Robin Hood revisitado
25 de junho de 2019 § 12 Comentários
Artigo para O Estado de S. Paulo de 25 de junho de 2019
Robin Hood jamais roubou dos ricos para dar aos pobres. Essa é uma releitura “marxistizada” do herói arquetípico inglês. Robin Hood roubava do Estado para devolver aos pobres o que o Estado lhes tinha roubado. João Sem Terra, o usurpador do trono, e seu odioso coletor de impostos, o xerife de Nottingham, é que eram os seus alvos recorrentes.
Não é um pormenor sem importância. É precisamente aí que os caminhos da humanidade se dividem para nunca mais se reencontrar.
Não é só por questão de gosto que na Inglaterra os castelos (e as igrejas) são de pedra e madeira e os franceses, russos, espanhóis ou portuguêses (assim como suas igrejas) são de ouro. Desde a Carta Magna de 1215, o rei inglês vem sendo mantido sempre e cada vez mais “pobre” e mais dependente do Parlamento para manter seus luxos e sustentar suas guerras. Cada novo pedido de recursos foi negociado em troca de uma garantia a mais de proteção da propriedade de quem só tinha de seu a força de trabalho contra o poder do rei de tomar para si o produto dele até que, a partir de 1680, o Parlamento e o povo já tivessem alcançado a supremacia que têm hoje.
Ao contrário das culturas latinas que da submissão à Igreja saltaram diretamente para a submissão ao absolutismo monárquico onde a propriedade é a peça chave de um sistema totalitário de opressão, na cultura saxônica o direito de propriedade decorre da luta quase milenar entre os representantes dos despossuidos e um déspota e transforma-se na principal ferramenta de libertação do indivíduo pelo trabalho. Vem com ela a responsabilidade individual pois, onde a propriedade não é um privilégio dos protegidos do rei, quem a detém é compelido pelo mercado a volta-la para a melhor satisfação do consumidor, sob pena de perde-la se for lento ou inepto no processo.
Foi por nunca ter tido vitórias contra o poder estabelecido “por deus” ou pelo sangue que ele tivesse “tornado azul” que a desesperança acabou empurrando a latinidade para o pensamento mágico, moeda da qual são as duas faces o conformismo que se abriga na religião ou as revoluções para “criar uma nova humanidade” depois de afogar a velha em sangue, único meio de atingir “o impossível” com o concurso de um “herói” que leve o povo a superar sua impotência. Inversamente, foi por te-las obtido sempre passo a passo e usando instrumentos prosaicos de tão objetivos, que o pensamento saxônico entronizou o “senso comum” como baliza suficiente para referir tudo na vida.
A sorte também é um fator decisivo. A história da Inglaterra teria sido outra não fosse a libido exacerbada de Henrique VIII e a inflexibilidade da Igreja com o pouco caso dele para com “o sacramento” do casamento. Ao proibir a religião católica e liberar todas as outras, Henrique VIII atraiu todos os perseguidos da Europa (sempre a gente mais interessante) e, inadvertidamente, proporcionou pela primeira vez na História a experiência de conviver pacíficamente com a diferença a uma sociedade humana o que, a par de abrir caminho para a ciência moderna tirando o dogma da frente da experimentação, levou os pensadores ingleses a elevar a tolerância a fundamento básico e inegociável das relações humanas, do que acabou por resultar mais uma caminhada da democracia sobre a Terra quando encontraram um território virgem de privilégios milenares para resistir-lhe.
