Brasil unido jamais seria vencido

29 de outubro de 2019 § 7 Comentários

Artigo para O Estado de S. Paulo de 29/10/2019

Na crise, de volta ao básico. E a do Brasil é completa.

Para abrir as portas do 21 seria preciso decorar o resumo do século 20: “Carisma é bom pra cinema que é a ilusão no estado da arte. Na política é um desastre, qualquer que seja a cor da camisa”.

Mas é o caso de refazer a estrada toda. De volta ao 16 e 17 onde tudo começa, então: “Pensamentos, palavras ou obras”? A história das conversas do Moro com o Deltan é isso. O “jornalismo de acesso”, que vive de grampo, estimula esse desvio: “pensou, disse ou fez”? Parece pouco mas esse é nada menos que o divisor de águas entre catolicismo e protestantismo. Aceitar que pensamentos e palavras já constituem pecado passível de condenar ao inferno ou levar ao paraíso deságua obrigatoriamente, ou na legitimação da tortura (pensou ou não pensou?), ou na legitimação da venda de indulgências (bastam umas tantas “rezas” prescritas pelos donos da igreja para “desfazer” o que foi feito, inclusive o que nunca terá remédio).

As duas coisas excluem a mera possibilidade da democracia.

A partir do 18 colhem-se os frutos: Se somente a obra, ou seja, o que o sujeito de fato fez e pode ser palpado e medido (como a roubalheira do Lula e do PT, por exemplo) pode condenar uma alma ao inferno ou abrir-lhe as portas do paraíso, o pensamento e as palavras deixam de ser assuntos em que o Estado está autorizado a se meter, a felicidade passa a ser a que cada um resolver buscar para si e a inovação e o progresso da ciência vêm como bônus dessa forma essencial de liberdade.

No 19 e no 20 começa a entortar: Gente é o mais plasmável dos bichos. Acima de todas as forças ele é regido pela da sobrevivência. Não é o bem ou o o mal, que “podem ser os de cada um”, é a definição do que rende punição ou recompensa que determina para qual direção ele se vai voltar.

É por essa altura que entramos na tapeação do “direita” versus “esquerda”, o embaralhador de línguas que até hoje nos mantém atolados nessa babel política. Faz tudo parecer o que não é. A desorganização da “não esquerda” (porque “direitista” mesmo dá pra contar nos dedos de uma mão) é um clássico universal. A principal diferença entre ela e a “pseudo- esquerda” (porque “esquerdista” de utopia mesmo, não de teta, dá pra contar nos dedos de uma mão) é a extensão da ausência de limites. A “não esquerda” tem patrão. Tem de bater ponto e pagar as próprias contas. Quem trabalha full time pra político é quem é sustentado pelo Estado. É quem tem estabilidade no emprego outorgada por político.

Os Bolsonaro nunca foram gente aqui do mundo real perseguindo um salariozinho suado, tendo de mostrar resultado todo santo dia pra não ir parar na fila dos desestabilizados pela estabilidade deles. Nem o Brasil correu atrás do Bolsonaro pai. Ele é que se jogou para dentro da carência crônica do brasileiro que passou os últimos 34 anos na condição de criança abandonada eleitoral ao longo dos quais todos os bundões da “não esquerda” fingiam-se de esquerdistas porque era esse o “Abre-te Césamo” da caverna abarrotada de ouro do poder.

Nem mesmo os “bolsominions” são ideológicos. Esses que ficam o dia inteiro no Twitter destilando fel, assassinando personagens, são cópias escarradas dos seus similares do PT. Querem a mesma coisa que eles queriam. Nem perder o comando da caverna do Ali Babá, nem sair do “barato” corrosivo da adrenalina do poder. E a maioria daqueles velhinhos do “Repassem sem dó” que eles arrastam é só gente boa com medo da Venezuela tratando de evitar mais meio século de deglutição de sapos barbudos.

