Expulsar os vendilhões do templo

26 de novembro de 2019 § 20 Comentários

Artigo para O Estado de S. Paulo de 26/11/2019

O Valor Econômico noticiou na semana passada que a desigualdade de renda no Brasil parou de piorar no 3º trimestre de 2019 após quatro anos de piora continua segundo medição da Escola Brasileira de Economia e Finanças da GV com base nos dados recém divulgados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) do IBGE. A explicação parece estar no re-emprego de 1.533.000 desempregados, ainda que a maioria deles com empregos informais de 2018 para cá.

A concentração da renda é a doença planetária desta transição entre milênios que promete tempos tempestuosos para a democracia em todo o mundo. Nem mesmo a americana, único regime na historia da humanidade que desde a virada do século 19 para o 20 vinha sendo regido pela baliza “antitruste”, a da defesa da concorrência, pressuposto da liberdade que cada ser humano só pode exercer nas suas dimensões de consumidor e trabalhador neste nosso mundo economicamente orientado, escapa ao tsunami mundial de fusões e aquisições de empresas que bate recordes sucessivos ha mais de 30 anos desencadeado pela concorrência predatória dos monopólios sem lei nem limite do “capitalismo de estado” chinês, o novo nome da velha ordem socialista onde ha um só patrão e um só proprietário de todos os meios de produção.

A diferença é que no Brasil, que também não escapou à hecatombe planetária do pequeno empreendimento, o processo de concentração da renda deu-se predominantemente “no tapetão”, em função do avanço avassalador das corporações de “servidores” do estado sobre o PIB na “Era PT” mediante a imposição de aumentos sucessivos de salários e outras formas disfarçadas de remuneração muito acima da inflação. Combinadas a estagnação do investimento publico que custou esse processo maciço de transferência direta de renda das classes pobre e média para a privilegiatura com o consequente sucateamento da infraestrutura, da educação, da saude e da segurança publicas, foram simplesmente suprimidas as condições essenciais para o resgate dos miseráveis da miséria. 

Na China, partindo de abaixo de zero, o processo foi de forte crescimento econômico com reforma geral da infraestrutura física e tecnológica e enorme ganho de poder de concorrência global. Nos EUA e outras economias avançadas as perdas deram-se ao menos concomitantemente com ganhos de produtividade e forte investimento na infraestrutura científica e tecnológica. Mas no Brasil houve perdas por todos os lados que se meça. A única exceção foi o padrão de vida da privilegiatura que hoje desfruta de remuneração 36 vezes maior que a do resto do país computados apenas os ganhos nominais e tem “petrificados” todos os seus outros privilégios, da impunidade às taxas de juros especiais, por cima do maior de todos que é a dispensa de competir por um lugar ao sol e apresentar resultados para manter empregos.

Pobreza – hoje não ha mais espaço para dúvidas quanto a isso – não existe por si, é exclusivamente consequência de instituições políticas dolosamente iníquas. O Japão é uma ilha de pedra que mal tem água que se possa beber por cima e nada de valor por baixo do solo, e está lá como prova do que pode fazer por um povo a adoção de instituições copiadas do mundo que funciona. O Brasil só chegará “lá” quando fizer a mesma coisa, começando por excluir de sua constituição tudo que não diga respeito a todos os brasileiros, sem nenhuma exceção, e por “despetrificá-la” para transformá-la do congelador de privilégios que é hoje num instrumento de facilitação de mudanças dentro de normas democráticas. 

Mas para poder partir para isso tem de chegar vivo à altura de fazê-lo, o que requer umas poucas reformas que ficariam melhor descritas como “manobras de ressuscitação” de um organismo econômico em coma. A chamada reforma administrativa é a mais urgente delas. Sem a privilegiatura devolver um pouco do que nos tomou não saímos da UTI. E a que está proposta para o Brasil é até tímida, ainda que inclua um componente proto-revolucionário. Ela não vai longe o bastante para pedir o fim da irrestrita estabilidade no emprego do funcionalismo que está na raiz de todos os vícios que estão matando o Brasil. Propõe apenas “desautomatiza-la”; desliga-la da “relação de sangue”; desatrela-la do simples pertencimento à casta para liga-la remotamente ao mérito e ao desempenho, ao condiciona-la a um período de três anos como trainee do candidato a funcionário estável seguidos de avaliação, ainda que da casta pela casta, e à existência de vaga no serviço público e não apenas da disposição de algum padrinho de aumentar seu rebanho particular.