O “povo sem rei” da América do Norte pós 1776 veio juntar-se ao suíço que, graças à geografia também nunca tivera um, como os únicos, desde sempre, a desfrutar essa liberdade. Vivendo nas temíveis montanhas entre dois pedaços da Europa cujas passagens só eles conheciam, que aos reis de ambos os lados interessava atravessar a toda hora, os suíços foram deixados em paz e passaram ao largo do absolutismo. Inventaram seu sistema federalista a partir de 1291 e, como toda comunidade de iguais, desaguaram naturalmente na democracia para resolver – no voto – os problemas cotidianos da comunidade. Vieram bem até as invasões napoleônicas, quando ficaram sob o jugo da França. Foram então beber no modelo americano para restabelecer sua democracia. Desde aí esses dois povos – o suiço e o norte-americano – vêm “trocando figurinhas” para aperfeiçoar suas democracias nos momentos de crise. É na Suíça que, graças à ação concertada de patriotas e de jornalistas que foram em caravana à Europa para entender o sistema de democracia direta praticado por eles e vende-lo em seu país, que os Estados Unidos vão buscar a chave que os levariam a transformarem-se na maior potência do planeta. Tão corrompida e desmoralizada junto à opinião pública quanto está a brasileira hoje na virada do século 19 para o 20, a “velha política” americana sofreu um golpe fatal quando um atentado matou o presidente eleito William McKinley nos primeiros dias de seu mandato tirando Theodore Roosevelt do “exílio” da vice-presidência em que o tinha metido um golpe articulado pelas velhas raposas do Partido Republicano. Foi com ele que as ferramentas de democracia direta suíças puderam ser apresentadas aos Estados Unidos de cima de sua tribuna mais alta e ganhar o impulso que as fez prosperar por todo o século 20 e até hoje.
O Brasil tem estado dividido desde sempre entre a sua “americanidade”, vivida ao longo dos quatro séculos em que não fomos mais que vilas isoladas cujas camaras municipais eleitas tinham de prover todas as necessidades da comunidade, de que são filhas a Conjuração Mineira, as rebeliões federalistas pernambucanas, a Republica Sonhada do “Manifesto” de Itu e o curto interregno de Prudente de Morais e Rui Barbosa em que foi plantado o precário arcabouço juridico em que se agarra até hoje a livre iniciativa no Brasil, e a corrupção sistêmica dos últimos estertores do absolutismo decadente que invadiu o Rio de Janeiro em 1808, de que são filhos a Republica Real, golpeada ao nascer pelos ditadores positivistas, o getulismo que o entronizou no poder, o lulismo e a terra arrasada que aí está.
Distante quanto possa parecer hoje, o DNA brasileiro é democrático. Tem-nos faltado a ajuda decisiva da sorte.
Democracia à mão armada – 9
21 de agosto de 2013 § 31 Comentários
(9º de uma série sobre voto distrital com recall. O 8vo está neste link)
Desde ontem está vigorando no Rio de Janeiro a Operação Lixo Zero. Quem jogar lixo na rua pagará multa que pode variar de R$ 150 por uma “bituca” de cigarro até R$ 3 mil para quem criar áreas de despejo clandestinas. Quem não pagar terá seu nome inscrito na Serasa e perderá o acesso ao crédito.
Antes mesmo de a operação começar o lixo recolhido nas ruas da cidade já diminuiu mais de 1/3. É que 900 fiscais da Comlurb há dois meses vêm dando flagrantes nas pessoas, orientando-as sobre o que fazer com cada tipo de descarte e avisando que a partir de 20 de agosto as multas virão. Essa abordagem honesta certamente contribuiu para mobilizar a população. Mas o peso da multa e a antevisão da inexorabilidade com que será aplicada, subentendida nessa preparação, conquanto bem-educada, é que foi o argumento decisivo para fazer a coisa pegar.
A civilização não é muito mais que a presença da polícia. Falo em sentido figurado, mas nem tanto. Impor a lei é remédio que funciona para o Rio e para Nova York. Funciona para o Zé da Silva e para o Steve Jobs. Funcionaria também, portanto, até para os nossos políticos.
Ao contrário do que se costuma dizer por aí, esse tratamento dispensa uma cultura e um processo civilizatório prévios. É aplicar e manter a pressão que a coisa acontece. Se a lei for imposta com a inexorabilidade com que os radares impõem a velocidade máxima nas estradas, o resultado é imediato e infalível. Todo mundo passa a respeitar.
O inverso também é verdadeiro, independentemente de diferenças culturais e de suposto grau de civilização.
Steve Jobs era visto como uma espécie de novo Leonardo da Vinci. Ele reunia numa mesma embalagem o suprassumo da tecnologia e do design modernos e revolucionou nossa vida. No entanto, bastou que a internet proporcionasse a exportação do trabalho sem que as legislações nacionais fossem junto e lá se foi o nosso Da Vinci explorar, até o limite dos suicídios em massa, a miséria e a ausência de direitos dos filhos dos antigos “paraísos socialistas” e fabricar nossos lindos iPhones e iPads na China, pagando salários de fome e oferecendo condições de trabalho que nos EUA o levariam à cadeia.
