A tradição da mentira no Brasil

4 de setembro de 2019 § 15 Comentários

Artigo para O Estado de S. Paulo de 4/9/2019

No editorial “Os Problemas da delação” (29/8) este jornal endossou o “viés formalista” da tese do STF (na verdade, a meu ver, ela é bem mais que só isso) que resultou na libertação de Aldemir Bendine, o elemento que o PT instalou na presidência da Petrobras e do Banco do Brasil em boa parte do período em que passaram pelo “maior assalto consentido já registrado na historia da humanidade”. Não existe qualquer dúvida quanto à culpabilidade de Bendine nem dos seus comparsas mas o precedente poderá resultar na libertação de praticamente todos os envolvidos, a começar pelo o ex-presidente Lula, sobre cuja culpabilidade também não paira a menor dúvida.

Vem de muito longe o processo de domesticação do brasileiro para deixar-se cavalgar pelo absurdo sem reagir. O sistema de educação jesuíta, a ordem religiosa que por 389 anos teve o monopólio régio da educação no Brasil, não partia de perguntas nem visava a aquisição de conhecimento. Era um sistema defensivo criado para sustentar a qualquer preço a “verdade revelada” que fundamentava o sistema de poder e de organização da sociedade em castas detentoras de privilégios hereditários ameaçados pela revolução democrática.

O truque consiste em despir toda e qualquer ideia a ser discutida da sua relação com o contexto real que a produziu para examiná-la como se existisse em si mesmo, desligada dos fatos ou pessoas às quais se refere. Sem sua circunstância, a idéia transforma-se num corpo inerte, ao qual não se aplicam juízos de valor. Assim esterilizado, o raciocínio é, então, fatiado nos segmentos que o compõem, sendo a coerência interna de cada um examinada isoladamente nos seus aspectos formais, segundo as regras da lógica abstrata, as únicas que podem ser aplicadas a esse corpo dissecado.

Se qualquer desses segmentos apresentar a menor imperfeição lógica ou puder ser colocado em contradição com qualquer dos outros, a imperfeição “contamina” o todo e o debatedor fica autorizado a denunciar como falso o conjunto inteiro, mesmo que, visto vivo e dentro do seu contexto, ele seja indiscutivelmente verdadeiro.

Como nenhuma proposição humana é capaz de passar incólume por esse exercício de dissecação a pessoa começa a duvidar da própria capacidade de discernimento. Desclassificados o senso comum (até hoje a base do sistema jurídico anglo-saxônico) e a razão como instrumentos bastantes para dirimir controvérsias, tudo acaba tendo de ser decidido por um juiz segundo uma regra artificial que deve ser vaga o bastante para permitir as mais variadas interpretações, de modo a conferir a esse juiz uma virtual onipotência.

Invocar o límpido preceito do “na dúvida, a favor do réu” para justificar o movimento que, visto no conjunto tem o óbvio propósito de manter a impunidade dos representantes do povo que traem seus representados — a própria negação do sentido de “democracia” — é um exemplo prático de como esse sistema põe a verdade a serviço da mentira e a lei a serviço do crime.  Seguido à risca ele garante que nenhum réu com dinheiro suficiente para pagar advogados possa ser condenado em definitivo e nenhum “direito adquirido” pela privilegiatura (são estes que estrangulam economicamente a nação; o que nos roubam sem o recurso à lei é apenas troco) venha a ser desafiado.

O esquema de Antonio Gramsci é um aggiornamento da dialética defensiva jesuíta. Ele marca o momento da rendição da utopia socialista e o decidido abraço da casta que ela pôs no poder pelos caminhos do privilégio na luta contra a meritocracia, o pressuposto essencial da democracia. A paulatina conversão dessa luta de uma disputa entre verdades concorrentes para a destruição do próprio conceito de verdade (a “pós-verdade”) inclui o reconhecimento da relação indissolúvel entre democracia e verdade (cujo agente intermediador é a imprensa que não sobreviverá se não reassumir esse papel). E a admissão do fato de que onde está bem plantada ela só pode ser destruída por dentro, a partir de uma deliberação da maioria contra si mesma, e que só uma trapaça (como a censura gramsciana) pode produzir esse efeito homenageia a superioridade moral que os seus inimigos sempre negaram à democracia ao longo de todo o século 20.