Nem isso passou da soleira da porta, porém. Como sempre não por interferência de uma oposição formal ao governo, mas por determinação do próprio presidente da República, ele, como todos, um membro da privilegiatura de cujas prerrogativas a mais corrosiva é a de deter o monopólio do acesso à politica. É esta que, nunca é demais lembrar,  mantem o divisor de águas do Brasil na barreira vertical do feudalismo – nobreza contra plebeus – e não no da divisão horizontal da democracia à qual nunca ascendemos – esquerda contra direita – como a massa distraída dos otários é levada pela privilegiatura a acreditar.

O estado de direito não é essa (des)ordem institucional que está estabelecida porque nos foi imposta. É um ideal, um devir que se define por tudo que está ausente dela: igualdade perante a lei, um homem um voto, fidelidade da representação do País Real no País Oficial, hegemonia do povo, etc.

Que a privilegiatura use todos os meios para continuar desfrutando seus privilégios compreende-se. Mas ao endossar o critério de “orientação pela proximidade” que faz os políticos deduzirem pela apalpação do “rabo” a figura do elefante da “impopularidade” e invocarem o “estado de direito” como definido pela privilegiatura sempre que alguém tenta empurrar-nos para o verdadeiro, a imprensa nega ao Brasil a chave da libertação dessa servidão. Ja passou da hora da que se pretende democrática expulsar esses vendilhões do templo.

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§ 20 Respostas para Expulsar os vendilhões do templo

  • José Luiz de Sanctis disse:

    Mais um excelente artigo! Vai ser difícil mudar alguma coisa, pois quem faz as leis faz parte da privilegiatura. E o regime de semi escravidão continua.

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  • #FATORSYN! disse:

    Como sempre, a verdade NUA, DURA e CRUA.
    Somos um país jovem (com tudo que a juventude traz) e, é preciso estar liberto dos grilhões feudais que nos acorrentam neste calabouço de exploração para o ¨bem público¨ (brilhantemente demonstrado neste artigo).
    Fica a pergunta:
    Quem vai realmente apertar o botão do míssil ¨menos estado, mais Brasil¨ dentro dos #PodresPoderes que (não) nos representam?

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    • LSB disse:

      Não somos mais um país jovem. Estamos envelhecendo rapidamente e isso é um problema que ainda não está bem “precificado”.

      No mais, você acertou na mosca quando se referiu a um “míssil” para viabilizar o “menos estado, mais Brasil” (e também vale para a versão “menos Brasília, mais Brasil”), pois se não for um míssil (ou qualquer outro “artefato” disruptivo), pode esperar sentado o Estado se reformar sozinho (pois é tudo cláusula pétrea e os beneficiários sabem, pedindo “calma/ponderação/conciliação/sem extremismo”, manter tudo sempre igual).

      Abs
      LSB

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  • rubirodrigues disse:

    “O estado de direito não é essa (des)ordem institucional que está estabelecida porque nos foi imposta.” Concordo, mas, pergunto: caso exijamos o direito de definir qual é a ordem que nos convém, precisamos rever a concepção de estado de Montesquieu e descobrir por que ela tem se revelado insuficiente para viabilizar uma democracia verdadeira. Na busca de uma concepção de estado estruturalmente capaz de viabilizar,na prática, um regime realmente democrático, nosso grupo de estudos conseguiu desenvolver esboço, ainda muito preliminar, que talvez o grupo de pensadores do Vespeiro possa aperfeiçoar ou mesmo reescrever e virtualmente convertê-lo em meta compartilhável. Não adianta intimidar-se, ou fazemos nós ou ninguém o fará.
    http://segundasfilosoficas.org/uma-solucao-democratica/

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  • Herbert Sílvio Augusto Pinho Halbsgut disse:

