Murdoch e a esperança de que exista vida fora da corrida de ratos (reformulado)
19 de julho de 2011 § Deixe um comentário
O escândalo envolvendo os jornais de Rupert Murdoch traz à tona um problema que é mais generalizado do que parece à primeira vista, embora neste caso, como em tantos outros, o que diferencia o remédio que salva da droga que vicia e do veneno que mata é o tamanho da dose.
O lado positivo está no fato de ter sido a persistência de repórteres de The Guardian que, fazendo jus ao nome, tornou conhecida a verdadeira dimensão do iceberg que se escondia por baixo da primeira ponta dele que aflorou em 2005 quando a família real inglesa se queixou à polícia depois que o conteúdo de mensagens de texto trocadas entre os príncipes por telefone começaram a aparecer no News of the World.
Aquilo que já se descobriu na esteira do que o Guardian levantou, e tudo o mais que é possível vislumbrar em função do trabalho de todos que vieram atras dele, contém dinamite suficiente até para jogar definitivamente no chão o maior império do jornalismo corporate em operação no mundo hoje, que se notabilizou por distribuir “cala-bocas” aos bilhões a torto e a direito para acobertar suas violências o que, seja qual for o desfecho deste caso, já pode ser saudado como uma importante prova da eficiência dos mecanismos essenciais da democracia.
Uma imprensa livre, profissional e pautada pelas normas éticas de sempre é indispensável até para expor os podres da própria imprensa, que jamais viriam à tona por outros meios ou poderiam ser desinfetados por mecanismos de controle externo como ainda querem algumas correntes em posição de mando nos muitos territórios do mundo sem nenhuma tradição democrática sólida.
Mas mesmo pondo o passadismo mal intencionado de lado, cabe alertar para o fato de que a doença que pode enterrar o Império Murdoch e se manifesta em toda a sua virulência na Inglaterra, berço original da demoracia moderna, é a versão exacerbada de um novo tipo de ameaça com que se vê as voltas a imprensa ocidental como um todo.
E a origem dela é endógena.
Até meados do século passado o mais comum era que o diretor/proprietário de um jornal fosse um jornalista. Com o tamanho crescente do investimento necessário para a criação e manutenção de uma operação jornalística profissional (ou até pela sucessão no comando das empresas) o padrão passou a ser o de homens de negócios exercendo a liderança dos jornais.
Não cabe discutir aqui se a ética empresarial é melhor ou pior que a ética jornalística. A questão que importa é que elas são diferentes e as razões para que sejam diferentes são bastante simples e objetivas, embora nem sempre sejam entendidas assim sobretudo pelos homens de negócio hoje à frente das empresas jornalísticas.
Uma fábrica de biscoitos, por exemplo, tem compromissos éticos e de responsabilidade no tocante aos ingredientes e à higiene, além daqueles que dizem respeito às relações de trabalho. Para além disso, o produto que ela fabrica não sofre qualquer injunção de ordem moral.
Um órgão de comunicação é diferente. Ao informar; ao selecionar informações; ao interferir no destino dos indivíduos; ao reivindicar o direito de violar a privacidade dos detentores do poder politico, ele atua e também exerce poder sobre a sociedade que procura representar.
Os órgãos de comunicação, para resumir, são negócios que trazem poder político. E poder político é algo que só se pode pleitear por razões minimamente altruísticas, isto é, em nome do bem publico e não exclusivamente no da busca de lucro ou do puro exercício de um privilégio.
É por essa razão que os valores que regem as linhas de montagem profissionais de informação têm de ser diferentes daqueles aplicados na fabricação de biscoitos.
A crise da imprensa começa em função da mudança no sentido da orientação dos objetivos das empresas jornalísticas de ferramentas institucionais indutoras de reformas dentro do sistema democrático para meros instrumentos de facilitação de negócios e acumulação de lucros para indivíduos ou grupos de acionistas, muito antes que a internet viesse a abalar essa indústria pelos efeitos que provocou no modelo de negócio baseado na venda de publicidade, que é onde ela se constitui numa ameaça séria para o jornalismo profissional hoje, e não pela competição entre a produção profissional e a amadora de informação como mais comumente se ouve por aí.
É claro que existe espaço para outras modalidades de exploração da informação com vistas à prestação de serviços, ao entretenimento e à satisfação de outras necessidades humanas mais específicas. Até a pornografia, com um pouco de ginástica dialética, pode ser acomodada numa ponta desse grande espectro de significados que a expressão “informação” cobre.
Quem trabalha para estes mercados certamente não está obrigado aos mesmos limites éticos de quem se propõe a operar jornalismo profissional na sua dimensão institucional. Mas também não pode reivindicar os dreitos e os privilégios que as democracias garantem a esse tipo de jornalismo não por acaso mas por necessidade.
O problema que, no Império Murdoch asumiu proporções extremas, mas que é comum a quase todas as empresas jornalísticas hoje em função da prevalência do pensamento empresarial sobre a função institucional nos centros de decisão, é tentar fazer as duas coisas ao mesmo tempo e, o que é pior, pondo uma a serviço da outra para garantir avanços nem sempre lícitos, com o recurso a expedientes considerados normais e desejaveis em outros negócios onde o objetivo único é a obtenção de lucro.
O escândalo Murdoch, em poucas palavras, não é outra coisa senão um processo de rejeição violenta que uma parte que se tornou grande demais dentro do organismo internacional da imprensa dos países livres para ser ignorada está sofrendo por ter passado, sem as necessárias adaptações e cuidados, pelo transplante seco de uma versão radical da ética empresarial para dentro da sua operação jornalística.
