A descriminalização da gastança

25 de fevereiro de 2021 § 13 Comentários

Com o rombo do setor publico previsto em R$ 250 bilhões, a “PEC de Emergência”, lançada para encontrar fontes de financiamento ou corte de despesas que zerassem o custo previsto do auxilio de sobrevivência por mais quatro meses (para começar) aos milhões de brasileiros desempregados ou proibidos pelos próprios governos de trabalhar na pandemia acabou reduzida a uma emenda de descriminalização do crime fiscal. Isto é, ela não anula os efeitos devastadores da irresponsabilidade fiscal que, em rara janela de lucidez, o legislador definiu como criminosa em tempos idos. É apenas uma licença para os agentes públicos gastarem consigo mesmos de forma criminosa impunemente.

O bode colocado na sala no último relatório do senador Marcio Bittar é o barulho da “quebra da vinculação” das verbas para educação e saude no orçamento nacional. Na verdade o que se propõe não é nem a liberdade para reduzir o total obrigatoriamente gasto com essas duas rubricas, é apenas dar liberdade ao governo para alterar a distribuição do total gasto entre elas, dada a experiência concreta do último ano em que a saude teve o peso que teve e as escolas e universidades públicas e privadas permaneceram fechadas.

Eu ia começar este artigo dizendo que o Brasil fracassa porque todos os diagnósticos sobre ele ignoram a referência básica do resultado. O raciocínio ia na linha de conferir um dado simples. A educação e a saude publicas melhoraram no Brasil desde que essas vinculações foram estabelecidas? Houve melhoras nesses serviços a cada vez que a porcentagem do orçamento dedicado a eles foi aumentada? 

A resposta é: nenhuma, muito ao contrário. Tudo no Brasil anda para traz desde que a Constituição de 88, que introduziu esse instrumento, foi inaugurada. E a razão disso é obvia e ululante. Junto com essas vinculações a constituição deu a cada categoria do funcionalismo público, ou o direito expresso, ou os meios práticos de estabelecer a sua própria remuneração e o seu próprio plano de carreira. O resultado é que todos eles, para além de serem indemissíveis, passaram a se aposentar cada vez mais cedo e com mais proventos, a ter seus salários aumentados por mero decurso de prazo e não contra a apresentação de resultados, e a inventar todo tipo de trapaça semântica ofensiva à inteligência para violar as leis ensaiadas para tentar deter esse assalto que pôs o país nessa condição maluca em que os 5% da população embarcados no serviço público comem mais de 50% do PIB e os 95% restantes estão relegados ao favelão nacional. 

Uma das mais notórias dessas trapaças é essa das “vinculações orçamentárias”. Não havendo nada que obrigue os governos a limitar contratações nem os contratados a mostrar desempenho esses aumentos de verbas “para o setor” convertem-se, na prática, em aumento dos proventos dos servidores do setor (além da corrupção), e em rigorosamente mais nada que interesse aos servidos. Mas dá à canalha que arma essa arapuca dentro dos legislativos e à “sua imprensa” cativa um “argumento” fácil: “Como assim, tirar dinheiro da saude e da educação”! 

Esse argumento é tão agressivamente  contraditório com a iniquidade dos números da situação povo versus “representantes” e “servidores” do povo no orçamento nacional que alguns órgãos dessa imprensa cativa já não ousam repetí-lo inteiro. Admitem veladamente – e apenas veladamente – que tudo isso é uma empulhação criminosa, mas que “ainda não é hora de enfrentá-la”, mesmo com o país explodindo como está explodindo…

Daí ter eu recuado da premissa inicial. Os governos do Brasil, constituídos total e exclusivamente pela privilegiatura, agem sim, considerando o resultado das suas decisões porque sendo o sistema totalmente autorreferente e blindado contra os eleitores, o resultado que ele SEMPRE está buscando é o aumento dos privilégios da privilegiatura que, com os arranjos que fez no front eleitoral e de financiamento de eleições, nunca sai do poder com essa tapeação da alternância entre “esquerda” e “direita” que não passa da alternância entre duas formas sutilmente diferentes de mentir para que a nobreza continue sendo sustentada pelos plebeus.

