California dreamin’
22 de janeiro de 2019 § 19 Comentários
Artigo para O Estado de S. Paulo de 22/1/2019
Queixam-se do Congresso mas o nosso maior problema está no pedir e não no que nos é entregue. A falta de qualquer referência não européia nos põe mais longe da saída que todos os outros percalços somados.
A relação interpessoal proporcionada pela internet, lamentava-se o franco-uspiano Fernando Henrique Cardoso num programa que comparava os fenomenos Trump e Bolsonaro na TV na virada do ano, bagunçou um coreto que foi armado para e pela intermediação dos partidos (sustentados pelo governo), atraves das TVs (outorgadas pelo governo), da imprensa e do resto desse nosso “sistema de representação do povo” sem povo. Do outro lado da mesa esbravejava um representante da outra corrente européia com que nos alternamos quando a terceira, a abertamente antidemocrática, dá folga. “Prendam todos! Não deixem nenhum à solta”! A provocação era trancafiar FHC também, mas essas duas faces da nossa “persona” européia se odeiam mas são gêmeas. Para uma “o sistema” é bom, o que falta é só política. Para a outra “o sistema” é bom, o que falta é só polícia. Nutrem ambas um mal confessado horror à falta de glamour e refinamento da igualdade não intermediada. À vida regida pela base da sociedade e não pela “autoridade dos melhores” (aristo-kratia). Ao império sem filtro da lei, à meritocracia e à destruição criativa.
Mas nós falamos, afinal, do “pior dos regimes políticos, excluídos todos os outros”. E é aí que encaixo Roberto Damatta relatando sua própria experiência de brazuca emigrado para os Estados Unidos no artigo “Encruzilhadas” publicado neste jornal nesta quarta-feira, 16, em que escrevo. “Passar da desigualdade para o igualitarismo requer acrobacias sociopsicológicas (…) impossíveis de praticar sem um exame aprofundado (…) de quem fomos e de quem somos porque os costumes são tão coercitivos quanto as leis”. Não temos conserto dentro desse “passado aristocrático absolutamente eurocentrado de imperadores (…) e a massa negra escravizada (…) que nossos pensadores viam (e inconfessadamente continuam vendo até hoje) como natural”.
“A reforma previdenciária”, resumia Damatta, “tem de fazer parte de um movimento arrebatador. Trata-se, no fundo, de uma guerra do Brasil contra o seu lado equivocado”.
Os Estados Unidos menos americanos, o federal, estão à beira da disrupcão como farsa pela mão de Donald Trump, O Tapeador, mestre da manipulação das redes. Já a Europa saiu do feudalismo mas o feudalismo nunca saiu da Europa. De lá vieram e nos foram impostos “os costumes tão coercitivos quanto leis” que estão aí até hoje mas nós já nem sentimos. O Brasil pós-Tiradentes passou a censurar com fúria a nossa americanidade essencial de povo até então sem rei e nunca mais parou. E quanto mais privilégios os nossos “representantes do povo” independentes do povo “adquirem” e transformam em lei mais se inverte e perverte a hierarquia povo-governo que a democracia nasceu para estabelecer até transformar-se nesse esdrúxulo feudalismo constitucional a que acabamos por nos acostumar.
Para termos democracia será preciso, antes de mais nada, aprendermos a identificá-la. “Esse sistema sempre em débito consigo mesmo, inacabado e caracterizado por permanentes ajustes”, na descrição de Damatta, define-se essencialmente pela quantidade de poder que o eleitor tem antes e depois do momento da eleição para levar adiante esses ajustes. E o brasileiro não tem nenhum.
É essa a doença. Corrupção é só ausência de democracia e não vai acabar apenas com polícia. Não é da Europa que a resposta virá. A democracia real é a anti-Europa. Nasce em função da ausência do rei e caminha de oeste para leste. Da América impôs-se à Europa. Da Costa Oeste impôs-se à Costa Leste dos Estados Unidos. No Brasil será parecido. O último a entrar será o da praia.
Nos primeiros dias deste ano a Califórnia, que ainda no século 19 começou a revogar o modelo estático que nos oprime, contabilizava a safra de democracia dos 12 meses de 2018. Que Trump, que nada! 726 leis de inciativa popular, referendos de leis dos legislativos, votações de retomada de mandatos (recall), eleições de retenção de juízes e outras decisões foram diretamente votadas pelos californianos nas 9 “eleições especiais” convocadas para esse fim além da nacional de 6 de novembro. Quase uma por mês.
