Lulismo x petismo: a luta do século

27 de fevereiro de 2010 § 7 Comentários

A mudança radical da clientela eleitoral de Lula a partir da eleição de 2006, conforme mostrou André Singer no artigo “Raízes Sociais e Ideológicas do Lulismo” (http://novosestudos.uol.com.br/acervo/acervo_artigo.asp?idMateria=1356), suscita especulações interessantes.

O artigo é um estudo meticuloso do comportamento do eleitorado nas eleições de 2002 e de 2006 onde se descreve a forma pela qual Lula, afinal, conquista os votos do que o autor chama o “sub-proletariado” brasileiro, com renda entre zero e três salários mínimos, que votava sistematicamente na direita e, nas três eleições anteriores a 2002, tinha sido responsável pelas derrotas do PT. E mostra, tambem, que o partido não acompanhou Lula nessa mudança; continuou preso ao seu eleitorado tradicional, insufciente para levá-lo à Presidência da Republica, composto de funcionários públicos, estudantes e uma parcela da classe média concentrada no Sul e no Sudeste cujos votos sempre se dividiram mais ou menos por igual (cerca de 30% para cada um) entre o PT, o centro e a direita.

Há um indisfarçável travo de desilusão pela forma “desideologizada” pela qual, na descrição de Singer, se dá, ao cabo de 30 anos, o fim da história de irreconciliável desamor entre o PT e a classe em nome de cujos interesses o partido afirmava falar mas que se comportava como a grande força reacionária da Nação, barrando a ascensão ao poder do partido que identificava com “a bagunça”.

O estudo recorda, com farta comprovação numérica, que foram dois os pilares sobre os quais o pragmático Lula, para horror dos quadros mais sofisticados e ideológicos do partido dos quais Singer, ex-porta-voz do atual presidente da Republica é um representante, construiu, afinal, a ponte que o reconciliou com o “povão”. O primeiro, plantado em 2002, foi a negação de todas as veleidades revolucionárias e mesmo reformistas do PT na Carta ao Povo Brasileiro, um compromisso com a continuidade da política econômica de FHC e com a estabilidade do regime. O segundo, ensejado pelo primeiro, foi a maior operação de compra de votos jamais perpetrada na história deste país, na preparação da reeleição em 2006.

Fosse qualquer outro, sem as credenciais ideológicas do autor, que demostrasse com a crueza com que ele demonstrou a exata correspondência aritimética entre o aumento dos gastos e do alcance do Bolsa Família e os votos de quem passava a receber o benefício em Lula , e o estudo seria desqualificado pelo PT como uma denuncia de intenções golpistas.

A citação textual de análise feita por Lula em pessoa, nos bastidores do partido, depois da derrota de 1989, aliás, como que estabelece o dolo no plano de vôo do “lulismo”, daí por diante: “A verdade nua e crua é que quem nos derrotou, além dos meios de comunicação, foram os setores menos esclarecidos e mais desfavorecidos da sociedade. Tem uma parcela da sociedade que é ideologicamente contra nós: não adianta tentar convencer um empresário que é contra o Lula.  Nós temos que ir para a periferia, onde estão milhões de pessoas que se deixam seduzir pela promessa fácil de casa e comida”.

Lula teve de esperar até 2002 para estar em posição de se lançar à sua campanha de arregimentação desses estomagos vazios. Mas deu certo.

(…) No princípio (houve) apenas unificação de programas de transferência de renda herdados da administração Fernando Henrique (…) Em 2004, o Programa Bolsa Família (PBF) recebeu verba 64% maior e, em 2005, ano do “mensalão”, teve um aumento de outros 26%, mais do que duplicando o número de famílias atendidas, de 3,6 milhões para 8,7 milhões, em dois anos. Entre 2003 e 2006, o Bolsa Família viu o seu orçamento multiplicado por treze, pulando de 570 milhões de reais para 7,5 bilhões de reais, atendendo a cerca de 11,4 milhões de famílias perto da eleição”.

O resultado nas urnas foi exatamente proporcional:

Lula teve, no primeiro turno cerca de 60% de votos no Norte e Nordeste e apenas 33% no Sul e Sudeste (praticamente o inverso das proporções por região que teve nas eleições anteriores), sendo que o investimento do PBF na primeira região foi três vezes maior do que na segunda (…) Dos que votaram em Lula pela primeira vez em 2006, a maioria eram mulheres de renda baixa , o público alvo por excelência do Bolsa Família, pois em geral são as mães que recebem o benefício (…) A intenção de voto em Lula pulava de 39% na média para 62% quando o entrevistado participava de algum programa federal”.

“(…) O PT não acompanhou Lula em sua troca de base. Lula teria deixado um eleitorado tipicamente urbano e escolarizado por um francamente popular, mas o mesmo não teria ocorrido com o PT (…) Lula foi mais sufragado quanto menor o IDH do Estado, mas a votação da bancada federal do PT manteve-se associada aos de maior IDH (…) Lula teve particular sucesso no Nordeste e no Norte ao passo que a votação do PT continuou relevante no Sudeste e no Sul”.

