Donald e o temível mundo novo

14 de março de 2017 § 13 Comentários

Artigo para O Estado de S. Paulo de 14/03/2017

Se o seu país é uma idéia cada imigrante é uma adesão que só pode torná-lo mais forte. Se é só a garantia armada da posse dos seus privilégios qualquer imigração é uma ameaça de ter de dividi-los.

A eleição de Donald Trump fecha o desmonte da ordem mundial que derivou da memória dos horrores do confronto entre as sociedades abertas e as duas vertentes totalitárias do socialismo – nazismo e comunismo – que ensanguentaram o século 20. É da busca da paz entre as nações e da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, que parte o ideal de um mundo sem fronteiras políticas que, ironicamente, a realidade de um mundo sem fronteiras físicas está pondo a perder.

Extinguiram-se as memórias das guerras mundiais; acabaram-se os estados-nação submetidos exclusivamente às suas próprias leis; dissolveram-se as cápsulas que mantinham cada pedaço da humanidade no seu próprio tempo de evolução institucional. Tudo se vai diluindo numa coisa só incerta e não sabida como nunca.

A mobilidade não é igual para todos mas passou a ser total para alguns. Com trabalho e vida financeira em rede pode-se “arbitrar” entre centenas de ordenamentos jurídicos, tributários e do trabalho. Pode-se morar e vender na civilização e produzir na barbárie. A História se repete. Estão de volta à cena as “ferrovias” abrindo territórios novos virgens de qualquer legislação; estão de volta os “robber barons” que se aproveitam do vácuo regulatório para controlar a circulação de tudo que transita pelos novos caminhos e cavalgar o dinheiro para impor sua lei e voar voos inimagináveis de poder. Mas não ha no horizonte nenhum esboço do que possa vir a ser a nova “legislação antitruste” para impor limites à ganância sem matar a liberdade que fizeram dos Estados Unidos uma referência de esperança para a humanidade.

O que parecia a libertação do jugo do Capital pela tecnologia se vai materializando como um funil de boca ainda mais larga e saída ainda mais estreita. Entregue ou arrastado, tudo flui inexoravelmente para o Google, para a Amazon, para o Alibaba, para o Facebook. E por baixo, “disrompendo” dignidades, come solta a computação; espreita do ovo já picado a “serpente” da Inteligência Artificial.

Têm cada vez menos opções os consumidores e os proletários do mundo. Não existe mais uma relação segura entre esforço e remuneração. Vão desaparecendo as fronteiras entre Capital e Estado. As classes sociais transnacionalizaram-se mas já não ha campo para a luta. O “inimigo de classe” é anônimo e distante, praticamente indiscernível. Na velha seara dos chavões a confusão é total. “Direita” e “esquerda” perderam os esquemas simplificadores com que classificavam a humanidade e todos os seus atos. Vive-se o triunfo do “laissez faire” universal, até porque não ha mais como “ne lesser pas”, mas é a direita quem se oferece aos “vencidos” e a esquerda quem abraça os “vencedores” desse internacionalismo sem contrato social imposto à traição pela tecnologia. Quanto à “revolução”, está confinada à pretendida universalização dos costumes antes restritos às elites. A nova “utopia” é hermafrodita; é a “superação” da natureza bio-morfológica do indivíduo. No mais, é pé no chão. Nada “choca a burguesia” nestes tempos em que se “reivindica” a autoria das abominações que antes não se confessava nem sob tortura. A guerra tornou-se crônica. Tanto quanto as doenças Aedes aegypti-transportáveis, convivemos diariamente com ela contando mais com a sorte que com a defesa militar ou a proteção da polícia.

O medo é senhor. O carnaval sem fim é o carnaval do nada.