Mas no mundo real foi o “cometa” envolvendo Flavio quem jogou Jair e o Coaf no colo de José Antonio que, na cauda dele, liberou geral. É Jair que joga pedaços da previdenciária, da administrativa e da anti-crime no colo dos contra. Nem um único dos tiros de que todo o seu entorno está varejado veio de fora. Fazia meses que Paulo Guedes, o solitário agente do País Real neste governo, não dava manchete antes do último ato da previdenciária que rolou enquanto a Primeira Família entretinha-se na briga de foice no escuro pelo comando do dinheiro do PSL.

Pelas bordas ficam os que não têm peito de sujar diretamente as mãos mas aceitam sem denunciar essa regra do jogo e invocam as “instituições acima de tudo” para impedir que ela mude. Fingir que as instituições brasileiras não foram desenhadas para criar, servir e manter impune uma casta corrupta e que não é isso que reduziu o Brasil à miséria é só o modo “culto” de lutar pela permanência dessa mixórdia, seja no STF, seja nas redações. Nada a ver com “estado de direito”. Até queima a língua dizer isso. Não dá pra alegar inocência.

Todos eles somados não enchem a Praça dos Três Poderes mas segundo a constituição deles, por eles e para eles que o povo brasileiro nunca foi chamado a ratificar, só quem eles deixarem pode disputar o poder e impor suas decisões a nós, que devemos permanecer desarmados e proibidos por lei de reagir.

Esse é que é o divisor de águas real. A parada no Brasil não é “esquerda” x “direita” é nobreza x plebeu, privilegiatura x meritocracia, quem tem de ganhar a vida x quem está com a vida ganha e, na franja e não mais que na franja, ladrões x roubados. Desacelerar o estupro não muda a natureza do crime. Nem existe meia escravidão. Só o realinhamento das forças sociais segundo a realidade brasileira e não segundo as lendas e narrativas da falecida Europa do século 20 possibilitará a verdadeira abolição. O “golpe de neutrons” que mata qualquer avanço da democracia sem lhe destruir a falsa casca, foi plantado lá atras no STF. Enquanto os escravos permanecerem divididos e engalfinhados tudo continuará podendo girar tranquilamente em torno do ralo da constituição deles, por eles e para eles exigida nos tribunais deles, por eles e para eles que todos trabalham para manter intactos por cima dos “lados” pretensamente abraçados, o que explica aquela bizarra rasgação de seda que não cessa nem quando uns estão demonstrando cientificamente os canalhas que os outros são.

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§ 7 Respostas para Brasil unido jamais seria vencido

  • #FATORSYN! disse:

    Pensar, falar, fazer.
    Perfeita leitura.
    Fica a certeza de que, estamos numa enrascada, pela nossa ignorância ou a falta dela. E, precisamos nos libertar e exigir eliminar todas as benesses e direitos dos que (não) nos representam.

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  • JC VARIG disse:

    Nunca usei o “repasse sem dó”….mas repasso seus artigos. Mas por mais que sinta o país “oficial” oprimindo o país real, penso que este último, na sua indiferença suicida, ainda quer sofrer um pouco mais..Não sei o problema é comigo, mas nenhuma conversa dois degraus acima, dentro da coerência segue adiante…

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  • Varlice1 disse:

    Fernão, você foi direto ao ponto!
    Ao receber textos de amigos com o tal do “repasse sem dó” (e geralmente são longos e cheios ou de baboseiras ou de meias verdades), sem dó mando pro lixo.