A mesmíssima coisa aconteceu com os mais refinados designers europeus. Por mais “civilizados” e “politicamente corretos” que sejam em seus próprios países, assim que se certificaram de que podiam fazer isso impunemente, bateram-se todos para as Bangladesh da vida para produzir sua moda cool com mão de obra faminta naqueles tugúrios que a gente vê desabar sobre as pessoas na TV.
É isso que quero dizer quando afirmo que civilização é, essencialmente, a presença da polícia. E que, se instituirmos uma polícia para fiscalizar cada passo dos nossos políticos e eles tiverem a certeza de que cada vez que jogarem contra nós serão punidos, seu comportamento mudará da água para o vinho a partir do mesmo minuto em que tal certeza se instalar.
Essa polícia somos nós mesmos, os eleitores, e o que falta é apenas armar a nossa mão.
Quando Samuel Colt inventou seu famoso revólver de seis tiros num mundo em que mandava quem tinha a mão mais pesada, a propaganda para vendê-lo era assim: “Deus fez os homens diferentes, Sam Colt tornou-os iguais“. Pronto! O mundo não estava mais dividido entre grandalhões e fracotes. Com todos andando armados, era melhor que cada um respeitasse o outro.
O que arma a mão dos eleitores e faz os políticos passarem a respeitá-los é o instrumento simples do voto distrital com recall. Nele cada cidade, cada Estado ou o País inteiro, nas eleições para cargos federais, é dividido em distritos eleitorais. O distrito é definido, nas cidades, pela divisão do número de eleitores pelo número de vereadores, e pelo delineamento de alguma unidade geográfica – bairro, conjunto de bairros, zona da cidade – em que o número de eleitores se aproxime dessa fração ideal. Os distritos e zonas eleitorais, na verdade, já estão mais ou menos definidos no sistema de hoje. Só não se traduzem em poder algum para os eleitores.
No sistema distrital com recall cada candidato só poderá concorrer aos votos de um determinado distrito. O primeiro turno extrai os dois mais votados. O segundo fecha a disputa. O mesmo raciocínio se aplica aos Estados, para as eleições estaduais, e ao País inteiro nas federais.
Com isso, fica-se sabendo exatamente quem representa quem em cada Câmara Municipal, Assembleia Legislativa ou no Congresso Nacional. A partir daí, qualquer cidadão de um distrito que vir razões para tanto pode iniciar uma petição de recall do seu representante, pela razão que entender suficiente.
Se colher entre seus pares o número de assinaturas estabelecido na lei para esse efeito – algo que varia entre 5% e 7% nos países onde o sistema já vigora -, consegue homologar o recall e o Estado é obrigado a patrocinar com verba idêntica a campanha contra e a campanha a favor da derrubada desse representante.
É feita, então, nova votação só nesse distrito para substituir o político em questão. Não são necessárias manifestações gigantes nem pedidos a colegas pouco dispostos a criar precedentes que possam voltar-se contra eles próprios. O resto do País pode continuar trabalhando em paz. Mas o político defeituoso é recolhido exatamente como no recall de automóveis, “para evitar um desastre“, e, se for o caso, entregue à Justiça comum para posteriores deliberações.
Inventado com as características que tem hoje na Suíça em meados do século 19 e implantado em todas as democracias desenvolvidas a partir do início do século 20, esse expediente simples reduz a corrupção em pelo menos 80% e arma a cidadania para impor, daí por diante, todas as reformas de que sentir necessidade. Muitos abrem a lista, nesta segunda rodada, exigindo a despartidarização das eleições municipais de modo a quebrar o poder de chantagem de velhos caciques e garantir transfusões regulares de sangue não contaminado na política.
O Brasil não precisa mais que isso para começar a andar só para a frente.
