Donald Trump, nós e a democracia

11 de janeiro de 2021 § 25 Comentários

Este mundo está mesmo de pernas para o ar. Até a democracia americana perdeu a virgindade… 

Antes, porem, de abordar os fundamentos físicos da doença dos Estados Unidos, o epicentro de onde se espalha para o mundo a pandemia do ódio, é preciso deter-se na avaliação dos seus aspectos psicossomáticos, pois é a comunicação em torno do que está acontecendo mais do que concretamente o que está acontecendo que determina a velocidade da multiplicação e da disseminação desse vírus, e essa é a parte que nos toca desse latifúndio.

Os adoradores e os “odiadores” de Donald Trump são criaturas uns dos outros num processo clássico de entropia. Uma das definições que a Wikipedia dá de “entropia” vem a calhar: “Se dois corpos estão a temperaturas diferentes, colocando-os em contato a energia fluirá do corpo com maior para o corpo com menor temperatura até alcançar a fusão se não houver troca de energia com outros sistemas”. Ou seja, “amar” ou “odiar” intensamente Donald Trump faz parte da mesma patologia pois não é razoável que pessoas adultas amem ou odeiem seus políticos eleitos com essa intensidade num contexto democrático de alternância certa e mapeada do poder por decisão direta do povo como o que existe nos Estados Unidos.

Para conter a pandemia do ódio o mundo precisa antes de mais nada, portanto, tomar distanciamento social da chuva de perdigotos conceituais que cada novo ato dos protagonistas dessa novela sinistra desencadeia pois o fato de Donald Trump ser o que é de modo algum faz com que seus “odiadores” deixem de ser o que são, e vice-versa.

Dou alguns exemplos. 

Não é porque é mentira que tenha havido fraude capaz de mudar o resultado da eleição americana que deixa de ser mentira que o sistema brasileiro é invulnerável e que é possível afirmar que aqui nunca houve fraude. Lá isso pode ser, como foi, conferido, preto no branco, pela checagem de cédulas físicas assinadas pessoalmente por cada eleitor e as leis de cada um dos 50 estados que teriam de entrar nessa “conspiração” impõem recontagens e outras formas de aferição disparadas quando as margens de votos indicam que isso pode fazer diferença e aqui não existe lei nenhuma para isso nem muito menos qualquer comprovante físico do voto dado. A mentira para esconder a fome de poder a qualquer custo de Donald Trump, pela qual seria bastante educativo que ele pagasse ainda antes do fim do mandato, não anula de forma nenhuma a mentira para esconder a fome de poder a qualquer custo por trás da máquina de votar brasileira.

Espernear contra a entrega do poder depois de perdida a eleição é uma atitude tão antidemocrática quanto usar todo tipo de recurso espúrio para impedir um governo eleito de governar segundo a receita que mereceu a aprovação da maioria do eleitorado, ainda que uma dessas formas de violência possa ser focada num único indivíduo e a outra esteja dispersa entre milhares ou mesmo milhões movidos exclusiva e confessadamente pela defesa de seus privilégios, só porque estes são mais difíceis de apedrejar.

Do mesmo modo como nada, rigorosamente nada, pode tornar democrático ou mesmo apenas decente aumentar salários e privilégios de uma privilegiatura empanturrada com uma mão e impostos sobre remédios e alimentos do favelão nacional doente e faminto com a outra em plena pandemia, nada pode tornar democrática uma ordem institucional onde uns poucos tomam o resultado do esforço alheio brandindo as leis que escrevem exclusivamente para proveito próprio enquanto todos os outros são constrangidos a entregar o seu para não sofrer as penas prescritas nesses golpes legislativos sorrateiros que não lhes é dado referendar. Apesar do ritual, o nome disso continua sendo assalto. 

O fato dos donald trumps do mundo terem ganho acesso a um canal para expressar seus ódios não apaga o fato histórico dos objetos desse ódio terem passado os últimos 100 anos usando e abusando da exclusividade de fazer essa mesmíssima coisa e cercando e apedrejando sedes de poderes executivos e legislativos pelo “mundo democrático” afora diante da simples verbalização de qualquer proposta tímida de redução dos seus privilégios.