A trajetória dessa PEC assume essa verdade.

Nascida para reafirmar a “regra de ouro”, o único instrumento de defesa do favelão nacional contra a fome de lagosta dos palácios, que torna ilegal e passível de impeachment o governo que aumentar mais que a inflação do ano anterior o endividamento publico para manter gastos correntes, acaba por descriminalizar esse crime. Sempre com o congresso em peso e mais os Bolsonaro contra o isolado Paulo Quixote Guedes de oponente solitário, tiraram dela, uma a uma, todas as medidas de cortes de gastos correntes (leia-se proventos do funcionalismo ativo e inativo porque não sobra um tostão pra mais nada). Ela foi amputada, sucessivamente, de todos os dispositivos contra despesas fora do teto: redução de salário e jornada de servidores, desobrigação de reajuste de salários e aposentadorias em meio a desastres nacionais, contenção de emendas parlamentares … tudo, enfim, que faça o menor dos barnabés abrir mão do mais ínfimo dos seus “penduricalhos” para que um zé a menos acabe morando na rua com sua família. 

Ficou, pro forma, o congelamento de novos aumentos, contratações e progressão nas carreiras publicas por mais dois anos, medidas já devidamente arrombadas no primeiro ano de “vigência” com brechas amplamente exploradas nas três instâncias de governo.

Se a preocupação fosse com a qualidade da educação e da saude publicas estávamos fazendo o que fazem as democracias: servidores diretamente eleitos para poderem ser diretamente cobrados e demitidos (recall) pelos servidos que não servirem a contento; escolas publicas fiscalizadas por conselhos de pais de alunos eleitos por cada bairro para aprovar ou não currículos e orçamentos de seus respectivos diretores; ninguém nomeado por político nem eternamente estável no serviço público. Estávamos abolindo, enfim, os instrumentos concretos da escravização do favelão nacional pela privilegiatura que a imprensa dela se proíbe até de nomear, o que deixa os que nos assaltam com a lei livres, leves e soltos para continuarem a estrangular o Brasil.

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§ 13 Respostas para A descriminalização da gastança

  • Ulrich Dressel disse:

    Perfeito.
    Menos essa frasezinha: “Tudo no Brasil anda para traz desde que a Constituição de 88, que introduziu esse instrumento, foi inaugurada.”

    E a falta da vírgula na seguinte, força o leitor a lê-la repetidas vezes (bom truque do autor para obter atenção):

    “Não havendo nada que obrigue os governos a limitar contratações nem os contratados a mostrar desempenho esses aumentos de verbas “para o setor” convertem-se, na prática, em aumento dos proventos dos servidores do setor (além da corrupção), e em rigorosamente mais nada que interesse aos servidos.”

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  • rubirodrigues disse:

    Realmente priveligiatura, de um lado, e capacidade do povo cassar mandatos a qualquer hora, de outro, resumem os pontos cruciais do imbróglio em que o Brasil se debate. No quesito privilegiatura convém, entretanto, distinguir entre funcionários de carreira e agentes públicos, não só por questão de justiça, mas também por razões estratégicas. Os privilégios não se distribuem igualmente entre essas duas categorias e nem elas respondem igualmente pelos serviços públicos que são a razão da existência do Estado. A parcela mais frágil é a dos funcionários de carreira e concentrar neles a redução de custos que a reforma exige, vai repercutir na qualidade dos serviços. De outro modo, se os custos recaírem majoritariamente sobre os agentes públicos a reforma será eficiente e eficaz, sem os riscos apontados e sem que a população acabe pagando o pato. NB: Não se entenda que considero o Estado eficiente e menos ainda que não existam em todas as classes, bandidos que mereçam ser banidos. Não me insurjo contra a festa, apenas recomendo cuidado com a louça.

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    • flm disse:

      O sr. pôs a premissa mas não chegou à conclusão, sr. Rubi.