Donald Trump foi cultivado nesse caldo. Que a volta a um passado manufatureiro é impossível todo mundo sabe, até quem o elegeu. Mas que algo ao estilo vai ser ao menos ensaiado é a promessa solene que o pos onde está. O grande problema do protecionismo à Donald Trump, o Brasil bem sabe, é a corrupção que ele engendra. O dilema é velho como os Estados Unidos. O ponto de partida dos “Pais Fundadores” era que a única alternativa para a “privilegiatura” feudal é a radicalização da lógica do merecimento. A questão é que vencer pela eficiência também é infernal. Tem a vantagem de estar aberto a todos mas é uma luta sem fim. Requer “eterna vigilância“. Não perdoa um único vacilo. Daí a “libertação” do parasita latente em cada um de nós para a exploração do próximo ter a força irresistivel que tem. É por isso que é tudo ou nada. Aberta a menor fresta; atribuido a alguém o poder de outorgar “proteções” para dar a quem as consegue o privilégio de desfrutar sem fazer força aquilo que na realidade, requer imensa, começa imediatamente a estruturar-se uma rede tão intrincada de cumplicidades em favor do retorno à vida selvagem que é praticamente impossível evita-lo.

Já a democracia não passa de um artifício de precária sustentação criado justamente para “dobrar” a natureza humana. A americana é tão “entranhada” no tecido social sobre o qual atua, tão misturada ao dia a dia de cidadãos armados com os direitos de “recall”, “iniciativa” e “referendo” vivendo a liberdade plena de decidir suas vidas ha tantas gerações que perderam a noção da excepcionalidade de sua condição. Contra eles o presidente da republica pouco ou nada pode e isso não vai mudar. Mas nessa conjuntura de vulnerabilidade do império da lei pelo esgarçamento da soberania nacional; de ruptura de uma relação identificável entre esforço e remuneração; de extinção maciça de empregos, concentração da renda e, sobretudo, de medo do futuro, não é mais a vontade do presidente, é a vontade dos súditos que se tem de temer.

O medo é o pior dos conselheiros. É quando ele está à solta que se põe em marcha a insensatez. O mundo precisa mais que nunca daquela referência de esperança. Mas o estadista, que as grandes encruzilhadas da História requerem para que não se perca o eixo; aquele tipo de líder capaz de dizer ao povo aquilo que ele não está disposto a ouvir; esse, definitivamente, não é o figurino de Donald Trump.

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§ 13 Respostas para Donald e o temível mundo novo

  • Altemar Correia Moura disse:

    O texto não é escrito de forma simples, mas entendi as mudanças definitivas pelo qual está passando o mundo.

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  • Márcia disse:

    “O pior lugar é o lugar iluminado”. Os que estão no conforto da sombra jamais são colocados na berlinda. Mas isso de modo algum faz um país como a China um lugar bom pra se viver, ou um modelo a ser seguido.

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  • luis disse:

    obrigado Fernao ,obrigado pela tua generosidade em compartilhar ideas,baita jornalista

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  • Mara disse:

    Meu analfabetismo funcional não alcançou o significado do texto.De verdade. Culpa do Paulo Freire? Pode ser. Lamentavelmente. Não há mais tempo de eu recuperar a defasagem

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  • Cris Dias de Souza disse:

    Como vc escreve bem! Parabéns! Cris Dias de Souza

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  • Kiyoshi disse:

    Tudo tem o seu tamanho ou zona de normalidade. O socialismo total leva ao totalitarismo vulgo: governo mundial, ONU, ditaduras, escravização, isto é, obediência ao poder central via constituições extensas e profusões de leis. O individualismo total leva ao anarquismo, com invasão de privacidades alheias, gerando conflitos incontroláveis. Assim não é bom um governo mundial e nem nações ultra estratificadas . País extenso como Brasil precisa ser formado com estados realmente federativos e com profunda reorganização e com mais estados (províncias) inclusive, agrupando-os por afinidade. As leis e constituições devem ser independentes e mais fortes nos municípios onde moram incluindo aí a arrecadação dos impostos. E recall naturalmente! A constituição federal chega a ser uma verdadeira aberração ao normatizar o indivíduo!