TODA A SÉRIE SOBRE VOTO DISTRITAL COM “RECALL”
https://vespeiro.com/2013/08/21/democracia-a-mao-armada-9/
https://vespeiro.com/2013/08/14/a-travessia-do-deserto/
https://vespeiro.com/2013/08/02/porque-nao-ha-perigo-no-recall-7/
https://vespeiro.com/2013/07/23/recall-sem-batatas-nem-legumes/
https://vespeiro.com/2013/07/20/discutindo-recall-na-tv-bandeirantes-6/
https://vespeiro.com/2013/07/15/mais-informacoes-sobre-a-arma-do-recall/
https://vespeiro.com/2013/07/12/voto-distrital-com-recall-como-funciona/
https://vespeiro.com/2013/07/10/a-reforma-que-inclui-todas-as-reformas/
https://vespeiro.com/2013/06/25/voto-distrital-com-recall-e-a-resposta/
A travessia do deserto – 8
14 de agosto de 2013 § 14 Comentários
(8º de uma série sobre voto distrital com recall. O 7mo está neste link)
As manifestações de junho terão sido só um ponto fora da curva se não surgir um mote capaz de dar um foco a toda aquela energia positiva e motivar os seus protagonistas originais a acreditar que voltar às ruas pode servir a algum propósito útil.
A máquina de moer esperanças do Sistema trabalha rápido para isolar e destruir o “corpo estranho” que invadiu, ameaçando saneá-lo, o caldo de cultura de que se nutre a luta pelo poder entre nós há 513 anos e restabelecer a tranquilidade do establishment.
Passado o choque da perda do controle das ruas as viúvas das manifestações “de griffe” estilo século 20 tratam de usurpá-las e devolvê-las ao serviço dos que vêm desde sempre se revezando no poder. Embora as mirradas “manifestações” aparelhadas que se seguiram às originais sejam falsificações grosseiras demais para convencer quem quer que seja de que não fazem parte desse mesmo “vale tudo” que constitui o pouco que o Brasil inteiro, com exceção do irremediavelmente podre, sabe com certeza que não quer mais, há que se recordar que não tem sido pelo convencimento mas sim pelo cansaço que eles têm conseguido prevalecer há tanto tempo.
No mais, segue o baile: a ala radical trabalha para rebaixar as defesas do país contra golpes plebiscitários enquanto a frente “política” vai cevando na corrupção os vendedores de governabilidade e trabalhando para quebrar a fibra moral da Nação. A exumação do escândalo do Cartel do Metrô de São Paulo atingindo todas as figuras de proa vivas e mortas do PSDB é o exemplo mais recente. São fatos ocorridos entre 1996 e 2007 investigados e divulgados na época pelos governos dos Estados Unidos e da Alemanha, mas que vêm a calhar nesta emergência para o esforço permanente do PT, não para reduzir a corrupção mas para zerar por baixo o seu handicap negativo de campeão incontestável da modalidade pelo mote oficializado por Lula desde o Mensalão: “Sim, nós somos. Mas quem não é”?
Já os enamorados do nada, dos “Black Blocs” da vida com suas máscaras negras aos “Anonimous”, contrafação ultra informatizada dos primeiros com suas máscaras brancas, não são novidade. Não ha porque temê-los para além do que possam perpetrar com as próprias patas ou com seus “malware”. O anarquismo é uma constante histórica que tem um apelo inicial sedutor (“Ay gobierno? Soy contra!”) mas que não tem um projeto de poder. Por isso, no seu radicalismo nihilista, consegue no máximo sistematizar o terrorismo – hoje praticado também e principalmente no ambiente virtual – durante períodos curtos de tempo.
Também eles contribuem, porém, para afastar do movimento de junho a camada intermediária da classe média rebelada que, mesmo avessa “à bagunça”, reconheceu-se naquelas manifestações e simpatizou com elas ainda que hesitando em sair às ruas.
A última pesquisa é inequívoca. Dilma recomeça a subir. O PSDB cai. Marina Silva e Eduardo Campos sobem ainda, mais por não terem tido a oportunidade de decepcionar do que por qualquer virtude especial reconhecida, enquanto os totalmente desiludidos seguem na faixa de quase 1/5 do eleitorado.
Ou seja, a negação de “tudo isto que está aí” ainda cresce; os miseráveis, que chegaram a balançar, na dúvida começam a voltar a se abrigar na segurança da esmola; os que anseiam por mudanças reais continuam órfãos de pai e mãe.
Nada que prenuncie a visão da Terra Prometida…
Se ha uma coisa sobre a qual não pairam dúvidas desde o primeiro momento é que o repertório doméstico de expedientes políticos e remendos institucionais está definitivamente esgotado.