      Nos precisamos de funcionários demissíveis pelos eleitores (e decisões implicando gastos públicos e remuneração de servidores sujeitas a referendo de quem vai pagara a conta) porque eles são os “fregueses” do serviço publico e, portanto, só eles podem dizer quanto é justo eles ganharem.

      Enquanto tais decisões forem da alçada só dos próprios interessados, ficaremos eternamente na discussão da “justiça” ou da “injustiça” das remunerações pagas a cada um pelos próprios interessados que, COM CERTEZA, leva ao resultado que temos colhido: 5% da população comendo 50% do PIB e os 95% restantes pastando no favelão nacional

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      • rubirodrigues disse:

        De pleno acordo: funcionários demissíveis pelo eleitor. O que pretendi alertar é que caso a demissão seja facultada ao agente público a quem o funcionário se subordina – razão original da estabilidade – a situação fica ainda mais à favor do grande privilegiado que passa a ter poder de vida e morte sobre o subordinado. Penso que vale a pena ter em mente que existe um contingente de funcionários públicos dedicados e dotados de espírito público. Criminalizar todos não me parece inteligente. De resto, pleno acordo e a resistência de professores em retomar aulas presenciais Brasil a fora evidencia a comodidade desfrutada.

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      • Herbert Sílvio Augusto Pinho Halbsgut disse:

        Teriam nossos eleitores condições para julgar se os funcionários públicos tem, ou não condições de permanecerem em suas funções, ou cargos, ou iria prevalecer um instinto de perseguição aos funcionários “durões” cumpridores da lei, do tipo que não negocia o que é público? Quanto tempo levou para que os cowboys do velho oeste americano soubessem votar e escolher gente capacitada para os cargos políticos e funcionários na administração pública através do voto distrital puro com recall?

        Quando aqui as vespas apresentam suas opiniões sobre o funcionalismo público o fazem de modo generalizador, mas sabemos que as exceções existem, entre todos eles, e por isto muitos pagam o pato, quando seus chefes e chefetes estão alinhados com esse ou aquele cacique político e seu partido, exigindo não o que é de lei mas o combinado para dar votos e grana para as próximas eleições, como manda o figurino.

        Os funcionários concursados, ou não, pois existem fantasmas – ou não – seguiram as regras de um jogo de farsantes, que devoram o erário público em quaisquer dos três poderes “republicanos e desconsideram a noção de bem comum de forma a incluir todos os cidadãos, em tese, iguais perante a Lei.
        Enquanto no Congresso Nacional não encaram as reformas como nós, o povo legítimo detentor do poder, esperamos que seja, de acordo com princípios democráticos e respeito a Constituição Federal e dos estados, tudo continuará como antes, muito bem maquiado.
        EGALITÉ… republicana, onde? A FRATERNITÉ se esvai para a terra do nunca!
        Conheci uma jovem maior cujo pai (CLT) faleceu e ela não recebe uma pensão como uma sua prima que recebe pensão vitalicia enquanto permanecer solteira… pois filha de militar falecido, assim como recebem tal privilégio as filhas solteiras de Juízes e de outros agentes públicos. Fico a pensar se o militar casou-se várias vezes e teve filhas em todos os casamentos se elas também tem direito a suas pensões vitalícias enquanto solteiras.
        Os segredos da privilegiatura raramente saem em manchetes dos jornais e destacadas na mídia em geral . Parece que isso começou na época da Guerra do Brasil, ops, do Paraguai, e a viúva tinha muitas filhas e filhos, tendo até que trabalhar no serviço público.
        Renda básica para todos os cidadãos desde o nascimento até a morte é uma boa maneira de se corrigir a má distribuição histórica da renda nacional, fomentar o consumo, a produção, o volume de impostos a serem destinados aos serviços públicos – tal como deveria ser plenamente com relação ao SUS, por exemplo , nos levaria a alcançar patamares elevados de civilização e bem comum: entretanto a privilegiatura emperra, obstaculiza através de seus representantes e pares nas Câmaras municipais, nas Assembleias Legislativas e no Congresso Nacional, mormente contando com desgovernos que representam a si próprios, esquecendo-se do povo.
        As sinecuras se proliferaram de em tal proporção na coisa pública como nós górdios!. Que forças irão conseguir desatá-los, as da razão ou a das armas, que o atual presidente tanto se dedica a esparramar no âmago de uma Nação machucada pela exploração impune por aqueles que tem imunidade para representá-los e não o fazem?

