Por uma “democracia representativa”

8 de maio de 2018 § 11 Comentários

Artigo para O Estado de S. Paulo de 8/5/2018

É pura ilusão acreditar que mais uma eleição dentro da mesma regra “proporcional” das anteriores – agravada agora pelo “financiamento público” que abafa a voz de quem entra limpo na disputa enquanto dá um megafone ao continuismo – vá mudar qualquer coisa de significativo na tragédia brasileira. É de uma ingenuidade de dar pena afirmar que “eleger gente honesta” é o quanto basta, como se jogar honestamente se tivesse tornado milagrosamente possivel num jogo que começa viciado pela obrigação de todo estreante de compor-se com os donos das capitanias partidárias hereditárias e seus latifundios no “horário gratuito” e prossegue com os políticos, tornados intocáveis assim que eleitos pelos 30 co-proprietários do “fundo partidário” dimensionado e redimensionado “a gosto”, negociando cada voto nos legislativos.

Também é sonho de uma noite de verão imaginar que a doença brasileira possa ser curada só com ações policiais e judiciais encomendadas ou desencomendadas a critério de agentes públicos refestelados em privilégios e fora do alcance dos eleitores. Quanto do “vaza-não vaza” que atinge exclusivamente o legislativo e o executivo responde a uma disposição genuína de fazer justiça? Quanto ao propósito de deter reformas contra privilégios? Quanto às disputas de poder de inspiração ideológica ou patrimonialista?

Nem pouco, nem muito mais do mesmo mudará coisa nenhuma. A primeira providência comezinha para tirarmos o pé desse passado grudento é liberar a portaria da política. Despartidarizar as eleições municipais e condicionar as estaduais para cima a eleições primárias diretas. Nos municipios – todos únicos e radicalmente diferentes entre si – deve concorrer quem quiser, independentemetente de partidos. E nas eleições estaduais e federais quem quer que chegue às portas do partido apoiado por uma lista de assinaturas não muito extensa terá obrigatoriamente de ser incluido na disputa pelo direito de candidatar-se que os associados da agremiação decidirão no voto direto. É o quanto basta para varrer de cena os velhos caciques sem a eliminação dos quais o ambiente político não se higieniza.

No mais, o nome do jogo é “democracia representativa”. A implantação de um sistema que permita saber exatamente quem representa quais eleitores em cada instância de governo é, portanto, o que poderá nos credenciar a entrar nele. Isto se consegue com eleições distritais puras. O eleitorado tem de ser dividido em distritos mais ou menos equivalentes em numero de habitantes desenhados sobre o mapa real da localização do seu domicílio, do menor (o bairro ou conjunto de bairros em eleições municipais) para o maior (um conjunto de distritos menores em eleições mais amplas). O tamanho dos distritos é dado pela divisão do numero de habitantes pelo numero de representantes que se deseja ter na instância em disputa e só pode ser alterado em função do censo populacional. O Brasil de 204 milhões de habitantes, mantido o numero de deputados federais de hoje, seria dividido em 513 distritos de aproximadamente 400 mil habitantes. Como cada distrito só pode eleger um representante e cada candidato só pode concorrer por um distrito, alem de reduzir drasticamente o custo das campanhas, o sistema permite que cada deputado eleito saiba o nome e o endereço de todos os seus representados.

Mas eleição distrital não é uma solução em si mesmo. Ela apenas permite viabilizar o controle efetivo do processo político pelos eleitores com garantia de absoluta legitimidade daí por diante. Esclarecido quem representa quem, o passo seguinte é consagrar o direito à retomada dos mandatos traidos ou mal satisfeitos a qualquer momento (recall). Qualquer cidadão pode iniciar uma petição para desafiar o seu representante. Se conseguir uma porcentagem previamente definida de assinaturas será convocada uma nova eleição apenas no distrito envolvido para reconfirmar ou cassar seu representante e eleger um substituto.

O resto do ferramental inclui o direito ao referendo por iniciativa popular das leis passadas nos legislativos usando a mesma mecânica de legitimação do recall, o que torna efetivo, de trôco, o direito de oferecer leis de iniciativa popular que os brasileiros “já têm” (me engana que eu gosto), pois a ultima palavra sobre toda lei passa a ser daqueles a quem ela será imposta e não mais de legisladores livres para legislar em causa própria.