Assim também, nem o machismo brega e a estupidez arrogante de Donald Trump tiram do ensaio de ditadura LGBT+ o caráter de ditadura, nem o direito à liberdade dos abreviados de cada uma dessas letras de procurar sua felicidade do jeito que bem entender exclui o de Donald Trump de procurar a dele assumindo-se como um machão brega e mesmo estúpido, contanto que cada um seja o que é sem trespassar o limite dos direitos dos outros.

Nada jamais foi dito de mais sábio e definitivo sobre isso do que o “Se todos os homens menos um partilhassem da mesma opinião, e apenas uma única pessoa fosse de opinião contrária, a humanidade não teria mais legitimidade para silenciar esta única pessoa do que ela, se poder tivesse, para silenciar toda a humanidade” de John Stuart Mill naquele longínquo século 19 da consolidação da democracia do qual o Brasil foi expulso pela Contrarreforma e pelas fogueiras da Inquisição.

Tudo isso é certo e sabido mas a chuva de cusparadas que se segue aos atos perpetrados por essas ambições desenfreadas em luta, que as imprensas locais automaticamente tragam e traduzem, tratam de “provar” que não, o que espalha a doença para o resto da pequena parcela do mundo que ainda pode fazer umas poucas escolhas.

Nenhuma agressão à democracia que possa vir da personalidade doentia de Donald Trump poderá tornar democrático o ato de calar pela censura todas as vozes dissonantes, venha ele de algum dos moleques que, pela combinação de caminhos tortos e falhas de regulamentação, construíram, como os “rober barons” dos tempos das ferrovias, monopólios de comunicação neste alvorecer da migração da economia e da politica para as redes sociais ou da velha imprensa doente cujos ditames esses moleques não ousam desobedecer. 

Nem a reprodução desse tipo de violência pela nossa corte supremamente macunaímica, nem a repetição ao infinito do apoio a tais brutalidades por baixo de logotipos vetustos pode suscitar, numa consciência sã, a confusão inocente do nosso Undecimovirato Monocrático com democracia e com “estado de direito”. Ou é má fé, na hipótese benigna, ou é debilidade mental na hipótese incurável.

E isto nos traz aos dois principais fundamentos físicos da doença que tornou metade dos Estados Unidos, por enquanto, suscetível a discursos como o de Donald Trump e farão o problema sobreviver a ele. 

O fenômeno da ascensão de populismos mais calçados na bizarrice dos seus protagonistas que em ideias concretas não é causa, é consequência das ameaças reais que vêm roendo as democracias. A mais recente é a reação que o advento da internet proporcionou contra os grupos organizados de interesse que, não pelo debate de ideias e pelo convencimento mas pela especialização na manipulação das falhas das regras do sistema e pelo controle por censura dos seus canais de voz, têm “cavalgado e desmoralizado as democracias para colocá-las a serviço dos seus privilégios. A censura é o achinezamento da internet que tampa a panela e criará a próxima geração de trumps com garras e dentes e disposta a matar ou morrer, se não for levantada. A mais antiga é o achinezamento das relações de trabalho que a precedeu.  

Por pior que seja a intenção com que Donald Trump apedreja a China – e ele sempre o fez do jeito e pela razão menos republicana – nada pode apagar o fato de que aquele é um regime totalitário a serviço de um ditador armado até os dentes em pleno delírio de onipotência que não segue lei nenhuma e não se detém diante de nada; um estado bandido que cresceu pelo roubo sistemático das invenções alheias e da reprodução e venda a preço vil do produto desse assalto sistemático ao resto do mundo por uma multidão de quase escravos a quem só é dada a alternativa do tiro na nuca.

