Eleições democráticas x eleições brasileiras – 2
24 de junho de 2022 § 2 Comentários

O Brasil discute apaixonadamente a insegurança das urnas e tem boas razões para isso. Ninguém recheia pacientemente um supremo tribunal com militantes, anula irreversivelmente as três instâncias do Poder Judiciário abaixo dele resgatando um criminoso condenado para enfia-lo diretamente na eleição e mata a pau o Poder Legislativo inteiro ao derrubar três votações democráticas maciças dos representantes eleitos do povo mandando imprimir um comprovante do voto alegando razões futeis porque esteja bem intencionado. Tirar da eleição o caráter de argumento indiscutível da pacificação nacional que a transparência da contagem dos votos lhe confere em todas as democracias do mundo certamente não vale os caraminguás que se quer “economizar” negando ao eleitorado brasileiro um comprovante do voto que ele possa ler.
Mesmo assim, na merda em que estamos a questão da urna chove no encharcado!
A “fraude”, quando “aparece”, verdadeira ou “falsa”, consiste na pessoa votar num nome e seu voto ser transferido para outro pela máquina. Mas o fato é que o otário do eleitor brasileiro vota numa pessoa e elege outra sem o concurso de qualquer hacker. No sistema do voto proporcional essa transferência fraudulenta já é operada PELA LEI. Só 15 a 20% da fauna que habita os legislativos brasileiros, conforme lembrou artigo publicado ontem por José Serra em O Estado de S. Paulo, foi eleita por votos em sua pessoa. 80 a 85% dela ganhou o poder de ditar-nos leis “de carona”.

Hoje essa fraude sistematizada está delimitada ao interior de cada “partido político” criado e sustentado pelo Estado. Até 2020 rolava até entre partidos diferentes, desde que estivessem mancomunados numa mesma “coligação”.
O resultado é esse que está aí. O eleitor não sabe quem elegeu e o eleito não deve lealdade a ninguém senão ao “dono” do partido em que se homiziou. E sua única missão na vida passa a ser a de defender o sistema sem o qual jamais se elegeria e reelegeria, os menos ruins para ter privilégios vitalícios e hereditários às custas do favelão nacional, os mais iguais à média para assaltá-lo impunemente.
E enquanto rasga-se assim, já não digo a nossa constituição drogada e prostituída, coitada, mas até a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, a imprensa nacional das redações franqueadas aos “jornalistas” formados no “sistema educacional” criado pela fauna dos 15 a 85%, dança em frenesi a dança do “estado democrático de direito” em torno da fogueira da ignorância (e não só da ignorância) como um bando de anacrônicos pajés de uma tribo institucionalmente primitiva.

O resto da tragédia nacional é mera consequência.
O lulopetismo nunca entregou o poder perdido no voto. Parte sempre para a chantagem. Trata de destruir a economia e tornar o país ingovernável até que, sufocado pela miséria multiplicada, pela violência e pelo desespero resultantes o eleitorado aceite pagar-lhe o resgate da devolução ao poder. A diferença é que, até Bolsonaro, alguma imprensa resistia-lhe…
A “vantagem” de quem destrói sobre quem constrói é proverbial. Daí terem tomado os milênios todos do primeiro homem até hoje para que tão poucas democracias se tenham consolidado no mundo. Os bens imateriais que só elas provêm não podem ser “entregues”, nem direta, nem imediatamente. São conquistas indiretas e progressivas do controle do poder de fazer leis pelos próprios interessados nelas que dependem, como toda obra humana, de longos e intrincados processos de construção coletiva aprendidos por ensaio e erro sob a pressão das intempéries formadas nos bolsões onde resiste com unhas e dentes a multimilenar privilegiatura, seja no próprio país, seja nos inúmeros clusters ditatoriais ou totalitários que subsistem na cena planetária. Forças que hoje atuam com potência redobrada pela internet que deu materialidade ao internacionalismo em que só o socialismo antidemocrático investiu e se especializou desde que nasceu.