    Fernão, o que você hoje nos revela, quase como um resumo de tudo o que se apresenta sob sua ótica nas análises no vespeiro, é jornalismo transparente a serviço do bem-comum – deveria ser dada a ler a todos os maçons que são herdeiros dos fundadores da República – mostrando a nossa realidade atual como ela é de fato. Aliás, leitura obrigatória para todos os brasileiros, mormente os da privilegiatura. Concordo consigo plenamente que a “despetrificação”, como você descreve, das vantagens absurdas da privilegiatura, será a hodierna abolição da escravatura no Brasil, Poderímos começar pela despenduricalhização(sic!) dos contracheques privilegiados para aliviar as contas públicas. As diferenças de renda e a concentração dela em mãos de grandes grupos é um verdadeiro golpe de Estado urdido ao longo de nossa história por grupos de matizes variados. Para isso, sempre foi fundamental para os golpistas manterem o povo na ignorância e sob o chicote das maldades da má distribuição da renda, e serviços. Carecemos urgentemente estudar uma renda mínima – tendencia mundial – para todos os brasileiros, mormente os desempregados, para compensar o desemprego devido a evolução tecnológica desacompanhada de em ensino de qualidade. Por enquanto, Bolsonaro só mudou a velha mobília de lugar e chama a isto de reforma do Estado. A iniciativa popular, democrática, é que trará a mudança que desejamos; nada cairá simplesmente dos olimpo privilegiado de Brasília e seus apaniguados.

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  • Ethan Edwards disse:

    Apenas um reparo no seu apaixonado e lúcido artigo. No caso brasileiro, a oposição esquerda x direita replica a oposição privilegiatura x povo, não porque a direita represente automaticamente o povo, mas pelo fato de que a esquerda, na sua paixão pelo “tudo no Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado”, acaba por servir, consciente ou inconscientemente, à privilegiatura (na qual a esquerda se incrustou gostosamente nos últimos trinta anos). Todo aquele que defenda os direitos negativos do indivíduo contra as pulsões autoritárias do Estado e seus amantes da “sociedade civil” choca-se quase imediatamente contra a esquerda, ora “distributivista”, ora “anti-imperialista”, ora “contra o neoliberalismo”, etc. A esquerda brasileira vive de ordenhar o Estado por meio de corporações, sindicatos, UNE, MST, ongs governamentais (yes! nós temos bananas…), sistema público de ensino, sistema público de comunicação e mais um milhar de etcéteras. Ora, não é preciso ter sido marxista para saber: é ocioso lutar contra narrativas se não se expropriam os “meios de produção” dos narradores. Nesse contexto, Paulo Guedes, na sua indiferença pela sorte das corporações atreladas ao Estado, faz mais pelo enfraquecimento da esquerda do que milhões de indignados direitistas postando na redes sociais. Não é outra a razão do destempero de Lula, subitamente transformado no que nunca foi, um incendiário: os “meios de produção” do lulismo estão definhando.
    É pela economia, acredito, que deve penetrar em nosso ambiente cultural um novo oxigênio, individualista, anticorporativo, provavelmente mascarado, nos primeiros tempos, sob um conjunto de direitos “do consumidor” ou “do contribuinte”; os direitos “do cidadão” costumam vir depois. Mas virão, se o ciclo virtuoso inaugurado com a derrota da esquerda se completar. Os cidadãos sabem que as conquistas da economia precisam ser consolidadas pela política.
    Parabéns pelo excelente artigo.

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    • flm disse:

      Tudo verdade, Ethan…
      Mas até a fronteira interior da politica esquerda e direita não se diferenciam muito quanto a esse aspecto pois a politica é território privativo de caça da privilegiatura e o pertencimento a essa “nobreza” sobrepõe-se aos vieses ideológicos. Os dois defendem a mesma coisa quando é de preservar a “nobreza” que se trata.
      Ninguém do país real pode entrar na política sem ser aceito no redil de algum cacique ja devidamente “amaciado” para os hábitos e as regras internas do sistema. Daí para fora, na “sociedade civil”, digamos assim, começa a diferenciação a ser percebida sem que seja necessário muita sutileza para definir os “lados”: ha os que pagam a conta e por isso posicionam-se “à direita”, e os que são pagos pela conta e por isso posicionam-se “à esquerda”.
      Mas para tudo ha remédio, e o mais poderoso deles é a história e os exemplos concretos aos quais prometo voltar logo mais…

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    • LSB disse:

      “Todo aquele que defenda os direitos negativos do indivíduo contra as pulsões autoritárias do Estado e seus amantes da ‘sociedade civil’ choca-se quase imediatamente contra a esquerda, ora ‘distributivista’, ora “anti-imperialista”, ora “contra o neoliberalismo”, etc.”