Este é, aliás, o único ponto incontroverso deste movimento.
A imprensa, única instituição democrática teoricamente isenta da pressão direta da luta pelo poder, no entanto, tem restringido o escopo do seu trabalho de reportagem às nossas fronteiras físicas e ao repertório exaurido das “fontes” viciadas da discussão política doméstica onde já se sabe que as respostas não podem ser encontradas apesar de todas as facilidades para expandir essa pesquisa para experiências mais avançadas de democracia que a rede mundial oferece hoje.
A solução para o impasse brasileiro terá de vir do vasto rol dos arranjos democráticos “nunca antes experimentados na história deste país” no qual podem ser incluídos quase todos os que constituem os fundamentos básicos de uma democracia sem aspas.
A lista é vasta como ilustrava bem a multiplicidade dos cartazes que direta ou indiretamente a eles se referiam nas manifestações originais. E esta é a primeira das dificuldades. Por onde começar? Como reduzir tudo quanto nos falta conquistar a algo em torno de que possa haver uma decisão “sim ou não”?
A resposta está em focar essa busca na identificação de um método de produção de instituições e de resultados mais sadio que o que temos e não na repetição do erro de sempre de inscrever os direitos conquistados pelas sociedades que os alcançaram porque adotaram esse método numa lista de desejos que a nossa fábrica de instituições defeituosa não está aparelhada para produzir.
Assim como nada define melhor o divórcio do Brasil do Terceiro Milênio com este que ainda se arrasta por aí do que o “Não nos representa!” que atroa as ruas desde junho, nada pode responder melhor a esse apelo do que transferir das mãos dos interessados em que nada mude para as dos que precisam desesperadamente de mudanças a iniciativa e o controle final do processo de reformas que teremos de iniciar o quanto antes se quisermos manter a esperança de não sermos definitivamente condenados à periferia do mundo.
É exatamente isso que faz o sistema de voto distrital com recall: ele inverte a ordem que vivemos hoje e põe nas mãos de cada cidadão o poder de iniciativa e de controle do desfecho final de cada ação do poder público que possa afetar a sua vida, sem deixar nas mãos de ninguém poder sobrando para desaguar, nem em imposições, nem em arbítrio e, assim, arma a cidadania para forçar os legisladores e o governo a fazer, daí por diante, todas as reformas que lhe parecerem necessárias.
Artigo publicado em O Estado de S. Paulo de 14 de agosto de 2013
TODA A SÉRIE SOBRE VOTO DISTRITAL COM “RECALL”
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Porque não ha perigo no “recall” – 7
2 de agosto de 2013 § 21 Comentários
(7º de uma série sobre voto distrital com recall. O 6to está neste link)
Saí para uma semana de férias com o eco da hesitação de vários leitores e interlocutores diante do componente de ação popular incluído na receita das eleições distritais com recall batendo-me na cabeça.
“Isso não é perigoso? Como o povo que elege esses caras vai, de repente, passar a fazer melhor? Só porque tem recall? Eles não vão acabar sendo manipulados pelos demagogos de sempre para impor uma ditadura de maioria construída no grito?”
Há boas razões para se olhar com desconfiança para a “democracia direta”. Ela é como os cogumelos: ha milhares de versões e quase todas são tóxicas. Mortais para a democracia. Golpes para substituir representantes eleitos por “representantes” autoproclamados da “sociedade civil”, usá-los para fechar a porta e depois mandar os descontentes reclamar com o bispo. A rasteira preferida por nove entre dez dos candidatos a reizinhos de países com muita miséria e pouca escola.
Mas não é a esses que eu me refiro. O buraco é mais embaixo…
O brasileiro tem medo disso que se tornou. Ou melhor, tem medo do que fizeram dele. Não confia no seu taco. É aquela coisa do “Eu sou, mas quem não é?“.
Não é pra menos. A realidade é essa mesmo: “Quem é que não é?”, ou melhor, “Quem é que se pode dar o luxo de não ser nessa realidade em que temos vivido?”
Pois está na hora do Brasil se dar uma anistia. Começar de novo. E o recall é o instrumento para isso; para instalar uma nova realidade.
