O custo da impotência do eleitor

16 de julho de 2019 § 21 Comentários

Artigo para O Estado de S. Paulo de 16/7/2019

Os Estados destinaram R$ 94 bi a 2,3 milhões de servidores inativos gastando em média R$ 40 mil por servidor. Já o investimento em toda a população de 210 milhões de plebeus foi quase quatro vezes menor em numeros absolutos, o que põe o gasto médio em R$ 125 por pessoa, 320 vezes menos que o que se “investe” nos aposentados da privilegiatura.

Esse é o resumo desta crise e da própria História do Brasil.

Essa nossa condição anacrônica de servidão semi-feudal só pode perdurar graças à “desorientação espacial”, digamos assim, em que anda perdida a imprensa nacional. O mundo ficou menor mas nem tanto. A Rede Globo, por exemplo, ainda que enquistada em pleno Rio de Janeiro, tem certeza de que vive numa sociedade sexualmente reprimida. De frente para a praia, nunca reparou naquilo que Pêro Vaz de Caminha viu de cara e marcou toda a nossa História: um país onde todo mundo anda pelado, naquela latitude abaixo da qual “não existe pecado”. Por isso agasta tanto que ela faça cara de heroína da revolução ao pregar a libertinagem na terra de João Ramalho, Caramuru e seus harens de filhas de caciques.

Não está sozinha. Boa parte do resto da imprensa frequentemente também imagina-se em alguma França, ou sei lá. Encasquetou meramente por eco que mudar regras de previdência é sempre “impopular”. Daí ter permanecido afirmando até tomar o desmentido na cara que reduzir a diferença média de 35 vezes entre as aposentadorias que o favelão nacional recebe e as que paga para a privilegiatura levaria os explorados às ruas para bradar contra o fim da própria espoliação.

Nem é da velha esquerda que se trata. Esta, de PT a FHC, não foi derrotada nem pela direita, nem pela internet. Morreu de morte morrida. Perdeu o trem do 3º Milênio e sumiu. Não tem proposta nenhuma pra nada. Por isso só fala de sexo. Mas dentro do universo do debate racional muita gente boa também tem boiado na interpretação do que está aí. O que explica essa desorientação é o vício muito brasileiro de excluir o povo de suas conjecturas. As “vitórias” e “derrotas” são sempre dos demiurgos. Tudo acontece ou deixa de acontecer exclusivamente graças a eles, e “é bom que seja assim” porque o povo brasileiro ignorante, coitado, não sabe o que é bom para ele próprio.

Ficou para tras do congresso que, vivendo de voto, logo entendeu que algo tinha mudado e deu 379 a 131. 64% da bancada do Nordeste (74% da do SE) votou a favor. Com isto querem crer os mais otimistas que por cima da constituição torta e da lei viciada, o Brasil já é governado pelo povo que tem encontrado os meios de dobrar os governos, as oposições e as instituições alinhadas contra os seus interesses. Tem um remoto fundo de verdade nisso. Mas não é realista relevar o quanto a falta de dinheiro para pagar funcionários terá pesado para fazer finalmente subir a cancela com que ha mais de 20 anos a privilegiatura mantinha a reforma da previdência barrada na porta do aparato das decisões nacionais, assim como imaginar que passado o sufoco ela jamais voltará ao ataque para nos impor o que não conseguiu com os “destaques” tentados.

Todos os problemas do Brasil, sem exceções, são consequência direta ou indireta da absoluta independência do País Oficial em relação ao País Real, e toda vez que esquecermos isso estaremos perdendo tempo (e vidas, muitas vidas). Na sequência da aprovação dessa reforma de que foram cirurgicamente extirpados todos os componentes revolucionários como a desconstitucionalização dos privilégios e a instituição do regime de contribuição, houve quem escrevesse sobre “a lentidão das decisões econômicas” e lembrasse que “foi preciso um impeachment e uma crise asfixiante” para que fizessemos a reforma com 20 anos de atraso, como se essa lentidão não passasse de preguiça ou respondesse a duvidas reais.