Dentro do sistema distrital puro, começando pela célula do bairro que elege o board de pais de alunos que vai gerir a escola publica local e seguindo pelos distritos eleitorais municipais (uma soma dos de bairros), estaduais (uma soma dos municipais) e federais, cada pedacinho do país elege apenas um representante para cada instância de governo. Como o que define o distrito é o endereço do eleitor todo mundo sabe exatamente quem representa quem. E sendo a identificação tão clara ele retem o direito de cassar o mandato do seu representante a qualquer momento mediante a coleta de assinaturas e a convocação de “eleições especiais” só no distrito afetado para decidir essas e outras questões.
As que envolvem impostos não têm exceção. Nenhum nasce ou se mexe sem voto. As que ordenam obras publicas e decidem como serão financiadas idem. Os futuros usuários decidem se as querem ou não no modelo e pelo preço proposto e estabelecem, uma por uma, quem, como e quando vai pagar por elas. Valor do IPTU, construção ou não de uma ponte, valor do salário minimo local, reajuste de planos de saude, liberação ou não da maconha, normas para compra e uso de armas, tudo é decidido no voto em cada distrito eleitoral municipal, estadual ou federal somente por quem vai usar cada bem, pagar por ele ou ser obrigado a se submeter à lei em exame.
Olhado a partir da meca planetária da inovação política, que não por acaso é também a meca planetária da inovação tecnológica, o mundo não parece, portanto, tão disfuncional quanto Fernando Henrique o vê. Essa democracia e as redes têm tudo a ver. Nós é que, desde 1808, andamos com a cabeça sabe-se lá aonde.
Mudar o país de dono, vulgo democracia, é o que cura o Brasil.
O caminho do gol
31 de julho de 2018 § 16 Comentários
Artigo para O Estado de S. Paulo de 31/7/2018
É o que se viu na Copa do Mundo. Gol, hoje, só de bola parada em jogadas ensaiadas à exaustão. Ou então, em função de velocidade. De contra-ataque, de lançamentos longos e precisos, de rapidez de saida de bola. De frente, furando retrancas de gigantes, é praticamente impossível. A raça humana evoluiu. O biotipo é outro. O campo ficou pequeno, atravancado de tão ocupado. Tapeação, então, nem pensar. Acabou o espaço tanto pro amadorismo quanto pra malandrice.
Na competição economica é a mesma coisa e ha muito mais tempo que no futebol. A velocidade de resposta à mudança é a condição para a sobrevivência no jogo global.
Os Estados Unidos viraram o que são porque durante um século inteiro só eles tinham essa agilidade num mundo inteiramente engessado pela burocracia e pelo imobilismo que sempre sustentaram todo esquema de privilégio. É verdade, eles começaram do zero. Não tinham uma realeza pra revogar. Nenhum rei inglês com sua corte foi ser imperador por lá. A chave pro esquema deles funcionar foi garantir a fidedignidade da representação. Levou mais de 2 mil anos pra inventar. Primeiro trocar o rei pelo voto da maioria, à grega. Depois, quando a democracia deixou de caber numa praça, eleger representantes para governar, à romana. Então, fazer o governo controlar o governo com tres poderes independentes. E, finalmente, armar a mão dos representados para submeter de fato a ação dos representantes à vontade deles e picar o todo em pedacinhos para poder ir consertando cada parte no seu tempo e na sua velocidade sem ter de parar tudo a cada passo.
Mudaram o poder de dono e lá se foram, com recall, referendo e iniciativa, livres para corrigir todo erro que se apresentasse como erro, fazer eleições especiais para trocar uma peça aqui, eliminar uma lei defeituosa ali, instalar um novo mecanismo sempre que sentissem que era necessário, enquanto o resto do mundo, que de democracia tinha só o som, seguia atravancado de eleição marcada em eleição marcada, perseverando em erros petrificados na constitucionalização de privilégios, tropeçando a cada passo em juízes ladrões e políticos surdos todo poderosos.
Velocidade de mudança! Capacidade de se adaptar, como sociedade, a uma realidade cada vez mais mutante, respeitando as diferenças entre as suas partes. Livres o bastante para estimular a criatividade a ponto de produzir ciência, mas armados da condição de se adaptar às consequências da produção de ciência. Mandando e não sendo mandados.