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  • Adriana disse:

    Perfeito. O Brasil dá certo para poucos: a maioria está na privilegiatura. Os resultados e eficiência buscados são os benefícios em cada carreira. Ponto. Os serviços são péssimos, e ganham muito acima do valor de mercado. É como ter a opção de comprar um produto com garantia de devolução e outro sem essa garantia, e optar por um sem garantia que custa 10 vezes mais. Claro, os defensores de seus próprios privilégios preferem reagir com seu ego, se dizendo melhores. Acho um vexame as carreiras publicas brasileiras, e o resultado do trabalho dos servidores é quase o pior do mundo para os cidadãos, e o melhor do mundo para os próprios bolsos.

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  • Jota Guedes disse:

    Fernão, deixe-me lhe contar coisa.

    Sou funcionário público e vejo de perto como á utilizado o dinheiro das emendas parlamentares que vêm lá de Brasília, a terra dos afortunados. Agora mesmo soube de uma emenda de 100 mil, para a reforma de vestiários de um estádio da cidade. A equipe de arquitetos desenvolveu o projeto chegando ao valor de 80 mil. Num país sério, os 20 mil restantes seriam redirecionados para outro lugar de algum modo. Mas, o que acontece é que o município é obriga a usar o valor cheio. Não conheço a lei em profundidade para saber se haveria alguma alternativa. Agora a equipe de arquitetura vai ter de “inventar” maneiras de enfiar 20 mil reais na reforma. Imagine a quantidade de dinheiro que é desperdiçado assim, num país do tamanho do Brasil…

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    • A.(sno) disse:

      “Seu Jota”: sua dúvida tem resposta. Atende pelo nome de senador Chico Rodrigues…

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    • A.(sno) disse:

      “Seu Jota”: também tenho uma corroboração ao que o sr. disse. Trabalhei numa escola em a vice diretora comprava itens absurdos de almoxarifado porque era OBRIGADA a consumir toda a verba recebida. Até hoje acho que os funcionários “se limpam” com produtos daquela época, tal foi a quantidade de “rolos” adquirida…
      Abraço!

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  • flm disse:

    Posso bem imaginar, Jota.
    Ou pior, estamos constatando…

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  • Como sempre excelente, correto e perspicaz mas, o Brasil é isso.

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    • Herbert Sílvio Augusto Pinho Halbsgut disse:

      Senhora Marlene, espero que para o quanto antes possamos dizer: o Brasil era isto, pois o povo resolveu agir e reivindicar seu direito de exigir o que deve ser, porque tem o direito legitimo de fazê-lo, conforme está no preâmbulo de nossa Constituição Federal de 1988, a Cidadã, esquecida e pisoteada nos três poderes “republicanos democráticos” em nome de uma obscura governança sem rumo certo em relação ao nosso futuro.

      Tenha ânimo, pois as mulheres tendem a ser protagonistas de primeira hora, principalmente quando defendem o que lhe é mais caro: os filhos, a casa, a existência digna, os valores do bem comum e o sentimento de pertencimento à Pátria.

      Afaste-se desse cálice do conformismo, se é que és assim, ou apenas lembrou o fato de estarmos nessa condição a que nos permitimos chegar, de dizer que “o Brasil é isso”. Mude as coisas , guerreira, com palavras e ações legais que eternizem os feitos conquistados, para que nenhuma corte anule seu direito e realizações em prol do bem comum.

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  • Paulo Murano disse:

    Oi, que vc chamaria para testemunhar que está andando para frente? O texto não convence, iguais aos do Fernão, exceto para @s fernãozetis da primeira fila presente, sempre.

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