Sobre a reforma tributária, ha mais de meio século tida como “urgentíssima” por todos os especialistas, ha uma inflação de propostas no Congresso e nenhum sinal de consenso. Mas não é só por vaidade dos economistas. A razão real do marasmo é a de sempre: ha dois Brasis e o País Oficial, que decide por ambos, não paga os impostos que impõe ao País Real, logo não tem pressa. A questão decisiva para quem, mundo afora, optou por um ou outro sistema tributário é que onde o sistema apoia-se no imposto de valor agregado cobrado sobre o consumo o povo tem a ultima palavra sobre as decisões, logo o critério decisivo é o da transparência e justiça do imposto cobrado, e onde o de transações financeiras chegou a ser implantado o povo não participa das decisões e então o critério passa a ser só o do volume e o da facilidade de arrecadação.

Martela-se, ainda, no “mente quem diz que é possível baixar a carga de tributos no Brasil”. Mas mente mais ainda quem não acrescenta a esse raciocínio o seu complemento obrigatório, qual seja, “enquanto não se reduzir a farra do estado”. Dar por intocavel o tamanho do estado é dar por intocavel o tamanho da miséria do Brasil. É condenar mais uma geração que luta a viver no brejo e na guerra para que mais uma geração que não ganhou os privilégios que tem trabalhando possa desfrutá-los ao sol e em paz. O Brasil jamais poderá competir pelos empregos do mundo com o Estado custando o tanto que impede que os nossos impostos sejam tão baixos quanto os do resto do planeta, ou mais para compensar o handicap educacional que pagamos.

Todos esses raciocínios desviantes e desviados só podem ser abertamente defendidos no Brasil porque o eleitor é absolutamente impotente passado o ato de depositar o voto na urna. Eleições distritais, recall, referendo, iniciativa e eleições de retenção de juizes são a unica garantia jamais inventada de que o jogo será jogado sempre a favor do eleitor. Essas ferramentas são as manifestações de rua sistematizadas e instituidas como fator decisivo de sucesso de qualquer proposta de solução. É como a bomba atômica. Não precisa ser disparada. Basta o inimigo saber que você a tem para que passe a respeita-lo.

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§ 21 Respostas para O custo da impotência do eleitor

  • Peter Lessmann disse:

    Você é o meu “bench mark” máximo em objetividade

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  • marcos a. moraes disse:

    Vc, ao fornecer dados, acerta e nos municia, mas ao criticar é autocrata. Nada é pior no Brasil de hoje do que as denuncias do hacker contra os cafajestes de Curitiba e JMB. Vc votou neles por causa do medinho PT.

    Assista ao Painel da News e vc verá o representante dos empresários boçalnaristas exigindo a implantação do que vc combate aqui, na reforma tributária.

    Perfeito aqui: “A questão decisiva para quem, mundo afora, optou por um ou outro sistema tributário é que onde o sistema apoia-se no imposto de valor agregado cobrado sobre o consumo o povo tem a ultima palavra sobre as decisões, logo o critério decisivo é o da transparência e justiça do imposto cobrado, e onde o de transações financeiras chegou a ser implantado o povo não participa das decisões e então o critério passa a ser só o do volume e o da facilidade de arrecadação.”

    Já esta aqui é ridícula: ” Martela-se, ainda, no “mente quem diz que é possível baixar a carga de tributos no Brasil”. Mas mente mais ainda quem não acrescenta a esse raciocínio o seu complemento obrigatório, qual seja, “enquanto não se reduzir a farra do estado”. ”

    Quem mente mais é JMB que nem sequer passa perto da 1ª frase. Já a 2ª precisa do apoio popular – que não há – e principalmente do apoio explicito e escarrado de JMB que nunca o dará, porque faz parte da farra desde que resolveu ser militar.

    Vc votou errado e atrapalhou a sua luta.