Hoje a China está levando uma vantagem momentânea porque os ditadores – agora à frente de esquemas de capitalismo de estado – têm mais velocidade de mudança que a democracia. Mas é uma vantagem relativa. Rápido demais pra ser seguro. Eles mesmos, no fim da linha, convertem o que ganham em títulos do Tesouro ianque porque sabem que o presidente americano é o unico do mundo que não pode fazer o que quiser na hora que quiser. Porque sabem melhor que ninguém que segurança jurídica, o unico antidoto contra a súbita liquefação de toda e qualquer riqueza conquistada, é as “majestades”, os “guias geniais de povos”, os “the guy”, as “excelências” e os “meritíssimos” da hora estarem estritamente “under god and under the law”. Ou vale o fato e não a “narrativa” e a lei é igual pra todo mundo, ou não dá pra ter controle de nada.
Todo o aparato da democracia, aliás, não é senão uma ferramenta evoluída para facilitar a mudança. A gente elege representantes, tem um Legislativo, um Judiciário e um Executivo funcionando dentro de regras de todos conhecidas para poder ir mudando as coisas na medida da necessidade sem ter, nem de entregar a direção do nosso destino para um déspota todo poderoso, nem de fazer uma guerra entre os interesses contrariados a cada vez que for preciso reajustar as coisas. Se fosse pra tudo ficar sempre igual não precisava de nada disso. Era o que acontecia no sistema feudal em que uma minoria que tinha tudo era sustentada por uma maioria que não tinha nada e, como só ela mandava, ninguem queria mudar nada.
No Brasil tudo está errado porque a representação do país real no país oficial está falsificada. Semana passada este jornal mediu. Temos 25% do Congresso Nacional constituido por funcionários publicos. Eles são 11,5 milhões de pessoas ou 5,5% da população mas a sua representação é cinco vezes maior que a sua dimensão real. E o fato dos outros 75% de congressistas não serem funcionários públicos com carteira assinada antes de se eleger não quer dizer que deixarão de apoiar os interesses deles depois. Primeiro porque são convertidos em funcionários públicos para efeito de desfrute de todos os privilégios que se auto-atribuem assim que são eleitos. Segundo por medo da retaliação implacavel dos que já estavam lá antes deles de que é alvo todo mundo que ousa faze-lo. Mas principalmente porque estão livres de qualquer consequência se trairem o seu eleitor, que tem todos os direitos sobre o seu representante cassados assim que deposita o voto na urna.
Que descrição mais perfeita poderia ser feita de uma ditadura?
Nós vivemos tempo demais e confortavelmente demais dentro dessa mentira. Nossas escolas foram destruidas. A consciência critica da nação não foi apenas “aparelhada”. Darwin deu quatro, cinco, dez voltas no relógio. Uma raça foi apurada dentro dela. Sobrou muito pouco mais que os ratos e as baratas.
Só a vivência da virtude cria virtude. Só a possibilidade de vitória da virtude engendra a virtude. No sistema que temos isso é impossível. E não ha pacote de reformas que conserte isso de uma vez. Nos somos muitos brasis. Fomos todos humilhados e ofendidos mas fomos afetados de forma diferente pela ação dessa força desviante tão persistente. Cada Brasil tem as suas carências e as suas prioridades. E só cada um deles sabe por onde começar. Nós precisamos é mudar o jeito de fazer. Parar de sermos mandados e passarmos a mandar. E, então, ir refazendo tudo, pedaço por pedaço, na velocidade que cada Brasil avaliar como possível.
A reforma que contem todas as outras
27 de junho de 2018 § 16 Comentários
Artigo para O Estado de S. Paulo de 27/6/2018
Em matéria de reforma de instituições a ordem dos fatores determina o resultado. O erro fundamental dos criticos do desastre brasileiro está em não discernir o que é causa do que é consequência do desvio essencial que produz e reproduz as instituições tortas que temos. Primeiro que esse “tortas” depende de quem olha. Para a “1a classe” elas estão funcionando exatamente como foram desenhadas para funcionar, menos pelo exagero do seu “acerto”. Mas da “2a classe” para baixo, perdem-se todos em desenhar, cada um segundo a sua área de especialização ou a ordem de prioridades com que elas afetam a sua atividade, listas de reformas tão extensas que no final, todos, mesmo os mais convictos da necessidade de cada uma delas individualmente, recuam de forçar o desencadeamento da mudança porque o país é um avião em voo, a vida é uma só e o risco de fazê-lo parar no ar é sempre maior que o de continuar voando mal.
