Debatezinho de ano novo

3 de janeiro de 2022 § 9 Comentários

Ontem recebi, num grupinho de debates que temos no whatsapp, uma entrevista publicada no Globo de 1/1/2022.

Francis Fukuyama, aquele “acadêmico conservador” como o chamou o entrevistador do Globo, que disse que a História tinha acabado em 1989 quando caiu o Muro de Berlin e a democracia ia se instalar urbi et orbi, agora deu um cavalo de pau e anda super pessimista, dizendo que a decadência dos Estados Unidos vai aumentar nos próximos anos, e tal e coisa.

Não discordo dele, apesar de saber que aquela democracia “de nascença” deles, das comunidades, só morre de morte matada porque eles não sabem ser de outro jeito. Mas discordo radicalmente das razões pelas quais isso poderá realmente acontecer se caras como ele e outros luminares do Ocidente continuarem esquecidos de sua própria história e não enxergando o que está diante dos seus narizes.

Veja o que você acha. 

Meu comentário:

Acho que caras como o Fukuyama e até outros que têm se enganado muito menos que ele estão perdidos no barulho do acessório e esquecem o principal.

E o principal é que o Ocidente “achinezou-se” ao topar a disputa com os capitalismos de estado, novo nome do velho socialismo de sempre, nos termos deles.

Em vez de taxar a entrada em seus mercados de produtos fruto de trabalho escravo e roubo de propriedade intelectual em nome da proteção das conquistas da classe trabalhadora só possíveis nas democracias, abaixaram as proteções antitruste e vêm em disparada, ha 50 anos ininterruptos, concentrando a propriedade dos meios de produção.

Com isso estão ficando mais iguais a eles a cada dia que passa: tudo pertence a meia dúzia de pessoas e, como consequência, cessou a disputa pelos melhores trabalhadores pelo aumento de salários e dos consumidores pela redução de preços que fez com que cada geração dos capitalismos democráticos fosse mais livre e mais rica que a anterior. Não é mais possível vencer pelo esforço individual e o sucesso depende cada vez mais da corrupção que, para se manter, requer, como sempre, cada vez mais censura que é a antessala da violência física.

É isso que faz a “desilusão com a democracia” que está no ar mas não é mais que o horror de viver na antidemocracia. As chinas instalaram primeiro o partido único para chegar ao proprietário único de todas as coisas. O Ocidente está fazendo o caminho inverso: o proprietário único – ou quase – é que vai desaguar no partido único.

A esquerda e sua “revolução identitária” é só a última versão da falência da sua utopia e da ausência de propostas concretas para os problemas reais em que está encalacrada hoje. Vai morrer na balburdia que produz sem resultar em nada.

O homem está cada vez mais diante do que é, nua e cruamente, mas acha isso pouco, quando na verdade é muitíssimo…

Pirâmides do Egito, pirâmides maias, muralhas de Nan Madol, muralhas da China, palácios dourados do Rei Sol, igrejas inteiras folheadas a ouro, rodovias e aeroportos espampanantes ligando o nada a lugar nenhum de uma gente proibida de viajar monitorada a cada passo e palavra pelo celular…

O povo embarca e a humanidade cultua para sempre as obras faraônicas dos egos faraônicos e só lembra de vez em quando das gerações escravizadas e dos rios de lágrimas e sangue que construí-las custou.

Espero que descubram o que na verdade são as obras faraônicas – mais socializadas mas apenas “pirâmides” eternizando egos gigantescos e sustentando poderes despóticos – das chinas de hoje antes de ter de experimentar na própria pele o regime atroz que as produz…

A entrevista de Fukuyama a Eduardo Graça de O Globo de 1/1/2022:

Como vê os EUA no atual tabuleiro político planetário?

Houve um inegável declínio da influência americana. As razões são muitas, mas as principais se relacionam com os erros políticos cometidos por Washington de lá para cá, especialmente a invasão do Iraque e a crise financeira global de 2008. Foram dois momentos históricos que desacreditaram nossas elites e as ideias que as guiavam. Hoje a maior fonte de fraqueza dos EUA é o grau jamais visto de polarização política em um país cada vez mais partido. A política externa, especialmente, carece do mínimo de consenso entre democratas e republicanos, crucial para a defesa de uma ordem global democrática. Nosso retrato como país hoje é o de uma entidade anômala e isso me faz crer que a decadência americana vai aumentar nos próximos anos.

Pode dar exemplos?

