O irmão que faltava

10 de outubro de 2011 § Deixe um comentário

A democracia americana nasceu para colocar as duas grandes forças que até hoje oprimem a maior parte do resto do planeta – “big government” e “big business” – sob o controle do povo.

A primeira parte da tarefa foi endereçada ao longo do debate publico travado através de três jornais de Nova York entre 27 de outubro de 1787 e 4 de abril de 1788 contra e a favor da criação de um governo central a ser aprovado pelas convenções dos 13 estados chamados a apreciar o projeto de Constituição Federal enviado ao Congresso.

Alexander Hamilton, John Jay e James Madison foram os autores dos 85 artigos mais tarde reunidos no que até hoje é considerado um dos maiores clássicos da teoria democrática, The Federalist Papers (compre O Federalista traduzido para o português aqui), defendendo a necessidade de um governo central e estabelecendo limites precisos para a sua atuação.

A segunda parte da tarefa começou a ser executada um século mais tarde quando as técnicas de gestão empresarial se aperfeiçoaram o bastante para proporcionar um crescimento explosivo das empresas daquele país que, fundindo-se umas as outras em busca de ganhos de escala, criaram monopólios com enorme poder de corrupção, contaminaram a política e quase puseram a perder a democracia americana.

Ao longo dos quase 30 anos seguintes, – as reformas da Progressive Era trataram de devolver o poder de fato aos eleitores.

O primeiro passo foi a Lei Antitruste – o Sherman Act aprovado em 1890 – que impôs limites ao poder do dinheiro, mesmo àquele legitimamente conquistado pelo mérito, proibindo o crescimento das empresas além de uma certa porcentagem do seu mercado. O sistema financeiro foi objeto de rigor especial, ficando cada banco praticamente reduzido a ter um alcance não mais que estadual.

O passo seguinte foi disciplinar o Estado através de ampla reforma do Civil Service (funcionalismo) acabando com as nomeações políticas.

E o terceiro foi a instituição de mecanismos de democracia direta como o referendo, as leis de iniciativa popular e o recall (impeachment) de funcionários públicos, que armaram os eleitores para de fato impor as novas regras do jogo aos seus representantes e aos servidores públicos.

Foram estas reformas que criaram os Estados Unidos modernos e, ao reduzir drasticamente a corrupção e o abuso do poder político, produziram em pouco mais de meio século a sociedade mais próspera da história da humanidade.

Esse aparato institucional vigorou praticamente intacto até os anos 80 do século passado quando passou a ser indiretamente solapado pela revolução das tecnologias da informação.

“Direita” e “esquerda”, “conservador” e “liberal”, “republicano” e “democrata” no jargão político norte-americano, traduzem essencialmente a precedência que se dá ao “big government” ou ao “big business” como Inimigo Publico No 1 da hegemonia que “We, the people” deve ter, incontestável e incontrastável, sobre o sistema político dos Estados Unidos.

O que tem sido a regra em quase todo o resto do mundo – a sociedade a serviço do Estado e dos “amigos do Estado” – é a exceção nos Estados Unidos. Daí a dificuldade geral do resto do mundo de compreender o que está acontecendo lá.

As grandes crises da democracia americana – e esta a que estamos assistindo é a segunda dessas proporções – se dão quando, pela força da corrupção, principalmente, esses dois inimigos tão velhos quanto os próprios Estados Unidos se dão as mãos e passam a responder mais um ao outro que a “nós, os 99%” a que se referem muitos dos cartazes que compõem os slogans do movimento Occupy Wall Street que, com algum atraso em relação ao seu par necessário, o Tea Party, levantou-se para, como ele, reivindicar o restabelecimento da hegemonia popular sobre o sistema.

Até mesmo essa sequência na articulação de cada um obedece ao padrão histórico.

O resto do que você tem lido sobre o caráter “revolucionário” de um ou do outro, tanto na imprensa brasileira quanto, até mesmo, na imprensa americana, são bobagens que respondem mais à contaminação de quem escreve em ambas por antiquados padrões ideológicos europeizados ou latinizados, como preferirem, que pouco têm a ver com a realidade histórica daquele país.