É isso, mais que tudo, que tem garantido a continuação do que está aí.
Instituições servem a quem as desenha e detem o poder de instituí-las. E é isso, essencialmente, que está errado e precisa mudar no caso brasileiro. Se é o povo que queremos servido, é ao povo que devemos entregar a tarefa de desenhar e redesenhar; instituir e desinstituir as nossas instituições. O que nos faz falta é conquistar os meios de errar e aprender com nossos próprios erros em vez de seguirmos tangidos pelos erros alheios para encalacradas “petrificadas” no tempo e no espaço ou, definindo mais precisamente o que ocorre aqui, sendo obrigados a tragar eternamente os acertos dos bandidos para viver às nossas custas enquanto mantêm-nos impotentes para fazermos nossas próprias escolhas.
A unica instituição definitiva, deve ser a que estabelece o modo de promover e legitimar mudanças. Tudo mais deve ser desenhado para facilita-las mesmo porque toda “solução” é só o início do próximo problema e é de fundamental importância ter essa transitoriedade em mente pois o que determina a sobrevivência na arena da competição planetária, hoje como sempre, é a velocidade de adaptação à mudança.
Nunca foi fácil promover mudanças coordenadas e pacíficas. Na era da comunicação total, ironicamente, ficou ainda mais difícil. Estamos na idade do ouro do rancor. O ódio é o novo ópio do povo. O Google transforma os mais insignificantes deslizes do comportamento humano em manadas de dinosauros galopando desenfreadamente pela rede para todo o sempre, direcionados com a persistência dos algorítmos e a precisão do “microtargeting” para pisotear o nervo mais sensivel de todos que, no passado, no presente ou no futuro, manifestarem o menor sinal de sensibilidade a eles. Este viver sem o esquecimento cria tribos que as “polícias do pensamento” atiçam umas contra as outras, o que desperdiça toda a energia da cidadania em aprisionar em modelos institucionalizados comportamentos que, por definição, só podem ser realmente livres no espaço infra-institucional. E isso desvia o foco da coletividade da única condição que nos une a todos que é a de súditos semi-escravos da “1a classe”.
Nunca houve acordo com relação a um destino final de chegada para toda a humanidade e, desde sempre, “autoritário” é quem tenta impor o seu e “totalitário” quem criminaliza o destino escolhido pelo outro, seja um governo, uma ferramenta privada ou os dois juntos o instrumento dessa imposição. É perfeitamente possivel, no entanto, alcançar um denominador comum em torno de um “manual de navegação” das águas agitadas da diferença. A democracia moderna nasce exatamente da aceitação madura e tranquila da ausência de certezas. E a genialidade do sistema está em criar um arranjo de instituições absolutamente estaveis e seguras para dar a cada um a condição de processar do seu jeito a instabilidade e a insegurança inerentes ao estar vivo sendo parte de numa sociedade.
No sistema verdadeiramente democrático a única instituição “imexível” é a que define quem, exatamente, representa quem no panorama institucional, e os mecanismos de processamento das mudanças que podem e devem ocorrer em todas as demais ao sabor da necessidade. Como toda forma de governo, a “democracia representativa” também é uma hierarquia. E que os representados mandam nos representantes é uma noção inerente ao conceito de “representação”. A fórmula que permite operar essa hierarquia para a mudança com agilidade, segurança e legitimidade é a inventada pelos suiços ha mais de 700 anos que metade do mundo copiou nos ultimos 100: eleições distritais puras (federalismo) com retomada de mandatos (recall) e referendo de leis dos legislativos por iniciativa dos representados a qualquer momento.
É essa a reforma na qual o país tem de concentrar suas forças. Todo o resto com isso se constrói.