      Perfeito. Acrescento somente que os dogmas da esquerda (que “justificam” as “pulsões autoritárias do Estado”) estão todos petreficados na CF/88.

      Abs
      LSB

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  • LSB disse:

    Prezado Fernão,

    Há algumas semanas atrás postei um comentário no seu artigo “Como é na Democracia – 1” onde questionava como seria possível encaminhar reformas profundas em nosso país tendo em vista a rigidez da CF/88. Terminei ainda meu comentário com a seguinte interrogação: “Só com uma nova CF, mas… como?”

    Em resposta você afirmou que “a CF terá que ser revista” e indicou, como estratégia, “promover um confronto da CF contra a CF, opondo seus princípios básicos com os artigos todos que os contradizem ou se chocam com eles”.

    Comentei em minha tréplica que havia achado interessante sua proposta de eliminar as “contradições” da CF, porém eu tinha “lá minhas dúvidas” e não sabia “se, de fato, funcionaria”.

    Fiquei com essa ideia na cabeça e no artigo de hoje você voltou a bater na mesma tecla: “O Brasil só chegará ‘lá’ quando fizer a mesma coisa, começando por excluir de sua constituição tudo que não diga respeito a todos os brasileiros, sem nenhuma exceção, e por ‘despetrificá-la’”.

    Entretanto, pensando sobre essa linha de ação, afirmo que ela é impossível!

    Veja, não é porque há disposições contraditórias que qualquer uma delas pode ser revisada ou revogada!

    Sendo cláusula pétrea (ou podendo ser caracterizada como tal) não pode ser retirada exceto na hipótese de uma nova constituinte. O fato de algum dispositivo legal ser contraditório ou mesmo INCONCILIÁVEL com outro diploma jurídico não implica em um “direito” de revogá-lo sem nova constituinte (se o mesmo pode ser classificado como cláusula pétrea).

    Desculpe, mas tentar enxugar a CF/88 eliminando, por ser contraditório com a própria CF, qualquer cláusula classificável como pétrea não é possível. De fato, a CF não prevê a hipótese de uma cláusula pétrea ser revogada “somente” por ser contraditória ou inconciliável com a própria CF ou mesmo com a realidade.

    Não há a menor chance do meio jurídico (universidades, juristas, judiciário, OAB, causídicos em geral) aceitar tal tratativa. Primeiramente porque eles já possuem uma resposta pronta na ponta da língua: seria totalmente aceitável, e até mais, seria totalmente normal e até mesmo desejável princípios contraditórios na CF, pois caberia ao juiz/judiciário sopesar os princípios contraditórios e “equilibrar/arbitrar”, em cada caso concreto, a aplicação dos princípios contraditórios!

    Digo até que para o direito brasileiro a existência de tantas contradições, antes de ser sintoma de uma péssima carta, seria, na verdade, uma “prova” da magnanimidade do texto legal (argumentando que o texto legal revela seu “alto valor” exatamente por ser capaz de “conciliar/abarcar” todos os “valores” que a sociedade exige que sejam estabelecidos legalmente/constitucionalmente – e a contradição seria “somente” uma característica de tal “perfeição”: totalmente compreensível, esperada e até mesmo a razão da existência do judiciário que teria, como missão fundamental, como propósito basilar de sua existência, a tarefa de interpretar e aplicar os códigos legais considerando suas contradições).

    Em segundo lugar, com uma quantidade de universidades de direito e de bacharéis maior que a soma de todas faculdades e advogados de todos os outros países juntos é realmente inimaginável que “aceitarão” uma simplificação dos nossos textos legais sem “espernearem”. Estarão advogando em causa própria, é claro, mas o cidadão(ã) racionaliza e acaba acreditando que qualquer mudança seria uma forma de “cortar direitos” (“retrocesso” na linguagem “lacradora”).