A extensão da pandemia pode desestabilizar politicamente países, incluindo os nossos. Precisamos observar o efeito que ela terá no curso dos populismos. Constatou-se numericamente uma relação clara entre governos comandados por populistas e a dimensão da tragédia da Covid-19. Houve, como consequência, o enfraquecimento de governantes como Donald Trump e Jair Bolsonaro. Porém, não me iludo: 2022 seguirá seu curso, as pessoas se esquecerão, mês a mês, semana a semana, da tragédia. O Ano Novo começa com um sentimento de esgotamento e ansiedade compreensível: passamos 2020 e 2021 usando máscaras, isolados, nos vacinando. O que temo é que a reação, especialmente à direita, contra as medidas sanitárias, modifique o cálculo político, oferecendo a oportunidade de um novo tipo de populismo, calcado em uma falsa ideia de liberdade de expressão.

A discussão em torno da vacinação de crianças contra a Covid-19 que se vê hoje no Brasil já é um reflexo desta nova cepa de populismo de direita?

Sim. É legítima a preocupação dos pais em o Estado usar a emergência sanitária para interferir em decisões que afetam as famílias. Mas a realidade é bem outra e mais sinistra.

Cultua-se a desconfiança do conhecimento científico e há a invenção e divulgação de teorias da conspiração sobre agências de vigilância e a indústria farmacêutica.

Em 2018, o senhor argumentou em “Identidades: a exigência da dignidade e a política do ressentimento” que há uma conexão direta entre a defesa feita por progressistas das políticas identitárias e a ascensão do populismo de direita. As democracias liberais seguirão em risco?

Sim. Em abril lanço “Liberalism and its discontents”, examinando como as pessoas foram ficando mais infelizes com o modelo de democracia liberal nos últimos 50 anos. A nova esquerda combate diversos tipos de desigualdade, não apenas os de classe e econômicos, mas os de gênero, raciais e de orientação sexual. E isso seguirá alimentando uma direita decidida a enfrentar o que percebe ser um ataque a suas tradições culturais e religiosas.

O Brasil irá às urnas este ano e as pesquisas indicam uma polarização entre forças que representam, também, estas tensões. Como o senhor vê uma disputa entre Bolsonaro e o ex-presidente Lula?

A reeleição de Bolsonaro seria o equivalente a uma segunda Presidência de Trump nos EUA, a celebração coletiva de um líder muito fraco e incompetente. Um segundo mandato de Bolsonaro será ainda mais destrutivo para a democracia brasileira. A escolha oferecida, no entanto, me parece estar longe do ideal: faz todo sentido votar em qualquer pessoa que não se chame Bolsonaro, mas Lula representa um passado recente que inclui escândalos sérios e volumosos de corrupção. A disputa também parece acentuar a diminuição da importância dos centros e o fortalecimento da polarização, dos extremos, como aqui nos EUA, que parece ser uma tendência na América Latina para os próximos anos, como observamos no Peru e no Chile. Isso me preocupa muito.

Mas Gabriel Boric se aproximou do centro no segundo turno das eleições chilenas e a política ambiental teve protagonismo em seu programa de governo. A consciência verde não terá o poder de aproximar os extremos?

Ela deveria, mas ainda não vejo no horizonte o combate lógico e urgente ao aquecimento global como fator na redução da polarização política. Em 2022, estaremos distantes de um consenso sobre como preservar a natureza sem explorar de forma irracional as riquezas naturais. E muito ocupados discutindo tópicos como o aumento de impostos, se é direito ou dever sermos vacinados e o culto à desinformação para nos unir na defesa do verde.

Sobre a disseminação de fake news, o senhor acredita que haverá mais pressão pela vigilância das big tech?

Este é um processo inevitável e não se refere apenas às redes sociais, mas a todo universo digital. Houve uma multiplicação de universos alternativos em que as pessoas discordam não apenas a respeito de conceitos mas de fatos.

Precisamos encontrar uma maneira de regular o mundo livre das redes sem bater de frente com valores intensificados pelas próprias características centrais do mundo digital, como a liberdade de expressão. Tão importante quanto denunciar as fake news será construir uma maneira legal para fazê-lo sem assumir o manto do censor, do totalitário. Este será um dos desafios centrais de 2022 e dos próximos anos.

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§ 9 Respostas para Debatezinho de ano novo

  • marcos andrade moraes disse:

    Não enrola! O que vc não gostou foi da crítica abundantemente certeira a Bolsonaro e ” Tramp”.