O sub-produto dessa operação de compra de votos transformou-se no que Singer chama, um tanto doloridamente, “o pulo do gato” de Lula: “sobre o pano de fundo da ortodoxia econômica construir uma substantiva política de promoção do mercado interno”, o que, independentemente de qualquer especulação sobre as intenções por trás do fato ou da sustentabilidade do efeito, que são temas para outros artigos, inegavelmente aconteceu.

O que nos interessa, para o momento, é esse descolamento entre Lula e o PT e o ingresso na zona de influência sobre as decisões políticas de uma massa de brasileiros (Singer estipula esse “sub-proletariado” em 48% da População Economicamente Ativa e 63% do proletariado) que nunca teve senão as migalhas da partilha das benesses distribuídas pelo Poder, apesar de ser bajulada nos discursos de todos que correm atrás dele.

O momento, agora, é de reeleger o PT e consolidar essa conquista. Só começaremos, portanto, a assistir o desenlace dessa trama a partir de 2011 quando o realismo, por bem ou por mal, vai voltar a se impor à política econômica. Mas a carga adicional de privilégios distribuidos – agora para a massa dos mais necessitados, é verdade – é mais pesada do que o país poderá sustentar. E os sinais dessa realidade já estão todos aí. Os jornais de hoje registram a marca de 1,18% de crescimento no IGP-M de fevereiro. A inflação começa a arreganhar os dentes. E o presidente do BC, Henrique Meirelles já sente a necessidade de vir aos jornais para bradar que “enganam-se aqueles que esperam mudanças na conduta do BC em função do calendário cívico”. Como ninguém aqui fora está pedindo essas mudanças, fica claro que seu recado responde a pressões sentidas pelo lado de dentro…

A novidade importante é que são mutuamente excludentes os interesses da velha clientela eleitoral do PT, cevada nos privilégios de que só o funcionalismo publico e os outros empregados do Estado desfrutam e da qual os trabalhadores organizados mordem um pedacinho, e a nova força eleitoral do “lulismo”, a massa dos sem proteção e sem voz política que agora recebe os bilhões do Bolsa Família.

Como o Brasil já sabe de velho, o cobertor é curto. Quanto mais estável se torna a vida dos parasitas do Estado com a acumulação de novos privilégios, mais instável fica a de todos os outros brasileiros que pagam por eles e, muito especialmente, a dos brasileiros do ultimo degrau da escala social, os primeiros que perdem o emprego do qual depende a sobrevivência de suas famílias. Por isso eles tinham tanto medo da “bagunça” petista. A novidade é que agora essa massa dos que antes apenas pagavam, anonimamente, a conta dos privilégios dos eleitores do PT tambem conquistou o seu. E está perfeitamente claro, como Singer demonstra, que é no Bolsa Família que está a chave que dá (ou nega) a Lula o acesso à Presidência da Republica.

Em outras palavras, mudou o caminho para O Poder. Agora ele passa necessariamente pelos novos eleitores de Lula. Essa massa de brasileiros, que antes ficava apenas e tão somente com o discurso dos políticos, passará, agora, a ser cuidadosamente considerada nos momentos das grandes decisões políticas que, como se sabe, dizem sempre respeito ao modo de dividir a conta dos presentes que o Estado distribui.

Acontece que essa conta aumentou demais, a inflação acordou e é preciso agir. Mas a escolha é a de sempre. Para controlar a inflação gerada pela gastança estatal só há dois instrumentos: aumentar os juros e os impostos (o que custa empregos e agora, também, aumento das dívidas contraídas pela nova clientela eleitoral de Lula engordada na recente festa do financiamento ao consumo popular) ou cortar os gastos públicos (o que significa reduzir os privilégios da velha clientela do PT).

Alguem vai ter que ceder…

As insistentes manifestações da esquerda petista no Programa Nacional de Direitos Humanos e no programa de governo de Dilma, em que se reivindica o reforço do papel dos sindicatos, das “organizações da sociedade civil” e das correntes ideológicas que sempre pautaram as ações dos governos petistas, podem bem ser um sinal de que o velho PT dos donos do Estado está sentindo a perda de influência que decorre da competição dessa nova classe que obedece exclusivamente ao comando de Lula, tornando-o mais independente dos grupos de pressão que ditam os rumos no partido e controlam a máquina do Estado.

A boca pequena, aliás, conforme registra o artigo de Singer,  já ha no partido e nas correntes de esquerda que dele se afastaram quem identifique nessa relação direta de Lula com o “sub-proletariado”, depois de 2006, o modelo do “condottiere” fascista, que levaria a “um esvaziamento da dimensão ideológica do confronto de classes” e a uma versão cabocla do peronismo (possivelmente com a nossa “Evi-sabelita”…).

Prosopopéia àparte, o certo é que os numeros indicam que não será possível manter eternamente o aparato assistencialista que sustenta algo em torno de 50 milhõe de brasileiros e tambem todos os privilégios do funcionalismo numa máquina publica enormemente inchada. E isto tende a por o lulismo e o petismo em rota de colisão.

Cabe à oposição desenvolver um discurso didático para mostrar aos novos eleitores de Lula como funciona a relação de exclusão entre os seus intereses e os dos velhos eleitores do PT.

Marcado:, , ,

§ 7 Respostas para Lulismo x petismo: a luta do século

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

O que é isso?

Você está lendo no momento Lulismo x petismo: a luta do século no VESPEIRO.

Meta