O jogo dos contrários

29 de novembro de 2013 § 3 Comentários

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Uma coisa que nunca deixa de me incomodar, por mais banalizada e onipresente que esteja a expressão hoje em dia, é esse negócio de “políticas públicas”.

Que política haveria de não ser pública, especialmente em se tratando de governos?

Enfim, é um desses vícios de linguagem que nascem em tribos bem identificadas e acabam por se transformar numa espécie de distintivo delas. No caso, trata-se da militância do PT. A expressão “políticas públicas”, sobretudo quando dita entre “cicios”, identifica um militante do PT com mais precisão que a estrela vermelha pespegada ao peito.

Mas aí comecei a dar-me conta de que uma grande parte das políticas do PT de fato não são políticas voltadas para o bem público, são políticas de aparelhamento de instrumentos e de próprios do Estado para colocá-los a serviço do projeto de poder do partido, quase sempre em detrimento do interesse público.

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Ocorreu-me, então, que a expressão pode ter tido origem em figuras admiradas por seus imitadores de hoje que enxergavam com toda a clareza a distinção entre essas duas formas de operar que os mais ingênuos não vêm – as políticas “nossas” (para anabolizar o partido) e as “políticas públicas” (pata atrair eleitores e o mais) – e que a tropa simplesmente a repete agora possivelmente sem ter muita consciência do seu sentido original.

A hipótese se encaixa perfeitamente numa tradição de que as atuais gerações estão distantes mas que marcou indelevelmente a minha.

Hoje eles já são pacificamente tidos como “heróis da democracia” neste país que honra Antonio Granmsci. Mas nos anos 60, 70 e 80 quando ainda se afirmavam clara e orgulhosamente como “ditaduras do proletariado” e fuzilavam sumariamente quem discordasse delas esse pessoal já tinha consciência de que o peso desses crimes acabaria por se voltar contra eles.

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Assim é que, embora na ação fossem explícitos e inequívocos na afirmação da sua obsessão pelo controle “total” dos pensamentos, palavras e obras alheias (daí o “totalitário”) assim como da sua absoluta intolerância para com qualquer forma de dissidência, por tênue e pacífica que fosse, eles passaram a se especializar num meticuloso trabalho de subversão conceitual e linguística que George Orwell, no seu clássico “1984”, imortalizou como a “novilíngua”.

Conscientes de que democracia já era, desde pelo menos o fim da 2a Guerra Mundial, um valor universalmente aceito e adotado como o objetivo a ser conquistado pela maior parte da humanidade, mesmo a parcela dela que não sabia então e continua não sabendo até hoje exatamente como defini-la nem, muito menos, como estruturá-la institucionalmente falando, esses inimigos jurados da democracia passaram a trabalhar para se apropriar das expressões que historicamente a definiam.

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Tudo, então, passou a ser designado como o contrário do que era. Enquanto as verdadeiras democracias, que eles qualificavam naquela altura de “burguesas” e tentavam matar a tiros e explosões, chamavam-se, anodinamente, “Estados Unidos da América”, “Japão” ou “Canadá”, as mais sanguinárias ditaduras, às vezes instaladas em países cercados por muralhas, controlados por elites que não apeavam nunca do poder, em que qualquer expressão de dissidência resultava no fuzilamento sumário com um tiro na nuca aplicado em um porão, a perseguição e o confinamento de toda a descendência do condenado e até o apagamento de todos os traços de sua passagem pela Terra inclusive em fotografias, eram todas batizadas de “Republicas Populares Democráticas”.

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Havia a da Alemanha (Oriental), cercada de muros com ninhos de metralhadoras apontadas não para a porta de entrada, que vivia às moscas, mas para a de saída, que era disputada mesmo à custa de sangue, havia a do Campuchea (Cambodja), onde um terço da população foi exterminada, havia as “Repúblicas Socialistas Soviéticas“, “unidas” por implacáveis exércitos de ocupação estrangeiros que enfrentavam passeatas com tanques de guerra, e por aí a coisa ia com milhões de pessoas assassinadas e de prisioneiros submetidos à fome e ao trabalho escravo em intermináveis “arquipélagos” de campos de concentração.

Não eram repúblicas, não eram populares e não eram democráticas. Fuzilavam todo e qualquer homem, mulher ou criança que agisse como se estivesse em uma, sempre sob os aplausos entusiasmados dos “guerrilheiros” que lutavam explicitamente, com armas e com bombas, para por o Brasil sob esse mesmo tipo de regime. Mas faziam questão absoluta de ser chamados assim…

Para os nativos do Terceiro Milênio tudo isso parece distante como a Idade Média. Mas aconteceu, foi “ontem” e eu estava lá, como tanta gente que mora hoje em nossos palácios…

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Esse negócio de “políticas públicas” não passa de um restolho temporão desse culto à subversão semântica e conceitual que tão bem caracterizou aqueles anos.

A distribuição maciça de benesses e pequenas esmolas eleitorais; a oferta de homens vestidos de branco mas sem diploma quando faltam médicos; as desonerações pontuais em setores da produção com repercussão rápida nos sonhos de consumo das classes mais resistentes ao partido; o controle do preço de insumos básicos para melhorar estatísticas ou a distribuição de mão em mão de “remédios” que viciam a título de cura da miséria são, todos eles, expedientes que, segundo o jargão do militante, constituem as tais “políticas públicas” do PT. Mas o que se pretende obter com elas, evidentemente, não é reforçar o regime representativo, nem melhorar a saúde pública, nem aumentar a competitividade da indústria nacional, nem acabar definitivamente com a miséria.

Segue com tudo o velho jogo dos contrários…

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§ 3 Respostas para O jogo dos contrários

  • Hellena Souza disse:

    Femasim,

    Você escreveu o texto que eu gostaria de ter escrito. Parabéns, e obrigada.

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  • heena maria de souza disse:

    Perfeita análise. E todos vamos nos acostumando com a “políticas públicas específicas”: para negros, para gays, para mulheres, para portadores de necessidades especiais e por aí vai. Acabamos por achar natural que a sociedade seja segmentada, dividida em grupos que necessitam de aportes ou suportes especiais.
    Aos poucos não percebemos mais que o que se intitulam de “trabalhadores” são os que não trabalham. “educadores” sao os que mais deseducam, porque ao invés de ensinar a pensar, doutrinam, e através de suas disciplinas, apenas fomentam o ódio de classe, ou de etnias ou de religião, e etc.

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  • Ronaldo disse:

    Ótimo texto, excelente argumentação e elucidação. Não custa nada pingar os is e escancarar os subterfúgios e escaramuças com que enganam o povo e até os mais esclarecidos, mas com preguiça mental.

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