Desde sempre não nos tem sido dada opção. O brasileiro ou é explorado ou se torna explorador. Qualquer coisa no meio é uma pedreira. O Sistema não é que não ajuda. Ele praticamente não permite que se atue fora dessa dualidade.
Vá você tentar fazer qualquer coisa aqui certinho, pela letra da lei. Eles te comem o fígado devagarinho!
Você vai rolar de dificuldade em dificuldade, de burocrata em burocrata, de impedimento em impedimento até deixar de se fazer de desentendido e aceitar o achaque que é o objetivo único dessa corrida de obstáculos.
É morrer de amargura ou se entregar.
Você tenta uma vez. Insiste. Persiste…
Aí você começa a se dar conta de que o tempo está passando e você continua parado. Até a tua gente vai te interpelar. Chegará a altura em que você começará a duvidar do sentido dessa sua resistência moral.
“Afinal o que é que você está querendo provar? Que você é melhor que os outros? Que é mais realista que o rei? O que é que você pode fazer se a regra do jogo é esta, senão jogá-lo como ele é?”
Então você se entrega. Topa o suborno. Ou vira de vez a casaca e se torna você o achacador.
É uma coisa ou a outra. Sempre foi uma coisa ou a outra. Ou você é escravo ou vira feitor. Ou vai se abrigar, manso, na Casa Grande se não estiver talhado para predador. Não tem nada no meio. Nunca teve nada no meio.
Mas se você cede à lógica do Sistema tudo começa a andar. Arrastando os parasitas todos de que você tem horror, mas andando.
Água mole em pedra dura…
O preço é a sua consciência. Você passa a ser mais um igual a todos os demais que ja assumem que “são“. Já não tem mais moral para reclamar. Deixa de ser uma ameaça.
Com você sentindo-se mais um merda o Sistema pode voltar a dormir sossegado.
Essa é a vertente “sistêmica” e mais sinistra dessa corrupção que nos impõem.
Mas sobre eleições com recall não ha o que temer. O recall atribui uma pequena dose de poder a cada cidadão sem dar a ninguém poder demais. Põe nas mãos do mais humilde deles uma arma capaz de derrubar o rei mas que não pode ser acionada senão por um consenso que vai além da sua vontade pessoal.
O indivíduo, na ação coletiva, reage defensivamente. Para não ser lesado. Não está à caça de poder. Quer só preservar o seu espaço. Proteger a sua família. Não ser empurrado para tras.
Não se dará a maquinações maquiavélicas para conseguir isso porque não ha ganho individual que recompense esse esforço. Recall só se ganha convencendo, somando esforços e dividindo resultados. A ação de quem o propõe e de quem adere a essa proposição é, na verdade, reação.
Não confundir com o indivíduo em luta pelo poder. Este sim é proativo. Fala em nome do coletivo mas tem sempre um propósito oculto de ganho individual. Acena com o privilégio, o ganho fácil e a acomodação numa mediocridade semi-protegida, conforme o cliente, para colher o único bem considerado por essa “política” de hoje: mais poder e mais tempo no poder seja a custa do que for, seja com os sócios que for.
Um é ataque, o outro é defesa. Uma coisa é o antídoto da outra.
O recall com eleição distrital torna tudo isso mais difícil. Bane definitivamente as opções extremas escravidão ou feitoria e propociona a abertura de dezenas de alternativas mais honestas pelo meio.
TODA A SÉRIE SOBRE VOTO DISTRITAL COM “RECALL”
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Mais informações sobre o “recall” – 4
15 de julho de 2013 § 25 Comentários
(4º de uma série sobre voto distrital com recall. O 3ro neste link)
- O recall funciona mais ou menos como a bomba atômica: não é preciso necessariamente usá-lo para que ele faça efeito. Basta tê-lo ao alcance da mão para que o político que pode ser alvo dele mude radicalmente de comportamento.
- Bem utilizado e balizado por normas claras, o voto distrital com recall não aumenta a instabilidade dos processos político e de administração pública. Ele reafirma e dá consequência prática ao princípio fundador da democracia que é o de que o povo é a única fonte de legitimação do poder e, com o tempo, produz o efeito contrário.
- Em uma boa parte dos processos de recall iniciados nos vários países que usam essa ferramenta o político ou funcionário visado renunciou antes que o processo fosse adiante.