    Em suma, tentar “enxugar” a CF/88 eliminando suas contradições NÃO é possível, pois a “Cidadã” não estipula que a contradição seja motivo para se revogar cláusulas pétreas (só uma nova constituinte é que teria esse poder).

    Abs

    LSB

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    • flm disse:

      No momento nada é possível pois toda e qualquer mudança é ilegal ou inconstitucional.
      Tudo, portanto são provocações necessárias para levar as pessoas a desafiar o status quo com alguma direção. Esse é o fermento que leva as coisas a acontecer.

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      • LSB disse:

        “No momento nada é possível pois toda e qualquer mudança é ilegal ou inconstitucional.”

        Isso. E continuará sendo.

        “Tudo, portanto são provocações necessárias para levar as pessoas a desafiar o status quo com alguma direção.”

        Ok, mas ainda que haja um “desafio” ao status quo e este tenha “alguma direção”, as mudanças necessárias continuarão “ilegais/inconstitucionais” e, portanto, “desafios” nesse sentido somente podem acabar em 3 hipóteses:

        1 – nada acontecer e tudo permanecer o mesmo;
        2 – Revolução civil; ou
        3 – Nova constituinte (a “mor de quê” é que eu não sei…)

        Abs
        LSB

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  • Flm disse:

    Você esquece a história recente deste país!

    O que o povo decididamente quer acontece, nem que seja a queda do governo do PT, a coisa mais “impossível de acontecer” até acontecer…

    A boa luta, portanto, é trabalhar para informar o povo de modo a que ele venha a querer decididamente a coisa certa.

    Faça a sua parte em vez de continuar com o chororô que diz ao povo “Não queira nem faça nada porque tudo é impossível”.

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    • LSB disse:

      Fernão,

      Esse seu comentário não está abaixo da minha tréplica acima, porém, pelo teor, entendo que foi uma resposta àquela.

      Assim, vou comentar como se fosse (se não for, desculpe).

      Não esqueço a história recente do país. E nem a não tão recente.
      De fato, o “povo” tirou o PT do poder, mas isso não é sequer inédito (o Collor também foi posto para fora e em condições que guardam bastante similaridades àquelas nas quais Dilma se encontrava, tais como crise econômica, relação conflituosa com o Congresso, etc. Aliás, para ser justo, Bolsonaro também corre o risco de se ver no meio do mesmo tipo de tempestade, basta a economia não deslanchar…).

      Agora, o “povo” pedir nas ruas mudanças institucionais radicais (disruptivas até mesmo) é bastante diferente. Para tanto, haveria de, no mínimo, existir um “modelo” de Estado/país que arregimentasse uma parcela significativa da população e conquistasse “corações e mentes” em todo território nacional. E tal “modelo” teria que ser minimamente consistente, coerente e “completo”.
      (e não temos tal modelo… não há sequer qualquer discussão minimamente séria – com um mínimo de profundidade – sobre nossa arquitetura institucional…)

      Qualquer coisa que, por mais gente na rua que colocasse, se resumisse a slogans vazios (“mais Brasil, menos Brasília”; “pelos direitos civis”; “pela liberdade econômica”; “menos Estado”; etc.) estaria fadada ao fracasso por simples falta de alternativa “real” a se propor.

      Por outro lado, “construir” um modelo que seja uma alternativa “real” (que nem começamos a discutir) e, principalmente, seja capaz de mobilizar milhões é quase impossível (isso porque envolve conceitos abstratos sobre o Estado, história, ciência política, etc. – temas áridos e que não são bem compreendidos pela maior parte da população).
      Lembre-se que a Constituição Americana foi redigida por meia dúzia de pessoas e “secretamente”.

      Tentar levar o povo para rua na base do “grito de guerra” (ex.: “menos Estado e menos burocracia”) e ter na manga um plano/modelo bem arquitetado é aposta arriscadíssima.