O cidadão deve ser o imperador absoluto da sua área de residência. A menor instância eleita de representação deve ser o conselho de direção da escola pública do bairro, constituido por pais de alunos moradores dele encarregados de gerir o dinheiro dos impostos que pagam para a educação de seus filhos. Ele deve contratar o diretor e cobrar-lhe desempenho. Um certo conjunto de bairros formará um distrito municipal que elegerá o seu representante para fazer as leis da sua cidade. Uma constelação de distritos municipais constituirá um distrito estadual e destes se farão os distritos federais. Todos os eleitos devem ser demissíveis a qualquer momento e suas leis revogáveis por votações de retomada de mandatos ou referendos convocados nos seus distritos.
Com todo mundo sabendo exatamente quem é quem, então sim, cada um segundo a sua necessidade, consultados os demais eleitores do distrito, ordenará ao seu representante que escreva e reescreva leis para ter ou não “escolas com partido”, funcionários estáveis ou não e mais ou menos bem pagos, impostos mais leves ou não, e para quê, juizes com mais ou menos poder de arbitrio, o crime tratado assim ou assado, constituições mais ou menos “petrificadas”, pessoas com mais, com menos ou com nenhuns “direitos adquiridos”.
Acaba o papo furado e a verdade passa a imperar.
Essa crise econômica eterna é ecológica
19 de junho de 2018 § 9 Comentários
Artigo para O Estado de S. Paulo de 19/06/2018
O Brasil não se desinteressou da política propriamente. A política é que se desinteressou do Brasil. Não precisa mais dele. Ainda faz um pouquinho de cerimônia mas é mais pra disfarçar.
O debate ideológico acabou, aliás, no mundo inteiro. Ninguém mais precisa ser convencido de nada. Não ha mais sistemas concorrentes. Nem King Jong Un nem o Castro que resta acreditam “na revolução”. A diferença que subsiste diz repeito tão somente a quem tem o direito de se apropriar de que parcela do resultado e por quais critérios, o da força ou o do esforço. E onde o estado gasta mais de 100% do que arrecada com “pagamento de pessoal” e não investe um tostão furado no que interessa à coletividade deixa de haver qualquer duvida sobre qual a escolha feita.
Só o que há aqui é um jogo de força entre fações pelo comando do butim. A “privilegiatura” nos impõe sua rapina na porrada falsificando cada vez mais ostensivamente os processos de “legitimação” da sua brutalidade. Desmancha nos tribunais o que os representantes eleitos do povo eventualmente decidem a favor do povo. Fecha cada vez mais a porta da mudança com o “financiamento publico” de campanhas e com as regras de tempo de comunicação entre candidatos e eleitores na televisão. E ao impor, agora, a proibição (!!) da produção de provas materiais contra a falsificação do voto assume-se oficialmente como o que quer vir a ser.
Houve uma aposta forte o suficiente para deter a marcha-à-ré e colocar o país andando para a frente na altura da instalação do governo Temer apenas porque, apesar de todos os pesares, ele assumiu com o tipo de discurso consequente que precede obrigatoriamente as ações consequentes. Ninguém tinha ilusões sobre a dificuldade de transformar aquelas palavras em atos, mas o preço é função da escassez e nem esse tanto pouco nós jamais tinhamos tido. O mercado reagiu mais por saudade que por esperança…
Atingido abaixo da linha d’água por intenso canhoneio por ter ousado tanto – e tão somente por ter ousado tanto – o governo Temer teve o discurso da reforma de que até então não se ousava dizer o nome enfiado goela abaixo de volta com todas as suas escamas e espinhos apontados na direção de machucar. Cada vez que tentou ressuscita-lo o bombardeio recrudesceu na forma de dossies vazados para uma imprensa fácil diretamente pelas corporações que se apossaram do estado para construir uma “privilegiatura”. Uns apontam o herege e fornecem a lenha, os outros encenam os autos-de-fé. Como todo mundo se elegeu do jeito que a lei mandava, quem ataca a “privilegiatura” tem os contatos de mucosas com os financiadores de campanha que todos tiveram escancarados com escândalo na televisão, tão certo quanto que o sol vai nascer amanhã. Para qualquer grau de obscenidades outras ha recurso … e disposição para o silêncio. A aposta é, portanto, em Darwin. Sobrevivência dos mais adaptados. A lei só se impõe pela certeza do castigo e o país está sendo ensinado a duras penas que a do crime é a unica que não falha.