Aceitar esse desafio dos párias da civilização baseada na tolerância conquistada ao fim de milênios de sangue, suor e lágrimas, sem condicionar estritamente o acesso aos seus mercados ao respeito à dignidade do trabalho e ao direito de propriedade, e responder nos termos deles, pela revogação sumária da democracia antitruste, a única que preserva o ambiente de ampla concorrência vital para a mera possibilidade do exercício da liberdade (de escolher patrões, salários, fornecedores e imprensa tão diversificados quanto diversa é a humanidade), acabou com o sonho americano de vencer pelo trabalho sem ter de implorar a ninguém o favor de permanecer física ou economicamente vivo que, pela primeira e única vez na história da humanidade conseguiu nos livrar dela por algum tempo, e devolveu o mundo à selva dos monopólios incubados pelos reis.

Os donald trumps não criaram, eles só surfam essa onda maligna em que nós sempre andamos semi-afogados, cujo peso sufocante os americanos apenas estão começando a experimentar.

 

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§ 25 Respostas para Donald Trump, nós e a democracia

  • Marcos Andrade Moraes disse:

    “Não é porque é mentira que tenha havido fraude capaz de mudar o resultado da eleição americana que deixa de ser mentira que o sistema brasileiro é invulnerável e que é possível afirmar que aqui nunca houve fraude”

    Parágrafo canalha.

    MAM

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  • Marcos Andrade Moraes disse:

    Quanta bobagem! O livro Como as democracias morrem mostra que o caldo de cultura que “tramp” utilizou já vinha sendo desenvolvido pelos republicanos desde os anos 60, nos EUA; nesta época o chinês comia rato e lia o livro vermelho…

    A maioria de empresas estrangeiras na China é americana. O que não é novidade, pois elas invadem qualquer ditadura à esquerda ou direita. Ou não foi assim em 64?

    Seu texto é uma vergonha que tenta provar que a culpa da tortura é do torturado e não do torturador.

    Por isso vc levou tanto tempo para escrever sobre “tramp”. Aliás, foi vc ou Olavo quem escreveu essa mixórdia?

    Texto asqueroso.

    MAM

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  • Hélio Souza disse:

    Fake News sempre existiu e sempre foi uma importante maneira de manipulação das sociedades, e a grande responsável por isso é a nossa própria evolução:
    – Nós fomos programados pela nossa grande Mãe para darmos prioridade ao que é raro (e possivelmente perigoso) do que aos pequenos prazeres do nosso cotidiano “boring”.
    Essa antiga arte de prevalência dos mais aptos pode ser falada ou representadas com resultados semelhantes. Só é preciso um certo grau de dramaticidade convincente para ligar nossos receptores evolutivos.
    Desde a reação química adversa fatal da mistura de manga com leite até as contorcidas cambalhotas do nosso craque maior, o objetivo sempre foi o mesmo: Evitar um resultado adverso (do nosso ponto de vista é claro ).
    Quem foi verificar que crise NÃO era risco + oportunidade em escrita chinesa quando os gurus da administração nos passavam uma teoria conspiratória ao reverso sobre o motivo do sucesso oriental?
    O problema é que agora conseguimos usar essa poderosa ferramenta de de forma muito mais eficaz, para influenciar resultados de escrutínios muito mais importantes.
    Agora temos nosso algoritmo mental digitalizado!

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  • Alexandre disse:

    Mark Lilla, intelectual ligado ao Partido Democrata, admite que o crescente radicalismo da esquerda identitária americana adubou o terreno no qual surgiu o candidato Trump.

    E agora aqueles democratas de araque, que pretendem para si o monopólio da verdade e do bem, botam as mangas de fora (a cara já haviam botado antes) e censuram a internet, determinando o que seriam fake news e discurso de ódio. Precedente perigosíssimo! O efeito disso será o contrário do que imaginam.