Isso de fato entrega o poder a quem a constituição define como a “unica fonte de legitimação do estado”, nós, o povo, também dito o eleitorado. Mas todo esse edifício só se mantem solidamente em pé com o complemento das periódicas “eleições de retenção” de juízes, o Brasil amargamente sabe porque. As comarcas sob a alçada de cada um devem ter correspondência com os distritos eleitorais e a cada eleição o nome de cada juiz de cada tribunal até a instância estadual mais alta, aparecerá na cédula dos eleitores sujeitos à sua jurisdição com a pergunta sobre se deve manter ou não seu cargo e suas prerrogativas por mais um período. Os que forem expelidos serão substituidos pelo sistema normal de nomeação de juizes, com o que cria-se um controle efetivo do Judiciário operando exclusivamente a porta de saída, sem interferir com a independência de quem permanecer dentro do sistema.

A eleição de outubro se vai desenhando como desolada e negativamente plebiscitária. A escolha restringe-se a votar simbólica e genericamente “contra a política” ou pela continuação dela por falta de melhor e medo do pior. Ninguém oferece plataforma nenhuma que se possa apoiar. E adotar um tom radical, mesmo que seja em torno de nada, é a única coisa que empurra candidatos para cima do brejo geral dos sub-10%. Se alguém abraçar radicalmente uma plataforma de reformas não apenas que faça sentido mas que possa exibir uma certificação histórica de eficiência letal contra a corrupção e a politicagem estará, portanto, seriamente arriscado de se tornar um candidato imbatível.

§ 11 Respostas para Por uma “democracia representativa”

  • marcos disse:

    Perfeito. E daí? MAM

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  • Fernão
    Somos um país estranho.
    Todos sabemos quais são os problemas que nos mantém no atoleiro, mas ninguém quer resolver. Talvez porque isto implique deslocar do poder forças parasitárias que lucram muito com o atraso. E o país se acostumou a conviver com o atraso.

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    • flm disse:

      a teta foi socializada, jose.
      ate o nível que consegue articular um discurso, é claro.
      a massa dos sem voz, forçadamente analfabetizada pela tropa de choque do professorado ideológico e cia. ltda. é a que paga, no meio do tiroteio…

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    • Marcos Andrade Moraes disse:

      saber quais são os problemas não implica saber as causas, prioriza-las e muito menos resolve-las. MAM

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      • flm disse:

        pois é…

        mas localizar a causa primeira é = a estabelecer prioridades.

        a causa primeira é a que venho apontando: está invertida a atribuição do poder de DEMITIR dentro da estrutura do estado brasileiro e na relação representantes x representados dessa nossa “democracia”.

        esse é um ponto que é fácil de explicar pra qualquer um. basta perguntar:
        “Porque é que você trabalha (com todo sacrifício que isso implica), e bem?”
        “Porque se não trabalhar, e bem, serei demitido e não terei com que comer”.

        MANDA QUEM DEMITE.
        é simples. todo mundo entende…

        nos Estados Unidos, onde essas reformas foram IMPOSTAS aos políticos, passo a passo, cidade por cidade, estado por estado, para reverter uma situação em tudo semelhante à nossa de hoje, começando ha +ou- 100 anos, a ordem dos fatores, com poucas variações foi, primeiro o recall e o referendo, por cima de um direito até então mambembe como o nosso às leis de iniciativa popular. com essas armas nas mãos, foi sendo incluído o resto pelas pessoas, agora sim com infinitas variações. na ordem das prioridades e na velocidade adequada a cada comunidade. primárias, leis de zoneamento, retenção de juízes, direitos do trabalho, obrigações dos funcionários, legislação penal, eleição direta de funcionários, leis sobre uso de drogas, legislação de família, etc., etc., etc.

        nunca mais parou…

        na eleição de 2016, 162 questões de alcance estadual oriundas de 35 estados foram incluídas nas cédulas para decisão dos eleitores. 76 eram de iniciativa popular – de recall ou propositivas – qualificadas por coletas de assinaturas. as demais vieram dos legislativos já bem domesticados, que nem perdem mais tempo em votar coisa importante antes de perguntar pro povo o que ele acha. vão com suas propostas direto para as cédulas.