- Nenhum deputado federal chegou a perder o mandato por recall nos Estados Unidos onde o instrumento está em uso ha aproximadamente 100 anos. Os merecedores desse tratamento tendem a ser abatidos antes de chegar a essas alturas.
- Só dois governadores de estado dos EUA sofreram recall em toda a história do país: o de North Dakota, Lynn Frazier, em 1921, e o da Califórnia, Gray Davis em 2003. Em 2012 o de Wisconsin, Scott Walker, tornou-se o primeiro a sobreviver a um recall.
- O Canadá, com sólida cultura democrática, só instituiu o recall em 1995 e ninguém, nem o primeiro-ministro em exercício, está isento dele. Mas dificilmente se apresentaria uma situação onde coubesse um recall por ação direta do eleitorado em instância tão alta. Incluir o primeiro-ministro na lista de alvos possíveis tem mais sentido dissuasório que prático. Até janeiro de 2003, 22 ações de recall tinham sido abertas, sempre nas instâncias mais baixas do sistema. Ninguém chegou a ser cassado (por decisão dos eleitores). O único a cair foi um representante que renunciou antes do fim do processo.
- Entre 1846 e 1869 cinco cantões suíços instituíram o recall. Eles foram os pioneiros no mundo (embora os Estados Unidos já considerassem adota-lo desde as primeiras colônias de Massachusetts de 1631). Em 1988 um sexto cantão suíço, Uri, também adotou a ferramenta e em 2001 o sétimo, Ticino, veio juntar-se aos outros. Todos contam também com os instrumentos das leis de iniciativa popular e do referendo popular que permite derrubar leis passadas pelos legislativos, igualmente comuns nos Estados Unidos. Na Suíça, portanto, a arma está ao alcance da mão ha 167 anos mas os eleitores nunca chegaram a sentir a necessidade de usá-la contra alguém.
- Dezoito estados americanos incluem o recall entre suas ferramentas institucionais. Sete exigem uma denuncia formal de comportamentos previamente tipificados na petição e o acusado tem direito a defesa em torno dessa tipificação antes do recall ir ou não a voto. O processo passa pelo Judiciário antes de voltar ao povo, o que me parece uma distorção grave do princípio fundamental da democracia. Os outros 11 permitem que os eleitores convoquem um recall por qualquer razão que lhes aprouver. Ou seja, basta sentir que aquele indivíduo “Não me representa” mais, para lembrarmos a frase-símbolo das passeatas de junho. Se a maioria dos eleitores daquele deputado concordar com isso é o quanto basta para remove-lo.
- As porcentagens de eleitores assinando a petição de recall requeridas são diferentes em cada estado, variando de 2% a 7% e o tempo para a coleta dessas assinaturas depois de disparado o processo também varia.
- Houve 150 ações de recall em 73 distritos eleitorais de 17 estados norte-americanos em 2011. 75 funcionários perderam o seu posto em função delas e 9 renunciaram antes do fim do processo.
- Como nos Estados Unidos a maioria dos funcionários com funções executivas importantes para as comunidades tais como policiais, xerifes, gestores da educação e da saúde públicas, membros do Ministério Público, etc., que por aqui são nomeados pelos políticos, são diretamentamente eleitos pelo povo, esse número não é alto. 52 das eleições convocadas depois dessas ações de recall foram para membros de City Council, onde se sentam as cinco pessoas mais importantes da hierarquia municipal, 30 foram para prefeitos, entre eles o de Miami, e uma para um membro do equivalente ao nosso Ministério Público. O resto para funcionários mais baixos.
- Alguns recall contra senadores foram tentados no passado mas nenhum conseguiu passar as barreiras jurídicas que foram erguidas para detê-los. Neste ano de 2013 foi aberto um recall contra o senador democrata do Colorado, John Morse, que ainda não chegou ao fim, e outro contra a senadora do mesmo estado, Angela Giron. Este ultimo já foi mais longe no processo de homologação e a eleição para o substituto dela (ou não) já foi marcada. A razão é que os dois votaram leis limitando a posse de armas contra a vontade expressa de seus eleitores. Você pode acompanhar esses processos diretamente pela internet. A briga judicial virá depois.