Esgotado o discurso das reformas o governo Temer – como qualquer outro presidindo o colapso de uma nação esgotada por um sistema de privilégios – não tem mais nada a dizer. Tenta resistir vendendo a memória das “conquistas” que decorreram da antecipação pelo mercado de uma ate então impensavel reforma da previdência publica escondida no bojo de um mero ajuste da outra, mas é tarde. Paga – e nós junto – pela covardia de não ter enfrentado o leão de fente. A condição descamba para o desespero, porém, a cada centímetro que o discurso dos candidatos a substitui-lo se afasta da reforma da previdência pública. E não ha exceções. Quem não é assumidamente covarde é omisso.
Excluída a discussão da cura possível, tudo que subsiste é a distilação de bilis dos que se dispõem a isso, discurso que uma parcela do eleitorado compra ao menos como vingança. E então cai-se no pior dos mundos. Não ha reserva de moeda forte que aguente…
A economia é só uma medida do estado de sanidade do ecosistema institucional onde uma sociedade vive e tenta progredir. E o nosso entorta a partir da raiz. Nossa eterna crise economica é efeito, não é causa.
Todo sistema de governo é uma hierarquia. Estabelece quem manda em quem. Democracia é a forma de governo em que os representados mandam nos representantes e aqui o que acontece é o contrário. A essência da tapeação que nos impingem é que desamarrado o representante dos seus representados, todos os outros mecanismos macaqueados de sistemas democráticos para proteger os representados protegendo os seus representantes passam a jogar para inverter essa relação. Ficam eles armados para jogar só para si e contra nós e invocar as “instituições democráticas” para defender a sua moeda falsa.
Desentortar o Brasil é, portanto, muito mais simples do que parece. Basta amarrar firmemente cada representante eleito à parcela exata do eleitorado que ele representa, e dar a esses eleitores poder de vida ou morte sobre o mandato dele antes e, principalmente, depois da eleição. Isso se consegue com eleições distritais puras, direito de retomada de mandatos e referendo de leis pervertidas por iniciativa popular a qualquer momento. Armados assim os representados ficam os representantes permanentemente sob mira e impotentes para nos meter em caminhos sem volta. E isso abre o país à reforma permanente que é a condição natural de qualquer organismo vivo com pretensões a manter-se vivo num ambiente em permanente mudança.
O resto acontece sozinho. Todo mundo acaba indo em direção à felicidade se lhe for dado escolher em que direção quer andar.
Quanto a como instalar esse processo, também é simples. Encha-se de povo as principais praças públicas das principais cidades do país com metade dos manifestantes segurando o mesmo cartaz duas ou tres vezes ao longo de um ano e a coisa acontece. Exatamente do mesmo jeito que conquistamos a nossa última façanha “impossível”.
O Brasil na casinha do cachorro
20 de dezembro de 2017 § 36 Comentários
Em nenhum campo mais que no da política “o meio é a mensagem”. É o sistema que faz as pessoas e não o contrário. Ha sempre um elemento de “o ovo ou a galinha” nesse raciocínio mas o fato é que, como McLuhan demonstrou em sua obra, a alteração do meio, ou seja, da tecnologia institucional em uso, é muito mais determinante para definir ou mudar os resultados (as mudanças sociais e comportamentais necessárias) que o conteudo que transita por esse meio (o discurso do bem ou mesmo a boa intenção que, porventura, tenha nascido sincera).
O caso brasileiro é um exemplo eloquente. Seja quem for que ingresse na política ou no serviço publico do jeito que o “sistema” opera hoje, acaba por se corromper. A qualidade da matéria prima inserida no “processador” pode alterar a velocidade da corrosão mas ela é incoercível. Ninguem mergulha nesse mar de privilégios e impunidade e sai incólume. O bom comportamento num ambiente assim acaba assumindo o ar de uma denuncia. Ou o recem chegado se corrompe ou acaba sendo expelido como uma ameaça para os demais. Já começa, aliás, por se acumpliciar pois para entrar na política é obrigatório “acertar-se” com o dono de algum dos partidos que já vivem de dinheiro do governo e da distribuição de pedaços do estado enquanto no serviço público impera o espírito do “concurseiro” a quem não interessa quando nem onde, tudo que conta é por um pé dentro do privilégio…
Daí para a frente cria-se uma cadeia causal. O de entrada é um sistema de seleção negativa. O de permanência um filtro mais fino ainda. E como o “negócio” passa a ser a criação de dificuldades para proporcionar a venda de facilidades, essa filtragem negativa se estende para a sociedade como um todo. Quem insistir no caminho da lei morrerá afogado na burocracia pois para seguir adiante na velocidade que o mundo requer, é preciso subornar.