Só no campo do Brasil do pós-lulismo houve uma mudança “material” de qualidade na recuperação do direito de trabalhar em paz que veio como corolário da reconstituição do direito de propriedade. No vasto favelão nacional houve, quando muito, alterações na quantidade da opressão exercida: o crime seguiu imperando como sempre, mas agora com a polícia formalmente proibida de entrar no território dele pelos supremos militantes, outro dado inacreditável dessa nossa nova “normalidade democrática”.
E se eles já se sentem livres para agir assim e para “prender e arrebentar” quem lhes ofereça resistência estando fora do poder, imagine dentro, e com todas as condições de reconstituir o pleno sistema de seleção negativa que se vinha tentando desmontar na educação, no serviço público, nas forças de segurança e no resto das instituições do nosso Estado onipresente.

A inflação da soma dos efeitos dos lockdowns, da guerra de Putin e dos trilhões de dólares “grátis” com que Joe Biden engraxou sua eleição que ameaça derrubar todos os governos que estão no poder, independentemente de serem “de esquerda” ou “de direita”, é apenas um fenômeno episódico. Nos países com sorte a tempestade chega para enfraquecer governos antidemocráticos. Nos sem sorte…
A ameaça real é, no entanto, muito mais profunda e resiliente. Nem a democracia americana está incólume ao ódio crescente aos monopólios criados a pretexto de enfrentar os dos “capitalismos de estado” que hoje todo socialista doméstico trata de cooptar e ao achinesamento dos salários e com eles, dos direitos civis que, eliminados os da escolha do patrão e do fornecedor, deixam de existir.
Mesmo as democracias mais sólidas deixaram o inimigo entrar pela porta de saída e agora ninguém sabe como pô-los para fora.
Nesse mundo em que resta tão pouco em que se agarrar, a que distância está este Brasil monocrático, indigente de qualquer memória de cidadania, do ponto de não retorno?
Essa é a pergunta que deveria orientar esta eleição, se conseguíssemos voltar a pautá-la pela razão.

Quão longe você está da democracia? – 5
23 de maio de 2022 § 5 Comentários

Continuacão…
Democracia é representação
“Democracia representativa” é o nome do jogo. Então pensa: representante não existe por si mesmo. Existe em função dos seus representados. Não age por si, age por eles. É, portanto, uma relação hierárquica. O representado manda no representante. E para que mande, tem de poder cassar-lhe o mandato a qualquer momento que se sentir traído.
Daí o recall. Daí o referendo, a confirmação pelo representado de cada coisa que o representante faz em seu nome. Daí a iniciativa popular de lei para que o representado é que decida o que os congressos e assembleias dos seus representantes vão discutir e votar.
Sem isso vira zona; sem isso vira Brasil…
O primeiro passo, sem o qual não se consegue dar nenhum outro que não seja em falso no caminho da democracia é, portanto, saber quem representa quem. Só existe um meio de estabelecer isso claramente, de pessoa para pessoa.

