O execrável mundo novo

15 de julho de 2022 § 4 Comentários

Os lockdowns e a guerra de Putin exacerbaram o que já vinha vindo, mas a crise é do sistema planetário de trabalho e vai piorar antes de melhorar.

A “disfuncionalidade” não é do sistema democrático. O que há é uma incompatibilidade entre ele e a nova ordem econômica socializante pró-monopólios em que desaguou, ao fim de meio século de recordes sucessivos de fusões e aquisições de empresas, a aceitação pelo Ocidente dos termos chineses para a competição pelos mercados globais. 

Em vez de cobrar impostos para a entrada em seus mercados dos produtos do trabalho semi escravo em cima de patentes roubadas, foi o Ocidente, onde emprego é voto, sob o mote “crescer ou morrer”, quem passou a desmontar o arcabouço antitruste que garantia a competição pelos trabalhadores pelo aumento constante dos salários, e pelos consumidores pela redução constante dos preços – o ponto mais alto da civilização democrática – para atirar-se à corrida insana para trás a pretexto de combater com monopólios os monopólios do “capitalismo de estado” que exploram a miséria socialista. 

A consequência é a mesma que quase matou a democracia americana na virada do século 19 para o 20: sem competição entre patrões e fornecedores, com toda a riqueza concentrada em cada vez menos mãos, os salários ocidentais é que passaram a regredir aos padrões chineses, em vez do contrário que seria o desejável. 

É essa a razão fundamental pela qual nenhum governo que precise ser eleito se mantem mais em cima das pernas, seja qual for a sua suposta “coloração”. 

Economia monopolizada só sobrevive com política monopolizada. Enquanto continuar sendo impossível vencer pelo trabalho as crises continuarão em ciclos cada vez mais curtos e a tentação totalitária seguirá em alta. Não ha expediente democrático que mate a frustração da marcha-à-ré, não importa de que altura se tenha partido para ela. 

A outra face do “partido único” dos totalitarismos socialistas, sucessores do absolutismo monárquico, é o ditador vitalício “proprietário único” de todos os meios de produção, antes ditos “reis”, e os “barões”, hoje ditos “tycoons chineses”, “oligarcas russos”, “campeões nacionais brasileiros” e por aí afora, a quem eles outorgam o privilégio de explorar esta ou aquela vertente da economia de monopólios em troca da punição com o degredo econômico, hoje dito “cancelamento” ou “desmonetização”, de quem resistir à sua majestade. 

Nenhum outro direito, onde quer que esteja escrito, sobrevive à morte do direito fundamental da liberdade para escolher patrões e fornecedores. 

E então o único cimento da coesão social passa a ser a certeza do “tiro na nuca”, sucessor do machado, da corda no pescoço ou da fogueira da Inquisição que sustentou o absolutismo por milênios.

Na atual fase em que morre “o sonho”, os logrados reconhecem-se enredados no logro e o discurso sedutor é substituído pelo exercício explícito da força, o instrumento por excelência da opressão é o hiper-concentrado universo das plataformas sociais. 

O truque é nada menos que banal. Tendo a vida toda, especialmente a econômica, migrado para o espaço virtual, ele consiste em negar que o antigo espaço público é hoje a reprodução matemática do verdadeiro animado por empresas privadas, e dar aos donos delas, que não foram eleitos nem devem satisfações a ninguém, a prerrogativa de exercer plena soberania sobre ele.

O espaço público virtual tem de ser regido pelas mesmas normas que regulavam o espaço público físico pelas mesmíssimas trágicas razões que fizeram a humanidade queimar miolos ao longo de milênios de sangue, suor e lágrimas para desenhá-las.

Sem elas, como estamos vendo, instala-se, no âmbito político a Babel subliminarmente instrumentalizada por algoritmos que substitui a ética jornalística pela do marketing, quando não pela antiética dos profissionais da guerra suja que cooptaram as plataformas sociais a pretexto de combater o terrorismo do 11 de setembro em diante. Onde antes deblaterava a ínfima minoria da minoria dos ilustrados, hoje está toda a multidão dos fugidos da escola da História, cada um deles com capacidade de gritar à mesmíssima altura. E o divergente que antes enfrentava um tiro por vez, com o espaço de um dia entre cada tiro, hoje enfrenta diretamente a turba dos linchadores, cada milhão dos quais armado de dispositivos de alcance planetário e com capacidade de disparo de milhões de tiros por segundo.

É um cenário sombrio, sem dúvida. Mas viver sempre foi muito perigoso. Como desde sempre, as alternativas são, ou que os indivíduos aprendam, passo a passo a lidar com esse novo cenário e decidam o que, para cada um deles, é digno de ser acreditado, ou que o Estado decida isso por cada um, o que resulta em que seja arrancada a estaca que o pensamento ocidental começou a cravar no coração do vampiro da opressão desde o início do século 16 até finalmente matar o monstro da censura e entregar o poder ao povo lá no final do 18.

O poder e o ser humano são entidades incompatíveis. O que nos diz a História da nossa espécie é que qualquer risco é menor que o de concentrá-lo nas mãos de uns poucos. Deixar que os transtornos decorrentes da potencialização da mentira pela tecnologia resulte na substituição do livre arbítrio pelo totalitarismo algoritimizado para substituir-se a cada um de nós na determinação do que pode e do que não pode ser dito e pensado no espaço público privatizado, com tudo que vem necessariamente junto com isso e quem quiser pode conferir desde já nas chinas da vida, seria o suicídio da civilização.

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