Como notou um comentarista do NYTimes traduzido pelo Estadão deste domingo, “nem os manifestantes de um nem os manifestantes do outro lado querem uma alternativa para o consumismo; o que eles querem é continuar sendo os consumidores“.

Abaixo o big government; vamos restaurar a liberdade individual” ou “Abaixo o big business; vamos restaurar a justiça social“, os gritos que hoje parecem dividir os Estados Unidos em dois lados de um abismo intransponível, no fundo desaguam na mesma solução prática: “Toda a força de volta aos eleitores“.

Wall Street é o inimigo comum dos dois, tanto hoje quanto historicamente falando.

O Tea Party, cujas raízes estão fincadas no anti-federalismo e no anti-intelectualismo da corrente inaugurada por Thomas Jefferson (“Acredito sinceramente que os bancos são mais perigosos que exércitos em posição de combate … a especulação financeira é uma espécie de aposta que destrói a moralidade“), começou como um gemido vago contra o resgate dos banqueiros que afundaram o país com o dinheiro das suas próprias vítimas, e a cínica reação dos resgatados.

Occupy Wall Street, que ainda engatinha e não firmou uma pauta e um discurso próprios, é uma ponta da corrente democrata que pretende-se mais refinada e responde com o fígado ao que vê como a brutalidade caipira do Tea Party. Mas a questão é mais de tom que de fundo. Ele tem suas raízes na tradição de Andrew Jackson, o quarto presidente que também denunciava os bancos “essencialmente como uma trapaça para enriquecer os abastados às custas do trabalhador” e no espírito reformista da Progressive Era (idem, ibidem). Seu inimigo principal é, igualmente, o aliado do momento do big government: Wall Street.

O que ambos representam, na verdade, é a extensa lista das insatisfações que são consequência do desemprego e da ameaça hoje temida por milhões de perder o trem para o sonho americano disseminadas pela crise financeira.

Com a rapidez característica da única democracia onde a estabilidade no emprego público ou político depende essencialmente de desempenho, o que a torna sempre ágil e disposta a se auto reformar, os pleitos do Occupy Wall Street não tardarão a se fixar e a se refletir no Congresso como já ocorre com os do Tea Party e, logo adiante, também nas próximas campanhas eleitorais.

É historicamente muito rápido, por lá, o trânsito dos pleitos levantados na periferia do sistema para o centro do debate político. É isto que torna o deles um modelo que dispensa revoluções. O problema é que, desta vez, a solução não depende nem do establishment político, nem dos eleitores americanos.

O inchaço do sistema financeiro dos EUA não é a causa do drama que o país está vivendo. É antes a consequência de um problema muito maior. Não é fruto de uma conspiração sinistra mas sim de 30 anos de recordes semanais sucessivos de fusões e aquisições entre as empresas daquele país, forçadas pela competição com os monopólios do capitalismo de Estado chinês na nova realidade de mercados de consumo e de emprego globalizados.

Crescer ou morrer” tem sido o mote do jogo econômico nos últimos 30 anos, sob o qual sucumbiu de fato a legislação antitruste e foi sendo empurrada a aliança entre o Estado e o Capital também nos Estados Unidos, operada, sim, pelo sistema financeiro que a cada fusão ou aquisição morde a sua gorda fatia, mas não contra a vontade do povo. Ela foi, verdade seja dita, primeiro consentida e depois exigida pelos trabalhadores/eleitores em pânico com a competição chinesa.

É um fenômeno planetário, aliás, porque somos todos vítimas do dumping monetário e do trabalho semi escravo asiático, mas que só é novidade e causa escândalo nos Estados Unidos, um dos únicos países do mundo onde tal aliança nunca foi pacificamente admitida.

Na maior parte do planeta a aliança entre o Capital e o Estado sempre foi e continua sendo o padrão.

Só que desta vez a questão não poderá ser resolvida com os mesmos remédios do século passado porque não ha leis nacionais capazes de mudar a realidade da desigualdade em matéria de direitos e de remuneração entre os trabalhadores dos diferentes países que disputam o mercado global. Enquanto for o preço dos produtos que determinar quem ganha o consumidor, os dos trabalhadores semi-escravos da Ásia ou do resto do mundo pobre sempre ganharão a parada. E até que isso mude, nem os salários no mundo rico pararão de cair, nem os empregos de desaparecer.

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