Na eleição distrital pura o país é dividido pelo número de distritos eleitorais correspondente ao número de representantes federais que ele quer ter. Os Estados Unidos, com 329 milhões e 500 mil habitantes contados pelo censo de 2020 e 435 cadeiras de representantes eleitos no Congresso Federal estão, neste exato momento, redefinindo seus distritos eleitorais federais, agora com aproximadamente 757,4 mil habitantes cada, em função do censo de 2020. Os distritos eleitorais só podem ser alterados em função do censo feito a cada 10 anos. E ha 2 anos de prazo para as mudanças serem definidas. Havendo 7.383 vagas de representantes estaduais nas 99 casas de lei existentes no país (1.973 senadores estaduais e 5.413 deputados estaduais), também ha idêntico número de distritos eleitorais estaduais sendo redesenhados.
Essas divisões são feitas em cima do mapa da nação cruzado com os dados do censo. O endereço de cada eleitor dirá qual é o seu distrito eleitoral e todo candidato a deputado federal, desde as eleições primárias até as decisivas, só poderá se oferecer aos eleitores de um único desses distritos. Não ha porteiras obrigatórias. Quem quiser entrar na disputa eleitoral por um partido passará por primárias partidárias que têm regras objetivas, não precisará de convite do “dono” do partido. Quem quiser concorrer como independente também poderá faze-lo.
Uma vez eleito, ele será o representante daquela parcela de 757,4 mil cidadãos específicos, em cada uma das quais haverá uma proporção sempre semelhante de eleitores. O critério é de população e não de eleitores porque é o mais seguramente aferível pelo censo. Cada estado, independentemente de sua população, elegerá no mínimo um deputado federal para mandatos de dois anos e 2 senadores cada para mandatos de seis anos, com renovação de ⅓ a cada dois anos.

Essa é a maior das células do sistema distrital. A menor é a que elege o school board, a instituição seminal de todas as democracias de DNA inglês nos sete continentes, da India à Nova Zelândia, do Kênia aos Estados Unidos. Nelas as escolas públicas de cada bairro são geridas por 7 conselheiros eleitos pelos moradores entre seus vizinhos. São eles que contratam e demitem o diretor das escolas públicas de seus filhos e aprovam ou não seus orçamentos anuais e programas de educação.
Conforme o tamanho das câmaras de representantes municipais e estaduais desejados por cada cidade ou estado, um conjunto de distritos escolares de um determinado tamanho comporá um distrito municipal, um conjunto de distritos municipais comporá um estadual e um conjunto de estaduais comporá um federal, com as mesmas regras de candidatura à representação de cada um: sem porteiras desde as primárias, que acontecem em todas essas instâncias.
Dos governadores de estado para baixo até os membros de school boards, todos os representantes e funcionários eleitos (e em boa parte do país isso inclui também os juizes de direito) são demissíveis por recall, bastando a qualquer de seus eleitores colher um número determinado de assinaturas de seus pares (conforme o estado, de 5 a 10% dos votos recebidos para eleger o funcionário visado) para convocar uma nova eleição em seu distrito.
É essa a diferença entre a civilização possível e a nossa miséria…

Abaixo, segue a continuação da lista das ballot measures de alcance estadual já aprovadas para constar das cédulas da eleição de novembro próximo. Ao lado delas também estarão nas cédulas dezenas de outras de alcance municipal ou apenas distrital:
Montana
- Requer mandato judicial para permitir o exame dos dados eletrônicos de uma pessoa.
- Obriga ao tratamento médico de bebês nascidos vivos e criminaliza a negação desse tratamento.
Nebraska
- Autoriza os governos locais a gastar dinheiro público para desenvolver voos comerciais servindo aeroportos locais.
Nevada
- Aumenta o imposto sobre renda mensal de jogo acima de US$ 250 mil de 6,75% para 9,75%.
- Aumenta o imposto sobre vendas e dirige a diferença para custear escolas públicas.

- Acrescenta um novo capitulo à constituição estadual que diz: “A igualdade de direitos perante a lei não pode ser negado nem reduzida neste estado ou qualquer de suas subdivisões politicas em função de raça, cor, credo, sexo, orientação sexual, identidade de gênero, idade, deficiência física ou mental, ancestralidade ou origem nacional”.
- Aumenta o salário mínimo em Nevada a US$ 12 por hora para todos os empregados a partir de 1º de julho de 2024.
New Hampshire
- Consulta os eleitores para instalar ou não uma convenção constitucional.
New Mexico
- Atribui os fundos do Land Grant Permanent Fund para educação de primeiro grau.
- Autoriza o legislativo estadual a prover fundos para serviços de infra-estrutura doméstica voltados para provimento de internet, eletricidade, gás, água, esgoto e outros serviços previstos em lei.
- Determina que um juiz nomeado esteja apto a candidatar-se ao cargo na próxima eleição geral um ano antes de ter sido nomeado.
- Autoriza a emissão de US$ 24,47 milhões em títulos para financiar melhorias nos equipamentos para o bem estar na velhice.
- Autoriza a emissão de US$ 19,266 milhões em bonds para investimento em bibliotecas públicas.
- Autoriza a emissão de US$ 215,986 milhões em bonds para investimento em instituições públicas de educação superior, escolas públicas especiais e escolas públicas em reservas tribais.
Continua…