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  • pmc disse:

    Dr. Fernão,

    E pensar que a “crise da certeza’, segundo Pricogine em “O Fim das certezas; tempo, caos e as leis da natureza”, retrata a realidade contemporânea no mundo…

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  • Carmen Leibovici disse:

    Excelente reflexão sobre o momento histórico do mundo.

    Eu discordo apenas do início,pois nem todo imigrante adere às ideias dos lugares a que chega ,e é esse precisamente o problema que traz caos ao mundo,aliado ao problema dos nativos que ,influenciados ou não por algumas “ideologias”imigrantes,também ,às vezes, não aderem às ideias do lugar ,e querem implantar as próprias(tenham eles competência ou não,o que as democracias aceitam,infelizmente).
    Isso quando “o lugar”tem ideias precisas,é claro.

    Os EUA têm,e agora é o momento de provar que a Nação é forte o bastante para ser preservada por aqueles que estão conscientes dos privilégios que detêm.É uma questão de aguardar para saber…

    No Brasil,as nossas armas para garantir privilégios ,que ainda nem temos,ou pelo menos não permitir que o caos domine,você cita e eu concordo.Seria “recall”,”referendo” para leis do Legislativo, e “iniciativa” para decisões advindas da própria população(sem manipulações políticas!)

    Recall ,significando que não seríamos mais obrigados a engolir gestores que foram eleitos mas decepcionaram,tendo nós mesmos a ferramenta para retirá-los do poder com rapidez.Isso viria pela divisão do Brasil em distritos eleitorais .

    Referendo ,significando que vereadores e deputados não poderiam mais criar as leis que bem entendem,devendo a população ser consultada sobre cada lei por eles criada antes que seja promulgada.

    E iniciativa,significando que todos os brasileiros possam escolher eles mesmos o que melhor nos cabe,tirando ,em boa medida, essa prerrogativa das mãos de vereadores e deputados.

    Além disso,eu vejo assim:

    Reforma Política:seria apenas e tão somente a implantação das tres ferramentas acima citadas.

    Reforma Trabalhista:seria apenas e tão somente a extinção do imposto sindical que obriga cada trabalhador a dar um dia de suor por ano para sindicatos que não elegeu.Isso que acontece no Brasil é uma aberração que transforma este país numa ditadura sindical e impede seu desenvolvimento.

    Reforma da previdência:A retirada de todos os privilégios dos 3 Poderes +Forças Armadas seria suficiente para não mexer em mais nada.Quem sabe,apenas,elevar a idade minima para todos a 62 anos.

    Para começar,o dito acima estaria de bom tamanho.

    Mas ,afinal,para que simplificar se pode-se complicar,como os pobres de espírito tanto apreciam?

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  • Carmen Leibovici disse:

    Mas ,afinal,para que simplificar se pode-se complicar,como os pobres de espírito que ocupam cargos fundamentais no governo deste país tanto apreciam?

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  • José Silverio Vasconcelos Miranda disse:

    Concordo que o sr.Trump não é o estadista que o figurino do momento
    americano requer. Concordo mais ainda, nem estadista ele é. Foi eleito
    num cochilo do ” establishment” politico de Washington e ganhou a
    eleição de uma péssima candidata, com uma folha corrida de fazer inveja a muitos politicos brasileiros. A carência de estadistas é antiga e os cochilos propiciam o nascimento de Adolfs, Stalins e assemelhados.
    Cochilamos no Brasil e Lula chegou ao poder, pintou e bordou. Ha quanto tempo o mundo não tem um Churchill ? Estadistas são muito raros. No Brasil existe a petulância de chamar Getulio Vargas de estadista. Nunca se lembram de José Bonifácio. Concordo com você. Os americanos do norte tem instrumentos eficazes para se protegerem de Mr. Trump. O resto do é que tem de se precaver.

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  • Muito bom, mas é importante que o imigrante aceite viver sob as leis do pais que o recebeu e não querer usufruir de direitos que ainda não adquiriu.

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