      Resta, então, a estratégia de tentar mobilizar o “povo” para mudanças pontuais (que seriam catalisadores de outras) tal como o “voto distrital puro com recall”.
      Não desaprovo tal estratagema, porém penso que:

      a) considerando a quantidade de mudanças que necessitamos, teríamos que fazer mobilizações “pontuais” mensalmente até 2085…

      b) a estratégia teria muita chance de falhar caso a mudança pontual suscitada seja considerada “cláusula pétrea”.

      Vou me deter um pouco nesse segundo ponto.
      Não se trata de não acreditar que “o que o povo decididamente quer acontece, nem que seja a queda do governo do PT, a coisa mais “impossível de acontecer’ até acontecer…”, mas sim se perguntar como se faria acontecer e o que aconteceria depois.
      A primeira parte da questão pode ser, simplificadamente, respondida com um “basta conscientizar a população”. Mas isso não é tão “simples” assim.
      Tente imaginar uma mobilização para se “desconstitucionalizar” os direitos sociais!
      De fato, direitos sociais, por estarem totalmente dependentes das circunstâncias, não deveriam estar na Constituição (que deveria se limitar a conceitos/dogmas/direitos perenes) e sim em leis ordinárias.
      No entanto, como mobilizar o “povo” para tal propósito?
      Supondo ainda que seja possível, o que aconteceria caso houvesse uma grande mobilização para “mexer em cláusulas pétreas”?
      O movimento esbarraria no judiciário. Sim, pois por maiores que fossem tais mobilizações, o “mainstream” acusaria seus líderes de “golpistas” por proporem “quebras institucionais” (fariam campanhas internacionais e constrangeriam os “engajados” mais sensíveis os taxando de extremistas, irresponsáveis, loucos, lunáticos e, principalmente, incendiários).
      Em suma, não é nem que não seria possível ocorrer uma mobilização do tipo (por mais difícil que seja, possível é), no entanto, ocorrendo:

      a) ou legislativo e judiciário “aceitariam” pacificamente o desejo do povo (hipótese “pollyanna”: não acredito que ocorreria);

      b) ou, a partir da reação do “establishment” (conforme descrito acima), a mobilização seria desmobilizada;

      c) ou haveria algum tipo de conflito (ou seja, não seria “harmônico” ou “pacífico” o processo de mudanças pelo qual nosso país passaria).

      No mais, garanto que eu faço minha parte. Contribuição humilde, reconheço, mas é o que está ao meu alcance: Já me prejudiquei profissionalmente por não concordar com, digamos, a “política da empresa”; estou sempre “discutindo” com conhecidos por mais que isso “não pega bem” socialmente e também perco meu tempo escrevendo longos textos em blogs/sites onde acredito que posso contribuir para uma melhor análise dos desafios de transformar nosso país.

      Enfim, não me entenda mal, o que escrevo não se trata de um “pessimismo comodista” (ou acomodado), mas sim um tentativa de ser “realista” e mapear adequadamente (e o mais profundamente possível em textos “curtos”) as circunstâncias, a realidade “nua e crua”, as limitações, as alternativas teóricas existentes (suas probabilidades de sucesso, seus “pré-requisitos”, suas implicações, suas consequências, etc.). Ou seja, o intuito é colaborar (ainda que fazendo o papel de “advogado do diabo”).

      abs
      LSB

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      • Flm disse:

        Toda a sua linha de raciocínio decorre da razão pela qual não há democracia no Brasil: a fundamental desconfiança na “sabedoria do povo” que não deve ser confundida com a “sabedoria” do sábio que, sentado em sua poltrona põe-se a elucubrar que “se isto, então aquilo”, ”a um possível movimento corresponderá tal ou qual reação“ e então a resposta seria tal ou qual e assim indefinidamente por diante…

        A sabedoria do povo a que me refiro inclui você e eu e a nossa inata capacidade de procurar da melhor forma que nos parecer a cada momento a nossa própria felicidade.

        A democracia americana fixa apenas e tão somente a inviolabiladide do indivíduo no seu corpo, no seu pensamento, na sua propriedade e no seu direito de ”buscar a felicidade”, isto é reagir aos acontecimentos e fazer as necessárias adaptações ao que der e vier, da maneira que melhor lhe aprouver. Fixou em sete artigos apenas isso e mais as linhas básicas do mecanismo mediante o qual essas mudanças devem ser pacificamente processadas: os três poderes em sua relação de checks and balances com que o povo se faz representar para exercer o poder.