Do passado não virá nada
8 de fevereiro de 2017 § 28 Comentários
Na sua indigência de heróis, na sua ancestral ressaca de injustiças, o Brasil consola-se olhando obsessivamente para traz, procurando vingança mais do que esperando justiça. A Lava Jato avança mas por caminhos tortos, sempre com uma nota de arbitrariedade, sempre com prejuízo da segurança jurídica. “Corrige-se” provisoriamente pessoas selecionadas mas não se corrige instituições. O país faz força para agarrar-se a essa esperança mas não ha no ambiente o brilho da iminência da chegada do novo nem qualquer indicação de que o Brasil que sairá dessa purgação será essencialmente melhor que o que entrou.
Mesmo assim a operação é mantida sob cerco. Um por um os divergentes vão sendo cooptados. Ninguém ergue a mão contra Curitiba; “paga-se um mico” aqui e ali mas os subornados e os subornandos da nova e da velha guarda continuam tocando a vida exatamente como sempre enquanto resistem molemente à Lava Jato à espera de que se extinga pelo cansaço.
Poderia mais uma vez dar certo se só de pessoas se tratasse. Mas desta vez é diferente. O caso é de vida ou morte. Tudo foi longe demais. A crise não é financeira, é estrutural. A economia continua em parafuso; a arrecadação continua em parafuso. O caos a que o país se acostumou das muralhas do estado para fora já invadiu o pátio desse último reduto da estabilidade e continua a subir. Só as torres do poder seguem incólumes mas não por muito tempo. Placebos e drogas paliativas, a sombria matemática de cada mes confirma, não fazem mais efeito. Não ha saída senão por ações muito concretas. As reformas da Previdência e Trabalhista são essenciais mas não bastam. O Brasil Oficial obeso não voltará a caber no Brasil Real esquálido senão passando por um regime de emagrecimento radical.
Custaria muito menos, aliás, do que se quer fazer crer. Ha tanta gordura sobrando nas camadas mais altas do poder que não faltaria muito a ser feito se apenas enquadrássemos esse segmento na lei. A questão é que se houve algo que esse pessoal fez com absoluta competência foi tornar ilegal exigir-lhes respeito à lei.
Ha um STF de boa vontade procurando saídas. Foi o que repeliu com a figura jurídica do “desvio de finalidade” os dribles que Eduardo Cunha, primeiro, e Lula quando nomeado para a Casa Civil como Moreira Franco agora tentaram dar na lei. Mas ha também o outro que se encolhe para ministrar o mesmo remédio corporação adentro quando ela invoca a autonomia dos poderes para multiplicar os próprios privilégios. Ainda assim, ficou indicado um caminho. Promover um grande “realinhamento de finalidades”; convocar um mutirão cívico-jurídico para limpar a constituição com a própria constituição escoimando-a de tudo que não sejam direitos válidos para todos seria tarefa fácil para os grandes acrobatas do argumento que se sentam naquela corte se houvesse vontade política para tanto.
Mas vontade política não se põe, se impõe. O problema em que nos pôs essa nossa “democracia” obsoleta é o mesmo da Roma de ha 1500 anos: o completo desligamento dos representantes dos seus representados e a corrupção que esse distanciamento engendra.
A força da nação já se provou irresistivel. Ela pode qualquer coisa que se decidir a fazer. A rejeição a esse Brasil do passado contra o qual tantas vezes marchou é unânime mas falta uma referência para dirigir todos os olhares para o futuro; algo sólido o bastante para merecer ser perseguido.