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  • Herbert Sílvio Augusto Pinho Halbsgut disse:

    Fernão,com este excelente texto publicado hoje no jornal O Estado de São Paulo (Espaço Aberto,A2) não há motivo para aqueles que dizem não participar da política – a real – porque não tem uma visão do conjunto da coisa, cujo nome hoje é crise a vista, que na verdade, como você bem o demonstrou, nos atormenta há séculos, mudando somente na cor, mas permanecendo, como todos percebemos, sempre o mesmo bicho por baixo, o Estado camaleão. O curioso hoje em dia é que quanto mais seda os supremos ministros rasgam, mais alto é o som farfalhado, isto é, quanto menos eles demonstram para o que deveriam estar existindo, mais a República vai definhando a passos largos. Parece-me que o realinhamento ao qual você se refere, inusitadamente está ressurgindo em meio ao povo de modo um tanto despreparado, mas que sente na pele a necessidade de o Brasil real retomar o seu lugar de protagonista para ter a estabilidade que lhe é de direito. O melhor posicionamento para o Povo é discernir o que é oito e o que oitenta, saber se desempenha o papel: de pseudo cidadão submisso ou protagonista privilegiado encabrestado. Aqui entre a divulgação ampla sobre o voto distrital puro com “recall” – retomada de poder daqueles que mostrarem-se incompetentes, a cada dois anos(?). E isso é muito fácil ao verificar que não tem acesso a quase nada do que o Estado deveria prover, como o faz em relação a privilegiatura, o que é exaustivamente demonstrado nos noticiários da imprensa livre. Algo de novo precisa mudar essa Babel política, a qual você definiu no seu texto, que satisfaz os camaleões que são eternamente indultados pelo sistema para continuar a fazer o mesmo de sempre: roubar-nos descaradamente. Como já escrevi tantas vezes: Judiciário célere e justo, Nação livre. Estamos órfãos como Nação sob essa trindade que interpreta e usa a Constituição em seu único benefício. Como você bem definiu: “a Constituição deles, por eles e para eles “…deixando-nos ” desarmados e proibidos por lei de reagir”. É, por tudo o que você demonstrou, muito fácil de se perceber porque a Imprensa é tão odiada pelos donos das sinecuras corruptas fractalmente interligadas, mundo afora.

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  • marina alves dos santos disse:

    Fico menos desanimada quando vejo Paulo Guedes afirmar sobre sermos milhões de trouxas e anima-me também o posicionamento do Ministro da Educação, na lata, calar demagogos defensores dos pobres.Pobres são sempre usados por essa corja que quer sempre o seu pirão primeiro. Tenho fé na mudança. Ainda que tardia.

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  • O universo evoluiu de oceano caótico de energias quânticas para planeta cheio de vida como o nosso, sem depender de parecer humano. Quando emergiu o mundo subjetivo e a organização social, a natureza concedeu-nos livre arbítrio e nos encarregou de promover a evolução. Isso indica que ela acreditou em nós. Deve estar certa. Eu ainda não encontrei um erro seu.

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  • Ethan Edwards disse:

    Você está certíssimo: a parada, no Brasil, é entre os que têm que ganhar a vida e os que estão com a vida ganha (nesta e nas duas próximas encarnações). E o caminho, no meu entendimento, passa por criar do lado “de cá”, no universo dos cidadãos comuns, um mundo tão ou mais poderoso quanto o do lado “de lá”, o da privilegiatura. O que se deve esperar e exigir do governo é que abra o país a capitais de todos os tipos, para todos os fins, e que tire das mãos do Estado toda e qualquer atividade econômica, ou seja, cumpra suas promessas de privatizar as centenas de empresas estatais hoje existentes. Esta é uma situação típica em que as esperanças de transformação política repousam na transformação da economia. Para que as exigências de aperfeiçoamento da nossa precária democracia frutifiquem é necessário que a maioria da população esteja envolvida numa vigorosa atividade econômica, cada vez menos dependente da “ajuda” e da “proteção” do governo. Pois foi em busca dessa “ajuda” e dessa “proteção” que os brasileiros pobres (e os remediados, e os ricos…) aprenderam, desde cedo, geração após geração, a estabelecer laços espúrios com os políticos e com a política em geral; a abrir mão da própria liberdade para receber em troca um simulacro de segurança num mundo que a ação do próprio Estado torna ameaçador e hostil. A democracia só se estabelece entre cidadãos livres.

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