Em estados tanto quanto em empresas, é o sistema de governança muito mais que o esforço despendido por cada indivíduo solitariamente que define o resultado do trabalho. É uma ilusão de noiva achar que algo vai mudar mudando-se apenas as pessoas na operação do mesmo sistema político.
O sistema político faz a riqueza ou a pobreza das nações. É uma falácia o argumento de que o Brasil jamais poderia ter um sistema civilizado. Os suíços os e os americanos, entre outros, não nasceram como são hoje. Eles ficaram como são hoje porque por uma conjunção específica de acontecimentos históricos, cada um em seu momento, adotaram um sistema que resulta num filtro de seleção positiva. Não têm o sistema político que têm porque eram mais educados, mais ricos, ou mais virtuosos que os demais no ponto de partida. É o contrário, eles ficaram mais ricos e educados porque instituiram um filtro de seleção positiva. A matéria prima é a mesma aqui e lá, mais inclinada para o vício que para a virtude. Apenas lá, ao contrário daqui, o estado trabalha para desimpedir os caminhos para a virtude e atravancar os que conduzem ao vício. Tanto que o melhor do que hoje “assinam” como produção própria foi feito por estrangeiros fugitivos de sistemas nos quais só o vício consegue passagem.
A questão da segurança jurídica é crítica. Dada a propensão preferencial da espécie pelo vício, quanto mais longe se colocar a baliza das decisões do arbítrio e do pensamento abstrato, pai do arbítrio, melhor tende a ser o resultado. Existe uma fortíssima coincidência entre a riqueza das nações e o seu sistema jurídico. É sob o sistema de “common law”, que foi comum a toda a Europa, Portugal inclusive, até os primeiros passos das monarquias absolutistas no final do século 13, que vive a maioria das nações mais ricas e livres do mundo. Nesse sistema é o precedente que define a sentença e não o juiz. É o juri, não o meritissimo, quem define se o caso presente é mesmo idêntico ao anterior. Se a conclusão for que sim, a sentença será automaticamente a mesma que foi dada para aquele. O juiz está lá mais para conferir os ritos do processo que para qualquer outra coisa, mesmo porque o sentido da justiça terrena é reduzir as oportunidades de corrupção e não redesenhar a humanidade. O problema é que a corrupção se torna irresistivel justamente quando é a liberdade do indivíduo ou até a sua vida que está em jogo, como no caso das decisões judiciais. Os fatos são o que são e podem ser concretamente aferidos na sua sequência e na sua relação causal enquanto a vontade humana, livre para voar por definição, é sempre uma expressão do arbítrio, a própria negação da impessoalidade que torna previsivel, ou seja segura, a justiça que o investimento em desenvolvimento requer.
Assim também os sistemas políticos. A lei só será “amigavel para o usuário” se for feita por ele ou, no mínimo, para ele. A democracia foi inventada para isso. Neste mundo de multidões, porem, ela só pode ser “representativa”. E para ser mesmo “representativa” é preciso que o representante esteja permanentemente sujeito à cobrança do representado e esta, para ser efetiva, tem de ser feita “à mão armada”. Ou seja, a sobrevivência do mandato do cobrado (assim como a do emprego público) tem de estar permanentemente em jogo.
Qualquer brasileiro, por menos educado que seja, sabe que se contratar um empregado amanhã garatindo a ele que daí por diante será indemissível, faça o que fizer, e ele próprio definirá seu salário independentemente do serviço que entregar, em seis meses ele estará na casinha do cachorro e o tal empregado deitado em sua cama.
O Brasil está na casinha do cachorro. Para sair terá de ter a mão armada para ganhar controle efetivo sobre o desenvolvimento futuro das carreiras políticas e do funcionalismo. E só tem esse controle quem tem o poder de demitir. Só o recall, o referendo e as leis de inciativa popular dão esse poder ao povo de forma irrecorrivel. E só com eleições distritais puras essa arma passa a atirar apenas e tão somente se for acionada de modo responsavel, transparente e com garantia de atingir só o alvo visado.