiu da escravidão absoluta para a abolição lenta, gradual e controlada por deliberação do partido único, dono de cada centímetro do território nacional, a franja mais extensa da privilegiatura fora da qual tudo que existe é submissão absoluta ou morte, são as células locais do Partido Comunista Chinês (PCC), equivalentes aos nossos governos municipais e suas subdivisões menores. 

É a eles que os “empreendedores imobiliários” apadrinhados pelos figurões mais altos do partido terão de pedir a cessão dos terrenos onde construir seus prédios. E, claro, como em todos os outros recantos habitados pelo bicho homem, ter-se-á de pagar para ter esse privilégio … em apartamentos do empreendimento futuro aos funcionários a quem cabe ceder ou não as terras. Far-se-á necessário, então, um financiamento do braço do banco estatal único controlado por alguém escolhido por outro figurão do partido, a esse “empreendedor imobiliário”. E tal autorização, naturalmente, também terá seu preço … em apartamentos no futuro empreendimento, pois para o “empreendedor”, o importante é fazer e não vender os prédios, mesmo porque o dinheiro que tudo move é “do povo”, que não tem prazo para recebê-lo de volta…

Assim foram construídos não apenas prédios-fantasmas (semana passada 15 foram implodidos ao mesmo tempo) mas até cidades-fantasmas ligadas por rodovias-fantasmas, tudo explicável pelo mesmo mecanismo da “economia” movida a decisões de figurões do partido e não a demandas de um anônimo mercado.

Com a multiplicação da quantidade de bilhões girando nessa ciranda a ganância despertada pela China vence fronteiras, e ela é admitida na comunidade econômica internacional como um “parceiro igual”. Para além do processo de “consolidação” de setores inteiros da economia para enfrentar a concorrência “igual” dos monopólio do capitalismo de estado chinês, com o correspondente massacre dos salários no Ocidente inteiro, os trilhões de yuans correspondentes aos milhões de metros quadrados de construções vazias passam a ancorar-se também em financiamentos em dólar. 

A Evergrande, a imobiliária gigante que acaba de estourar, ate dois anos atras era a “ação imobiliária” mais valiosa do mundo. O valor da empresa caiu de US$ 41 bi, no ano passado, para US$ 3,7 bi agora. 80 mil chineses detêm 40 bi de yuans de debêntures da empresa. O resto está com investidores ocidentais. O setor imobiliário contribui com 29% do PIB chinês. Mas as vendas de terrenos pelos governos locais caiu 90% nos primeiros 12 dias de setembro. Eram elas que geravam ⅓ da renda desses governos que acumulam uma divida de US$ 8,4 tri, perto de 43% do PIB…

E o que isso tem a ver com a crise de energia? 

Tudo. Como “democratizar a corrupção” com a mesma extensão que a “indústria imobiliária” permite fatiando usinas de produção de energia? Resultado: 30 milhões de apartamentos inúteis; nenhuma usina de força. Vêm ai alta do petróleo, do carvão e das emissões de carbono que o Biden se comprometeu a cortar.

O petróleo bruto subiu 64% este ano, a maior alta em 7 anos. Os preços do gás praticamente dobraram nos últimos 6 meses. Óleo para calefação subiu 68%. Carvão teve altas recordes. Não falta petróleo nem carvão para isso. Mas os grandes tubarões produtores aproveitam esse momento de volta da pandemia e apagão na China para abrir suas torneiras sempre com atraso bastante para justificar altas de preços desse calibre.

É a “tempestade perfeita”. Isso e a escassez de semicondutores e componentes básicos de eletrônicos determinada pelo desarranjo estrutural do “abre” e “fecha” dos lockdown de sabor político desmancham as supply chain chinesas que fizeram mais pela enormidade das Apples da vida que o próprio Steve Jobs. 

Mas, claro, não são esses os únicos predadores do sistema. Atrás deles galopam, sempre, as hienas da política. Pro resto do mundo vai ser mais complicado. Enquanto ele rebola para voltar a ajustar-se, o Brasil de Brasília, onde não ha desemprego nem pressa, já sabe exatamente o que fazer: basta que nos livremos do Bolsonaro. E, até para garantir isso, os governos estaduais, de par com o Poder Judiciário e seus mutirões de multiplicação de precatórios, são hoje os mais vorazes especuladores em dólar contra o favelão nacional.

A explosão dos preços do petróleo e do dólar multiplicaram a base sobre a qual aplicam seus tributos e as receitas estaduais cresceram 10% reais (descontada a inflação) em plena paradeira da pandemia. A arrecadação do ICMS, que incide em média a 25% sobre o preço dos combustíveis que tudo movem no Brasil, aumentou 19% na média nacional. Isso levou o País Real de volta à cozinha à lenha que comeu metade da Mata Atlântica no século 19. Essa nova conquista do estado democrático de direitos adquiridos no país onde “o petróleo é nosso”, foi registrada na primeira página de O Estado de S. Paulo de domingo, um dia depois dele e a Folha “saudarem” em manchete a premiação com o Nobel de dois jornalistas contra os quais, se atuassem no Brasil, os dois estariam atiçando o Alexandre de Moraes. A lenha, depois da eletricidade, volta a ser a 2a fonte de energia mais utilizada nos lares brasileiros com 26,1% de participação contra 24,4% do gás de botijão.

Nem por isso os investimentos em educação dos estados saíram do padrão de sempre: caíram 6,4% versus 2020 e 7,4% versus 2019. E agora todos eles (os donos do nosso petróleo) estão acenando com aumentos para o funcionalismo no ano eleitoral de 2022. E, é claro, dificilmente o mesmo Congresso que acaba de cortar a verba para ciência e tecnologia em 92% porque esta é das poucas verbas que não contam nem com lobbies, nem com “bancadas” na “Casa do Povo” onde só quem não as tem é o indigitado povo, vai insurgir-se contra mais este esbulho.

Tudo isso, ainda que no Brasil já tenhamos experimentado uma meia sola, é consequência da falta que a democracia, o único antídoto contra a corrupção e a miséria de comprovada eficácia jamais inventado, faz naquela China que tantos de nós, especialmente em Brasília, hoje andamos invejando tanto.

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