    MAM

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  • Bom Ano a todos!
    É isso mesmo Fernão. A perda do equilíbrio causada pela volta da acumulação de riqueza estragou tudo. Isso fez com que fossem postos em causa os valores morais de uma sociedade livre e multifacetada.
    Quando não há quem lidere pelos valores, tudo se perde em balbúrdia.
    O crescimento da economia apequenou o homem.
    É no Homem e pelo Humanismo que devemos focar!

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  • Alexandre disse:

    Acho que houve das duas coisas, Fernão. O “achinezamento” da economia dos EUA (especialmente pelas big techs) e efeitos políticos e sociais da agitprop (agora também pela internet) engendrada por russos e chineses contra o país (dividir para conquistar).

    Abs.

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  • rubirodrigues disse:

    A dialética – contraposição de tese e antítese – que preside essas análises, resulta incompetente para oferecer solução simultaneamente convincente e esclarecedora, tal como o texto evidencia. A dialética possibilita uma análise horizontal entre diferenças circunstanciais. Ocorre que, em nosso universo, a realidade se edifica em sentido vertical, da maior simplicidade para a complexidade organizativa, tal como prova a tabela periódica de elementos. Isso significa que a natureza evolui criando fenômenos crescentemente complexos e que as relações edificantes principais são verticais, entre as partes e o todo. Quando nos limitamos a examinar as relações entre as partes, esquecemos do todo e das razões que justificam a sua existência. O resultado é enxugar gelo. Quando, ao contrário pensamos verticalmente – como o caso do voto distrital com recall na escolha de representantes – a consistência da medida se evidencia claramente. Enquanto, epistemologicamente, não mudarmos de esquerda-direita, para parte-todo, continuaremos patinando. (Antecipo desculpas para quem pensa que filosofia é inútil)

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  • Ronaldo Sheldon disse:

    Fernão concordo totalmente com você. O problema americano surgiu com a falta de concorrência entre as empresas, base da economia liberal. Houve o processo de criação de grandes conglomerados que iam incorporando os concorrentes sem restrições do governo. Criaram-se gigantes que por sua vez são controlados por pequeno grupo de mesmos investidores. Ou seja concentração de renda nunca vista na história. O caso dos bancos também é notório, falta de normatização permitiu a alavancagem sem regras e os bancos inventaram derivativos emitindo papéis de dívida com rating das três maiores agências concedendo tripple A para qualquer devedor e os bancos comprando e vendendo estes papéis a rodo. Havia bancos com alavancagem de mais de 30 vezer o Patrimônio. Criou-se a bolha imobiliária vendendo-se papéis de dívida sem lastro mas com seguro contra inadimplência. Outra falácia, quando a bolha estourou as seguradoras também não tinham lastro para bancar a bancarrota dos investidores. Resultado, uma concentração e uma agigantamento bancário jamais visto. Aí o governo, que tudo permitiu, arbitra o fechamento de um banco e salva os demais, a AIG, A GM a Crysler e ninguém é punido. Estes poucos acionistas que controlam todos os grandes conglomerados mundiais concentrou um poder jamais imaginado e querem impor suas políticas de dominação ao mundo. O melhor meio, e o de mais fácil administração, é via comunismo onde há poder altamente concentrado e comanda-se com propinas, como vimos aqui no Brasil nos governos petistas. Comprou-se o Congresso, a Justiça, a Imprensa, a Mídia, as Eleições a oposição, a polícia e o governo tinha poder absoluto, incontestável. Agora, depois do leite derramado, o que fazer para consertar o estrago? Voltar atrás seria muito difícil. Refazer as leis de controle da concorrência, restringir o gigantismo das empresas, regular melhor o mercado financeiro, como, se foi o governo quem patrocinou esta concentração e alguns de seus membros são do esquema? Mesmo nos EUA, com toda a sua “democracia” conseguiram emplacar a vontade de uns poucos, vide agora o caso das vacinas em que tudo se repete e os agentes por trás das tramoias são os mesmos dominadores de sempre.

    Curtido por 1 pessoa

    • Jackson disse:

      Ronaldo, perfeita a sua análise! Os EUA ficou nas mãos das grandes corporações por votar em presidentes fracos e corruptos, associados ao capitalismo de resultados que só olham os bônus dos executivos

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  • rubirodrigues disse:

    Uma Providência que ri e despreza. Surprendente.

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