- Várias organizações norte-americanas dedicam-se a limpar as barreiras jurídicas contra o recall de representantes federais que, segundo juristas importantes, está garantido pela Décima Emenda à Constituição. Os processos ganhos até hoje por senadores que sofreram recall basearam-se em aspectos laterais das causas. Não ha, ainda, uma jurisprudência constitucional solidamente estabelecida a respeito.
- Em alguns estados da Costa Oeste, os mais avançados em matéria de instrumentos de participação popular na política, já se discute o recall de juízes e até o de sentenças judiciais. Os “contra” argumentam que para isso os juízes teriam de ser eleitos e que as necessidades da campanha os tornaria vulneráveis ao poder econômico. Os “a favor” respondem que todos os juízes, eleitos ou não, são vulneráveis ao poder econômico assim como o resto dos mortais, e que eles se sentem mais seguros sabendo que os seus juízes vulneráveis ao poder econômico, assim como as sentenças injustas que possam emitir, são demissíveis por recall.
- O artigo 72 da Constituição da Venezuela permite o recall de qualquer funcionário eleito, inclusive o presidente. Ele foi usado no referendo de 2004 que tentou destituir o presidente Hugo Chávez. Lá o recall pode ser tentado depois de cumprido metade do mandato contra a assinatura de 20% do eleitorado. Mas de todo o eleitorado. Não ha o componente distrital, o que faz desse sistema um sistema de plebiscitos nacionais. O sentido desse tipo de recall é o inverso dos até aqui descritos. Um esquema que torna praticamente impossível uma iniciativa vinda de pessoas comuns mas facilita golpes pelos grupos em posições de poder com condições de mobilizar grandes massas. O caso da Venezuela ilustra perfeitamente a importância fundamental do voto distrital nos sistemas realmente democráticos de recall.
- De modo geral o recall de funcionários eleitos por eleições majoritárias é evitado ou dificultado ao máximo em função da polarização e da instabilidade que tal possibilidade tende a provocar. Isso para não falar na facilitação para a armação de golpes que essa polarização enseja em sociedades politicamente menos amadurecidas. Para remover esses funcionários usa-se, mais frequentemente, o instrumento intermediado do impeachment a ser decidido por representantes, estes sim, passíveis de recall.
- O “recall” tende a ser tanto mais seguro, justo e eficiente quanto mais próximo da base do sistema estiver o alvo visado. O que ele proporciona de mais interessante, duradouro e sólido é o efeito “sistêmico” de higienização recorrente dos organismos político e de administração pública a partir das suas raízes e bases. O recall tende a ser melhor aplicado na instância municipal onde os eleitores de cada distrito e os candidatos em geral se conhecem pessoalmente. Como, em toda parte, o político é um profissional que precisa fazer uma carreira, quando ele chegar a se candidatar aos cargos mais altos no âmbito nacional já terá passado duas, três ou mais vezes pelas frentes de batalha municipais e estaduais onde o uso da “munição viva” do “recall” pode ser feito em ambiente mais seguro e bem delimitado.
- O recall não é, portanto, uma panacéia capaz de consertar tudo no dia em que for instituído. Seu efeito dissuasório passa a ser sentido desde o momento em que é aprovado mas, a médio prazo, ele produz um efeito desinfetante, profilático e educativo cada vez mais sólido e duradouro sobre todo o sistema, mesmo sobre os segmentos dele onde não é diretamente aplicável.
TODA A SÉRIE SOBRE VOTO DISTRITAL COM “RECALL”
https://vespeiro.com/2013/08/21/democracia-a-mao-armada-9/
https://vespeiro.com/2013/08/14/a-travessia-do-deserto/
https://vespeiro.com/2013/08/02/porque-nao-ha-perigo-no-recall-7/
https://vespeiro.com/2013/07/23/recall-sem-batatas-nem-legumes/
https://vespeiro.com/2013/07/20/discutindo-recall-na-tv-bandeirantes-6/
https://vespeiro.com/2013/07/15/mais-informacoes-sobre-a-arma-do-recall/
https://vespeiro.com/2013/07/12/voto-distrital-com-recall-como-funciona/
https://vespeiro.com/2013/07/10/a-reforma-que-inclui-todas-as-reformas/
https://vespeiro.com/2013/06/25/voto-distrital-com-recall-e-a-resposta/
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