        Só isso foi fixado. Só isso é imexível. O que o governo ou as pessoas estão proibidas de fazer para que essa inviolabilidade permaneça garantida e o ”como fazer” tudo o mais. O “o que fazer” quanto a todo esse vastíssimo mais, “pertence ao povo ou aos estados” (9a e 10a emendas à constituição).

        O resto vem sendo construído todos os dias pelos mecanismos de ensaio e erro que o Vespeiro vive descrevendo, sem que ninguém “paute”, seja as mudanças que a vida e a história vão impondo, seja as respostas que o povo provisoriamente dá a cada uma delas enquanto espera a próxima mudança.

        Sendo assim, eu sugeriria que o senhor relaxasse quanto às ações e reações que espera do povo “se” … e concentre-se em dar a ele as condições de reagir por si mesmo ao que acontecer em vez de esperar que outros o façam por ele como acontece no Brasil.

        Para tanto tudo que se faz necessário são duas ou três coisas fundamentais: um sistema de representação honesto e as 3 ou 4 ferramentas que lhe permitirão impor sua vontade aos seus representantes na hora de decidir cada mudança.

        Quanto ao que fazer daí em diante, deixe-se surpreender pelo povo.

        No dia em que o Brasil fizer isso vai acordar, de repente, em plena democracia, curioso em vez de temeroso do futuro, embarcado gostosamente nele em vez de exausto da eterna tentativa de doma-lo.

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      • LSB disse:

        Prezado Fernão

        Creio que você interpretou mal minhas palavras. Serei mais esquemático.

        1 – Não tenho desconfiança alguma em relação à “sabedoria do povo”. Pelo contrário, creio que o sistema americano, onde a maioria das leis é local e necessita ser chancelada pela população, é o ideal. De fato, acredito tanto na “sabedoria do povo” que, apesar de ter alguns títulos acadêmicos, tenho CERTA ojeriza ao academicismo e às formulações teóricas emanadas das academias e da elite intelectual;

        2 – Ainda acreditando (e muito) na sabedoria popular, entendo que é muito difícil (embora NÃO IMPOSSÍVEL) convencer nossos compatriotas das mudanças necessárias (“power to the people”). É difícil convencer o povo que já está acostumado a ser “dirigido” completamente e mais difícil ainda convencer a elite que o povo não precisa ser “conduzido” (de fato, “conduzir” o povo é a única razão de ser para uma grande parcela da elite);

        3 – No entanto, embora acredite na “sabedoria do povo” (1) e até acredite que seja possível a mobilização da sociedade (2), quando (e se, para os mais pessimistas) esta ocorrer, a reação do “stablishment” (ou privilegiatura ou “mainstream” ou estatistas ou paternalistas – enfim, chame do que quiser) será gigante. Ninguém perde nada sem espernear muito.
        Assim, haverá reações e, como boa parte das mudanças necessárias envolvem questões que podem ser classificadas como cláusulas pétreas, a reação se fundamentará no fato de que “cláusulas pétreas” não podem ser revogadas, eliminadas, etc. A reação pintará a ação como movimento desestabilizador, incendiário e que “procura/propõe” quebras institucionais, etc. (e contando com o Judiciário para manter o “status quo” – que confirmará a impossibilidade de se alterar “n” coisas por serem cláusulas pétreas).

        Resumindo: embora acredite muito na “sabedoria popular” (e por conta disso que já tive muitas discussões em meios intelectualizados) e até creio ser possível (embora difícil) a mobilização popular, uma vez que esta ocorra, a reação também ocorrerá e será tão forte que OU acaba com a mobilização OU algum atrito (eufemismo para conflito, mais ou menos intenso, com ou sem derramamento de sangue, mais ou menos traumático, etc.) será inevitável.

        Abs
        LSB

        (PS: talvez não devêssemos nos preocupar com reações e, no momento, somente nos preocuparmos em “conscientizar” o povo – primeiro passo – e “deixar acontecer”… Ok, nada contra; mas eu, particularmente, já estou “preocupado” com a efetividade, probabilidade de sucesso, implicações e consequências dessa “conscientização”. Talvez esteja colocando os bois à frente da carroça, mas…).