A apropriação pelas ditaduras socialistas dos métodos do capitalismo pré-democrático, o ataque maciço contra os direitos do consumidor, o esmagamento do indivíduo e a concentração extrema da riqueza frutos da volta dos monopólios, a globalização da censura gramsciana agora deslocada para o campo do comportamento, os ensaios de Vladimir Putin para o falseamento da eleição americana, as primeiras ações de censura das mega-plataformas da internet, os movimentos coordenados de militâncias internacionais contra e a favor de governos nacionais tendo a Amazônia (e não somente ela) como pretexto, desenham os contornos que terá a guerra ideológica no novo mundo hiperconectado. As UTI’s serão invadidas, os cateteres de sustentação da vida (no caso brasileiro o do agronegócio) serão implacavelmente arrancados das veias das economias moribundas, os interesses de casta da privilegiatura estarão sempre acima de tudo. Mas os únicos remédios conhecidos seguem sendo os mesmos de sempre: a exposição da verdade e o culto ao merecimento.

O Brasil não precisa de “um novo pacto social”. O Brasil precisa do seu primeiro pacto social. Fazer a revolução democrática que saltou. Mudar o poder de dono pela primeira vez em sua história. E a única maneira conhecida de consegui-lo sem que a tentativa degenere num sistema de opressão da maioria sobre a minoria é com a velha receita dos iluministas. Uma democracia efetivamente representativa, o que só o sistema de eleições distritais puras proporciona, com uma cidadania armada de recall, referendo, iniciativa legislativa e a prerrogativa de reconfirmação periódica dos poderes dos seus juízes, pela razão muito elementar de que fora dos contos da carochinha, só tem algum controle sobre o seu destino e condição de proteger o que é seu quem tem o poder de demitir.

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§ 15 Respostas para A tradição da mentira no Brasil

  • marcos a. moraes disse:

    Viés formalista? Vc é contra isso?

    “…Para a Segunda Turma do STF, uma vez que as alegações finais dos réus que fizeram delação premiada têm um caráter de acusação em relação aos outros réus não colaboradores, estes devem ter o direito a apresentar posteriormente suas alegações finais no processo. Caso contrário, haveria no processo elementos acusatórios, oriundos da delação, sobre os quais a defesa de determinado réu não teria possibilidade de se manifestar…”

    Dá-lhe, autocrata!

    MAM

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    • RUBI RODRIGUES disse:

      Você está sendo injusto. Ele não se insurgiu contra o formalismo, mas contra o seu uso para beneficiar bandidos. A tua critica pressupõe a perfeição legislativa o que é indefensável.

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      • Walter Alba disse:

        Entendo que os garantistas defendem principios em abstrato desviculados da realidade, quer dizer, do contexto, na minha opinião essa leitura da lei junto com as 4 instancias permitem que apenas os pobres sejam efetivamente punidos. No direito ingles “common law” predomina o fato. No editorial, fica bastante evidente que o contexto onde as coisas aconteceram foi omitido.

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  • luizleitao disse:

    FLM, dou aqui um exemplo da indolência do serviço público que nos obrigamos a aturar. Movo um processo contra um devedor, e os autos estão conclusos (prontos para decisão/julgamento) para o juiz desde 26/8. Pedi ao advogado para reclamar e ele disse que se fizer isso, podem nos colocar em último na fila, por birra. A decisão que falta proferir é bem simples: mandar bloquear a conta bancária do devedor, algo que o juiz já disse que deveria ser feito, faltando apenas o autor (eu) pagar as custas, meros R$ 15,00. Isso foi feito em 24/8. Então é assim, o escrivão da vara toma birra de quem reclama, quando devria, isso, sim, ser demitido. Agem como se nos fizessem um favor!!