    MAM

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  • fcml22 disse:

    Caro Fernão, apesar de considerar suas teses impecáveis, todas sem exceção, às vezes eu acho que você está enxugando gelo, note essa sua frase no texto em pauta: (…) “levaria os explorados às ruas para bradar contra o fim da própria espoliação.” e, mude-a para: levaria os privilegiados a votarem no parlamento contra o fim da sua própria suserania. Digo isto no contexto que tange ao voto distrital puro, seu tema principal, desde que acompanho suas magistrais escritas, aqui e no Estadão. Infelizmente, para mim acabou a esperança, só vejo uma solução definitiva: Guerra Civil!

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    • Fernão disse:

      mas você acaba de ver, fcml, os privilegiados votando no parlamento contra a sua própria suserania. e só não foram mais fundo porque quem exigiu que assim fosse, aqui fora, não exigiu o bastante…

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  • marcos a. moraes disse:

    Misturar PT com FHC é abjeto; é coisa de Dória. Sugiro que vc monte a sua seita. MAM

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    • Olavo Leal disse:

      Ué! Até onde sei, FHC foi quem apoiou Lulla (então futuro Lullallau!), na eleição de 2002 – isso é notoriamente público!!! Então, FHC e o ex-presidente-agora-presidiário têm tudo a ver… assim como as consequências desse apoio vil, que é, sim, abjeto, mas em sentido contrário ao exposto.

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  • Lourenço disse:

    Ainda bem que sua seita será diferente de FHC

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  • Walter Alba disse:

    Brasil, junto com Argentina, tem a cargas tributária mais elevada dos países emergentes. Uma empresa brasileira gasta em média mais de 2000 horas em atender as exigencias do Estado. Brasil é o único pais do mundo que paga aos aposentados do Estado, salario integral mais paridade, enquando os do INSS recebem em média R$1500. Por outro lado, os serviços públicos são piores que os da maioria do paises emergentes. Até pouco tempo atrás a corrupção era gritante.
    Os artigo do Fernão, se baseiam nas medidas tomada pelos dois países que melhor combateram desmando e a corrupção: os USA e a Suiça. Voces não acham que algo tem que mudar?

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  • Luiz Inacio Borges disse:

    Bom dia!!!

    Parabéns pelo artigo. Na mosca.

    E o nosso jornal Estadão? Eu e minha família somos assinantes há mais de 40 anos e, atualmente, me sentindo triste com a atual linha editorial do jornal.

    Lamento muito.

    Atenciosamente,

    Luiz Inácio Borges

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  • Carlos U Pozzobon disse:

    O fato é que no Brasil o estado é o representante dos interesses nacionais. E, como tal, cabe a ele decidir o que é bom para o resto, colocando os seus primeiros e distribuindo a sobra para a população. Era assim na coroa portuguesa, quando o funcionalismo era pequeno, mas a fradalhada pendurada nas sinecuras do Império, imensa. Este apartheid social não seria construído sem a anuência da imprensa, que, como seu artigo diz, se comporta como se o interesse público fosse o das castas, deixando para o verdadeiro público o circo estimulante das banalidades cotidianas.
    A AMPERJ já declarou que a reforma da previdência viola os chamados “direitos adquiridos”, e prepara a artilharia de recursos para desfazer o legislado para o segundo semestre. Se tal ocorrer, a reforma da previdência não passará de um sonho de inverno, aqueles que acontecem nos períodos de férias quando todos imaginam estar em outro mundo.