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  • Herbert Sílvio Augusto Pinho Halbsgut disse:

    E isto Fernão,o povo precisa tomar o gosto pela participação cidadã e ir colhendo os resultados, um- a- um, dia -após- dia, ano-após-ano, pois a história, no seu sentido mais amplo, não se constrói num estalo de dedos, mas pode mudar repentinamente de rumo, com rupturas benéficas para o bem comum. Se se deixar ao léu esperando que os outros façam, tomando iniciativas para resolver os nossos problemas, aí não haverá mudanças. Líderes esclarecedores apontando os melhores caminhos e iniciativas são necessários, mas a vontade e a participação da massa cidadã é insubstituível, com preparo e conhecimento estratégico para arregaçar os punhos e as mangas , preferivelmente dentro da legalidade, pois fora dela pode advir o caos e a liberação dos quatro cavaleiros do Apocalipse que estão sempre a espreita da humanidade: guerra, fome, pestilência e morte. Uma nova constituinte, com preparativos para que tal acontece de forma equilibrada visando a todos os cidadãos. Quem sabe se algum grupo de notáveis brasileiros – e por que não observar o que os estrangeiros já fizeram e deu certo, como o voto distrital puro que você Fernão tão dedicadamente defende – já possa ir redigindo um rascunho para uma nova Carta Magna brasileira a ser oferecida aos futuros – espero que brevemente – constituintes, sem atropelos de ultima hora, ou pressões de grupos ” messiânicos ” demagógico-sectaristas. É como num jogo de palitos chinês, onde cada palito – leia-se empecilho, nó, problema, entrave – será removido, desmontando esta situação hoje reinante pela atuação dos vendilhões do templo, por exemplo a turba ameaçadora propondo o AI-5. Divulgação com a participação de uma imprensa livre, democrática, ativa, idealista e ao mesmo tempo realista, formando a opinião popular. Acredito piamente nisto na situação atual: do povo, pelo povo e para o povo, construindo uma Nação capaz de tomar suas decisões de forma independente de cabrestos e escravidões. Lembro da frase imortal: “O Brasil espera que cada cumpra com o seu dever”, que pode sim ser ainda hoje um brado de cidadania pela liberdade. Em Hamburg, na Alemanha, li gravado na pedra de um monumento no centro desta Cidade- Estado – uma das quatro Cidades Estado – um texto da Constituição dela que começa assim: ” Nós, o Povo,… Você está certo, na minha modesta opinião! E… o Vespeiro se agita, discutindo idéias e ideais. Grato!

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  • Ethan Edwards disse:

    Não compartilho do otimismo do Fernão a respeito da espontaneidade de um movimento autenticamente popular que tenha por objetivo a criação de instituições democráticas. Tomo como referência contemporânea mais próxima o movimento dos direitos civis, nos EUA, que combateu as práticas de apartheid e culminou, no plano legislativo, nas leis promulgadas por Lyndon Johnson no meio dos anos 1960. Era um movimento fortemente organizado, com Luther King à cabeça de um verdadeiro Estado Maior, e que foi longamente precedido pela difusão de uma verdadeira “cultura da libertação” que se expressava por meio da música, da literatura, da propaganda e, sobretudo, da religião. Creio que esse é o modelo em que deve se inspirar, inclusive no Brasil, todo movimento democrático.

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    • Flm disse:

      Acho que não me expressei bem. Sua fórmula, concordo com variações, é a necessária para armar o povo de recall, referendo e iniciativa. A partir de então, é o povo que constrói a democracia por ensaio e erro, peça por peça, voto por voto, como acontece diariamente nos EUA, Suíça e outros países. Onde ele dispõe dessas ferramentas já não é mais preciso arregimentar as massas para grandes mudanças. O processo torna-se absolutamente orgânico.

      Nos EUA os fundadores fincaram a baliza essencial – 7 artigos e 28 emendas que descontadas meia dúzia que são erros ou acidentes de percurso apenas detalham parte dos 7 artigos. O resto foi o povo que construiu com essas ferramentas na mão.

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