Espionar os segredos dos concorrentes, usar golpes baixos para roubar-lhes clientes, catar “inside information” pagando por ela a espiões, hackers e outros agentes das fronteiras da legalidade; cevar membros de governos para obter negócios e vantagens; o troca-troca entre os papeis de funcionário público e “consultor” privado; manter executivos e funcionários sob pressão violenta e permanente por “performance” fechando os olhos para os meios por eles utilizados desde que sejam obtidos os fins; compor-se com governos opressores, como o da China, contra os oprimidos, em nome da saúde econômica são, em resumo, práticas que os acionistas e seus representantes nas altas administrações da maioria das empresas remuneram regiamente, no Brasil e no resto do mundo hoje.
Qualquer candidato a um alto cargo executivo inclui provas dessas práticas orgulhosamente nos currículos que enviam aos head-hunters aos quais administradores sem familiaridade com as especificidades do mundo do jornalismo hoje frequentemente recorrem para buscar diretores de publicações.
Segundo revelação da Forbes, citada pelo New York Times, Paul Carlucci, o CEO da News América, a empresa de “soluções criativas de marketing” que Murdoch faz conviver com seus jornais e televisões nos Estados Unidos e que oferece aos seus clientes o desenho de campanhas inteiras com pacotes cruzados de publicidade on e offline, malas diretas, catálogos e anúncios em seus veículos, fazia a sua primeira apresentação às equipes de novos vendedores exibindo a cena de “Os Intocáveis” em que Robert DeNiro/Al Capone massacra com um taco de beisebol um dos capi que põe em duvida seus métodos, depois de convidá-los a criticá-lo. E acrescentava logo: “Se ha algum funcionário que se sente desconfortável com a filosofia da empresa – liberaizinhos que mijam na cama em particular – a hora de pular fora é agora”.
A News América usa todo tipo de expediente ilícito para ganhar terreno sobre seus competidores. Tantos que Murdoch houve por bem fazer acertos que já montam a US$ 655 milhões para evitar que as queixas deles chegassem aos tribunais e seus métodos de ação se tornassem conhecidos.
Pois este mesmo senhor Carlucci tornou-se o editor do New York Post em 2005 acumulando esse cargo com o de principal executivo da News America.
É um caso extremo, sem dúvida.
Mas o fato é que, descontadas as preferências gráficas de Carlucci, tenho ouvido dezenas de relatos semelhantes, feitos com orgulho ou admiração, descrevendo sessões de karma coletivo impostas por grandes corporações brasileiras de indiscutivel sucesso internacional que “fazem a cabeça” de seus funcionários obrigando-os, todas as manhãs, a “ordens unidas” onde todos juram morte aos concorrentes aos gritos.
Mais: tais métodos constam hoje de diversos compêndios de “melhores práticas de governança corporativa” como formas “inovadoras e criativas” de “focar” equipes e motivar trabalhadores para “o sucesso”.
Pois é nesse ambiente que se forma, hoje, a maioria dos que têm poder de decisão nas redações.
É claro que qualquer um pode ver a diferença entre os extremos. Mas dificilmente um executivo com reputação de eficiência em negócios alheios ao universo especialísssimo desse negócio com injunções institucionais e politicas que é a exploração do jornalismo que reivindica um papel nas democracias consegue discernir com facilidade onde estão as fronteiras que separam esses dois mundos.
São projetos de vida diferentes e mutuamente excludentes os dos que abraçam uma ou outra dessas linhas de ação. Os dois são necessarios para o bom equilibrio de uma sociedade, mas não são equivalentes. Na verdade, quanto melhor tiver sido o desempenho de cada um no seu universo específico mais distante ele estará do outro.
E, no entanto, não é de todo extraordinário, nos dias que correm, que gestores com formação exclusivamente empresarial procurem entre seus semelhantes as figuras que serão transplantadas para dentro de redações, subitamente transformados em publishers tendo passado por pouca ou nenhuma experiência anterior em jornalismo.
O resultado, com variações de ritimo e intensidade, tende sempre para aquilo que já se transformou num adjetivo no setor: a “murdochisação” do jornalismo que consiste no foco absoluto em resultados financeiros que, no primeiro momento, produz uma súbita melhora nos números operacionais da companhia, festejados por administradores e acionistas como prova do acerto na mudança de rumo determinada, seguida por um paulatino esmorecimento nos padrões éticos e na qualidade do jornalismo produzido, efeito que, em geral, só será mensurável pelos métodos comumente aceitos pelos conselhos de administração empresarial quando, como no caso dos jornais de Murdoch, já for tarde demais.
É reconfortante ter provas tão veementes quanto as que estão sendo colhidas neste episódio de que o publico recebe com escândalo a descrição pormenorizada das práticas murdochianas, geralmente aceitas e até festejadas em outras áreas de negócios, em empresas às quais confia a tarefa de fiscalizar o poder político.
Essa reação é um sinal indiscutível da vitalidade das democracias afetadas e da expressão da exigência da opinião publica de que esses universos sejam nitidamente separados e a violação dessa fronteira deixe de ser uma escolha pessoal do empresário envolvido e passe a ter consequências legais.
Talvez isso propicie um movimento de autocritica que leve os encarregados da governança das empresas jornalísticas pelo mundo afora a reconsiderar as especificidades dessa operação e do código de ética que deve regê-la.
Ainda que seja apenas por pragmatismo, é preciso que os gestores se lembrem que o que a imprensa que reivindica um papel institucional vende e o publico que faz questão de participar do jogo democrático compra é, fundamentalmente, a esperança de que exista vida fora dessa corrida de ratos que beneficia tão poucos, da qual toda a multidão dos que são obrigados a participar dela para satisfazer apetites alheios anseia por se livrar.
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