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  • Herbert Silvio Augusto Pinho Halbsgut disse:

    O Brasilnecura luta ardilosamente para proteger seus ninhos de serpentes e, nos bastidores da “República” muita coisa antidemocrática deve estar sendo urdida nesse entreato da votação da reforma da previdência Realmente covardes não faltam em nossas instituições – todas – que novamente estão em frangalhos , como o demonstrou no passado Júlio de Mesquita Filho, diretor do jornal O Estado de São Paulo. Lembramos que funcionários públicos até a bem pouco tempo não contribuíam para a Previdência Social, que paga integralmente suas aposentadorias integrais, que são aumentadas anualmente com os mesmos índices dos funcionários que estão na ativa. Vamos ver como e que tipo de reforma da Previdência vai ser parida no Congresso Nacional e o que os senhores representantes do Povo pensam do povinho CLT – a grande maioria dos brasileiros – que os elegeu e arca com tudo e quase nada recebem como direito. Guerra Civil nem pensar, mas que a desobediência civil poderá vir a ser praticada em massa se as reformas não forem democráticas é previsível O ambiente para a implantação do voto distrital com” recall”, referendo, iniciativa… está começando a fermentar, até nos meios judiciários! Gosto de ver que os textos de Fernão geram muitos comentários, que ocorrem de forma demorática, sem mordaça! Tal pai, tal filho e neto!

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    • Olavo Leal disse:

      O maior problema quanto às mudanças na Previdência são os direitos adquiridos por diversas categorias, que se perpetuarão até o falecimento do último aquinhoado – daqui a algumas a décadas!. Então, uma solução seria recolher um elevado percentual sobre os ganhos acima do teto do INSS – hoje um pouco abaixo de seis salários mínimos -, ou seja, algo como a tabela do IR: o excesso acima do teto até o dobro recolheria, digamos 25%; do dobro ao triplo, 35%; e daí a mais, 50%. E ainda sobraria muito dinheiro para os aquinhoados viverem bem demais, contribuindo, até a cessação da pensão, para os cofres do INSS. Lembrar que esses aquinhoados levam a vida ganhando o suficiente para adquirir muitos bens e realizar muitos investimentos.

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      • Herbert Silvio Augusto Pinho Halbsgut disse:

        Sr. Leal, permita-me lembrar que funcionários públicos federais tem acesso a cartão de crédito corporativo sem limites, empréstimos bancários os tinham, ou ainda tem, com juros baixos impensáveis para os cidadãos comuns, não privilegiados, e outras regalias como os famosos penduricalhos que transformaram seus contracheques em verdadeiras cornucópias. Tenho muitos amigos que são funcionários públicos e outros tantos a quem respeito de forma generalizada, com civilidade, afinal conquistaram seus privilégios jogando de acordo com as regras do jogo, mas o problema está nessas regras estabelecidas por décadas no Congresso Nacional – o grande crematório do bem comum – , seguido pelas Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais, num processo corporativista que dificilmente será corrigido num país onde se encara como normal “tirar vantagem em tudo”, como o jogador de futebol falava naquela infeliz propaganda. A saída é clara: voto distrital puro com “recall”, referendos, iniciativas… como maneira de se incluir os cidadãos como cidadãos de fato emanando seu poder conforme determina nossa Carta Magna, baseada no Estado Democrático de Direito .

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      • Olavo Leal disse:

        Caro Sr Herbert (sobre seu comentário de 17/Jul 19, 13:35hs): Concordo com todo o seu comentário (a corrigir, creio, o fato de os cartões de crédito corporativos não serem extensivos a todos os funcionários, mas a uma elite privilegiadíssima), mormente com o final, sobre voto distrital puro com recall, referendos e iniciativas, que constituem, realmente, A SOLUÇÃO para os males políticos que nos afligem.
        Sobre minha proposta, esta se baseia na possibilidade de o Congresso legislar sobre os ganhos previdenciários acima do teto do INSS, de imediato. Não sei se seria possível – sempre o direito adquirido! -, mas constituiria uma elevada quantia endereçada aos cofres do INSS, recolhida apenas sobre o ganho acima do teto.
        Abs

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  • Antonio Salles Neto disse:

    Suas análises agregadas a sínteses são primorosas e economizam muito de nosso tempo, funcionando como um serviço.
    Essa visão explica a força e dedicação extremas, empregadas a qualquer custo, pelos membros da Corte Estatal brasileira. Os 2,3 milhões de seguidores da monarquia social pós-moderna vão fazer o diabo para não perder.

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