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  • Marcia disse:

    Não estou bem certa, mas acho que li esta frase em “Fragmentos de um discurso amoroso”: “O pior lugar é o lugar iluminado”. Eis que temos sob a luz do palco os povos brigando entre si, apontando uns aos outros, enquanto, na penumbra, o autor assiste ao desenrolar de sua obra no lugar confortável da plateia. “O autor, o autor!”. É preciso levá-lo ao palco e centrar todos os canhões de luz em sua pessoa. Esqueçam os atores, foquem na China, na China!

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  • AMERICO MELLAGI disse:

    Brilhante. No fulcro da questão. Não desista jamais!!

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  • Nepomuceno disse:

    Cada povo elege para presidente o palhaço ou o louco que merece.

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  • Carlos disse:

    Obrigado Fernão!
    Haja cabeça e paciência para aguentar o radicalismo, hipocrisia e corrupção que está em todo lado que olhamos e ouvimos.

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  • juremampimenta disse:

    Grande Fernão Mesquita por quem tenho enorme admiração ! Só tenho uma pequena observação sobre o artigo: porque essa gana de sempre condenar a China?
    Penso que qualquer crítica ou tentativa de mudança deveria ser feita pelos naturais de lá !
    Não nos esqueçamos que a maioria das empresas ali estabelecidas são estrangeiras e se lá se encontram é porque lá tem vantagens …

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    • Alexandre disse:

      Os “naturais” da China não têm como fazer mudanças por conta própria. O regime (totalitário) de lá controle tudo, inclusive a internet.

      Sim, as empresas têm vantagens em operar lá, e para operar lá. Mas isso não muda o fato de que aquele regime é tirânico.

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    • Flm disse:

      Porque “ nada pode apagar o fato de que aquele é um regime totalitário a serviço de um ditador armado até os dentes em pleno delírio de onipotência que não segue lei nenhuma e não se detém diante de nada; um estado bandido que cresceu pelo roubo sistemático das invenções alheias e da reprodução e venda a preço vil do produto desse assalto sistemático ao resto do mundo por uma multidão de quase escravos a quem só é dada a alternativa do tiro na nuca”.

      Se isso não basta, Jurema, não tenho mais argumentos a lhe oferecer..,

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  • pedromarcelocezarguimares disse:

    O item de pauta número um da “democrática” elite socialista é o ataque contumaz e permanente aos Presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro. Quem da “imprensa”, meio acadêmico ou artístico ousar não fazê-lo, transforma-se em inimigo do establishment globalista, tornando-se suscetível à perseguição política, vítima assédio moral, réu do ativismo judicial, investigado e prisioneiro do STF ou, ainda, passível de qualquer ajuste social coercitivo da patrulha do séquito. Ao que tudo indica, é “intelligentsia” ficar na sombra e com água fresca e postar um discurso afinado com o “politicamente correto”, melhor ainda se patrocinado e em home-office…He he he.
    E Agora José¿ A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu….

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  • Marcelino Medeiros disse:

    Sua clareza e erudição da exposição estão impecáveis, COMO SEMPRE…

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  • GATO disse:

    E Cabral ia para as Índias, mas não foi, naquele tempo os chineses já tinham as especiarias, logo tiveram a pólvora, se não fossem tão submissos já teriam dominado o mundo, desde aquela época. O que ocorria eram as castas dominando e tudo usurpando. De lá pra cá nada de novo, já tivemos os impérios, Romanos, Otomanos, Ibéricos, agora Americano, Russo e volta a baila a China. Rodamos em círculos, buscando a saída, ELA NÃO EXISTE. Somos imperfeitos,uns comem de mais, outros nada comem, uns procriam demais outros nada deixam, são secos. Uns constroem palácios outros constroem barracos ou ARCAS. Estamos perto de construir ARCAS, o aquecimento, a poluição vão nos levar pra dentro delas. Comeremos peixes plastificados ou cheios de venenos, raízes e cereais contaminados, seremos exterminados por nós mesmos, pois não soubemos controlar a pior doença da humanidade a GANÂNCIA, antônimo da BONANÇA.

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  • Herbert Sílvio Augusto Pinho Halbsgut disse:

    Quem pode mais chora menos?

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