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  • Se o trânsito da mentira continuar tão intenso chegará o dia em que não seremos mais capazes de identificar a verdade quando ela aparecer. É o homem suicidando a civilização pela ignorância. Concordo Fernão que uma organização política projetada para viabilizar democracia ajudaria – substituindo o modelo monárquico disfarçado/adaptado para sustentar três cortes em lugar de uma -, mas penso que a solução requer uma intervenção em plano mais essencial. O melhor instrumento de sobrevivência concedido ao homem pela natureza é uma mente capaz de interpretar e entender. Ou aprendemos a usá-la metodicamente ou continuaremos batendo cabeça.

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    • Herbert Sílvio Augusto Pinho Halbsgut disse:

      Muitos eleitores ainda não leram o “Admirável mundo novo” e o ” De volta ao admirável mundo novo” – de Aldous Huxley – e tantas outras obras sobre o mundo dos que conduzem e daqueles que preferem ser conduzidos a troca de benesses, não importando o bem comum.

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  • Newton Sinigaglia disse:

    Perfeito, parabéns. Newton Sinigaglia.

    Enviado do meu iPhone

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  • Walter Alba disse:

    Adorei o artigo! preciso e profundo. Eu tinha o Editoria do Estado e fiquei pasmo com seu formalismo vazio. Parabens mais uma vez para Fernão pelo artigo e pela coragem.

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  • Mora disse:

    Fernão, prevalece sempre a forma e não o conteúdo. Mesmo mentes esclarecidas ficam perdidas quando a forma é apoiada por poucas mentes interesseiras, em confronto com o silêncio dos demais.

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  • Pedro Marcelo Cezar Guimarães disse:

    A decisão de soltar A. Bendine se presta a abrir precedentes para o escape da legião de corruptos presos, ou que estão na porta do xilindró, encomendada pelos abonados políticos bandidos.
    Sem previsão normativa, existência doutrinária, ou interpretação jurisprudencial, o julgamento do STF afigura-se em convicções pessoais por razões “interna corporis”, ou seja, destinada ao futuro habeas corpus geral da quadrilha!
    O congresso necessita do foro privilegiado da impunidade no STF e o STF precisa evitar o impeachment do Senado. – Uma mão lava a outra.
    Resta, o povo soberano, exigir o “cabo e o soldado”.
    Abaixo a República Cleptocrática!

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  • Alexandre disse:

    Oi, Fernão, na mesma linha, vale lembrar o artigo “A verdade (real) de Moro”, de autoria do juiz Marco Antonio Barbosa de Freitas, publicado no Estadão há dois meses.

    “Toda a celeuma gira no entorno do papel do juiz nos dias que correm, em especial quando em jogo o jus libertatis num processo penal; ensina-se, geralmente ainda no segundo ano das faculdades de Direito, que, em casos tais, o juiz não deve se conformar com posição de passividade em relação ao que acusador e réu lhe trazem de material probatório para julgar – a tal verdade meramente formal –, mas deve espontaneamente avançar na busca de provas, em caso de eventual inércia ou inépcia dos que, originariamente, deveriam bem se desvencilhar de tal mister.

    Aprende-se, então, nas aulas de Teoria Geral do Processo, que nessas situações o juiz dará cabo do princípio da verdade real, eis que independentemente de solicitação das partes, seu objetivo maior é chegar o mais próximo possível dos fatos como realmente ocorreram; obviamente que estas linhas não se destinam à Comunidade Jurídica, para quem, certamente, esta é lição para lá de elementar, mas sim àqueles que, não sendo do meio jurídico, estranharam a procura do juiz, a todo tempo, por provas que pudessem delinear o eventual comportamento delitivo dos réus sob seu julgamento.

    Não se pode confundir parcialidade de julgamento com busca incessante por provas: no primeiro caso, tem-se julgador subjetivamente vinculado a interesses de uma das partes; no segundo, tem-se julgador objetivamente comprometido na busca da verdade (real), e, por isso, não soa disparatado que, em harmonioso diálogo mantido com quaisquer representantes dos polos da ação, recomende o juiz a obtenção de provas que formarão o seu convencimento, já que ele será o destinatário delas”.

    https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/a-verdade-real-de-moro/

    Um abraço.

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  • Mara Panico Grecco disse:

    Excelente artigo! Inteligível aos mortais iletrados! Objetivo, instrutivo, assertivo! Agradeço a sua publicação!

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