        nas eleições municipais de 2018 milhares de outras decisões locais foram votadas pelo país afora. e sempre ha, ainda, dezenas de “special elections” no meio do caminho para “recall”, para eleição de substitutos de representantes mortos, demitidos ou demissionários por qualquer razão (não existe vice senão do presidente)…

        e, o melhor de tudo pro meu gosto, “special elections” pra decidir sobre emissão de títulos de divida locais (de escolas, de municipalidades, de estados) para obras importantes como reformas e construções de prédios, de estradas, de hospitais públicos, de reforço da segurança, para contratação de pessoal ou o que seja de gasto adicional permanente. esses títulos têm, obrigatoriamente, por lei nacional, de ser precedidos de um projeto definindo quanto vai custar a coisa, como vai ser paga, em quanto tempo e por quem. tem de ser definido qual imposto será aumentado por quanto tempo para pagar a obra. o iptu da área quando o investimento feito foi numa escola publica de um bairro determinado, por exemplo. ou um imposto local sobre combustíveis quando é de reformas de sistemas viários que se trata. ou de pedágios (de que valor e a ser cobrado por quanto tempo) quando é uma estrada. um aumento temporário do imposto local sobre consumo se é algo municipal ou estadual…

        o projeto vai então a voto – “sim” ou “não” – da comunidade afetada.

        democracia é assim…

        já viu que espaço sobra pra corrupção?

        é por isso que eles estão indo pra marte e nós não conseguimos nem fazer a soja que o Brasil que trabalha produz chegar ao porto…

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  • luiz cadioli disse:

    Parabéns pelo texto Fernão Lara Mesquita. Continue pregando no deserto; nós, os cidadãos que acreditamos que essa joça possa melhorar, precisamos de textos assim.
    O debate político, para variar, tem sido pobre. Todo candidato a presidente deveria ser questionado se é favorável ao voto distrital. Os analistas políticos exploram pouco essa questão.

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  • Olavo Leal disse:

    Para Out/2018, sugiro perguntar especificamente a cada candidato:
    – você é a favor do voto distrital puro com recall?
    – você conhece o federalismo?
    A qualquer vacilo, “não sei bem o que é isso” ou, pior, “não”, não lhe dê seu voto. Melhor anulá-lo.
    É o que farei.

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  • reycintra disse:

    O Brasil chegou no ponto em que aspirina não trata cancer. Há de haver uma ruptura no modelo politico atual. A população é a mesma, os políticos são os mesmos: nada de bom sai daí. E a próxima nomenclatura será ainda pior que a atual. Alguma dúvida? Neste momento a proposta a se considerar a mais viável,não é a melhor mas a menos pior. E definitivamente à direita. É tempo de defenestrar a esquerda e tentar algo novo.

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  • Sergio Moura disse:

    o sistema político eleitoral brasileiro só serve aos mandatários do poder, aos que têm nas maõs o destino dos impostos recolhidos pelos contribuintes, cujo dinheiro é usado primoridialmente para satistazer as necessidades do político em angariar votos para a próxima eleição ou para estufar seus bolsos, Se essas regras não forem mudadas, de nada adiantará a eleição de 2018. Ficaremos mais indignados ainda em 2019 porque a frustração aumentará. E a indignação leva à raiva, que leva ao descontrole emocional, nos encaminha para decisões impensadas e piores.

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  • Ronaldo Sheldon disse:

    Eis o mistério da fé.

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  • vitiellorj disse:

    É preciso continuar os esforços para a mudança do processo eleitoral através das diversas mídias. Pouco se ouve e se lê sobre o voto distrital na atual eleição, por parte dos políticos evidentemente e mesmo através da imprensa escrita e falada, uma pena. Como gostaria que este pensamento constantemente bem abordados pelo Fernão estivessem no “sangue” dos eleitores e na plataforma dos candidatos. Uma boa democracia requer uma maturidade e cultura política ainda a ser adquirida através de uma melhor cultura educacional.

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