Pois essa referência existe. As ferramentas de “democracia semi-direta”, juntando o melhor de Atenas com o melhor de Roma, põem os pacientes das instituições urdidas pelos representantes eleitos em condições de levar-lhes, tantas vezes quantas entenderem necessário, “propostas às quais eles não possam resistir” para aperfeiçoa-las. Inventado na Suiça nos meados do século 19 e transplantado para os Estados Unidos na virada para o 20 esse método de afinação compulsória de “vontades políticas” vem resgatando populações inteiras da opressão, da corrupção e da miséria ha mais de 150 anos. É o antibiótico das doenças políticas. É graças a ele que funcionam as democracias que funcionam.
Compõe-se de tres elementos simples. O direito de convocar, por iniciativa popular, referendos de confirmação ou rejeição das leis aprovadas nas câmaras municipais e assembléias legislativas, o de formular e impor leis de inciativa popular aos legisladores e o de recorrer livremente ao “recall” para impedir que representantes eleitos possam escolher deixar de ouvir seus eleitores depois de eleitos.
Esse sistema se aplica nos niveis municipal e estadual mas, por assim dizer, “instrui” o nivel federal. Pressupõe o respeito ao principio federativo que nossa constituição prescreve mas os políticos não acatam segundo o qual o município deve resolver tudo que diz respeito ao município, o governo estadual só aquilo que envolver mais de um município, e o governo federal apenas e tão somente as relações internacionais, a proteção da moeda e a guerra. Requer também que seja absolutamente claro quem representa quem na politica estadual e municipal, o que se consegue com eleições distritais. Cada distrito elege apenas um representante e, nele, o eleitor é rei. Qualquer um pode iniciar uma petição para rejeitar ou criar uma lei, manter ou cassar o mandato do seu representante. Nos EUA, com algo entre 5% e 7% dos eleitores do distrito assinando a petição a iniciativa está qualificada para uma votação do distrito inteiro. Nesse sistema, portanto, todo mundo tem o poder de propor mudanças e ser obrigatoriamente ouvido mas ninguém tem poder suficiente para se impor aos demais.
Brasilia é o passado. A corte é o pântano. Dali não sairão senão mais sapos. O redirecionamento do olhar da nação para um futuro em torno do qual se unir depende essencialmente do redirecionamento do olhar da imprensa do eterno “mais do mesmo” de Brasilia para os modernos métodos de domesticar políticos em uso pelo mundo afora. É lá que a resposta está.
Democracia à mão armada – 9
21 de agosto de 2013 § 31 Comentários
(9º de uma série sobre voto distrital com recall. O 8vo está neste link)
Desde ontem está vigorando no Rio de Janeiro a Operação Lixo Zero. Quem jogar lixo na rua pagará multa que pode variar de R$ 150 por uma “bituca” de cigarro até R$ 3 mil para quem criar áreas de despejo clandestinas. Quem não pagar terá seu nome inscrito na Serasa e perderá o acesso ao crédito.
Antes mesmo de a operação começar o lixo recolhido nas ruas da cidade já diminuiu mais de 1/3. É que 900 fiscais da Comlurb há dois meses vêm dando flagrantes nas pessoas, orientando-as sobre o que fazer com cada tipo de descarte e avisando que a partir de 20 de agosto as multas virão. Essa abordagem honesta certamente contribuiu para mobilizar a população. Mas o peso da multa e a antevisão da inexorabilidade com que será aplicada, subentendida nessa preparação, conquanto bem-educada, é que foi o argumento decisivo para fazer a coisa pegar.
A civilização não é muito mais que a presença da polícia. Falo em sentido figurado, mas nem tanto. Impor a lei é remédio que funciona para o Rio e para Nova York. Funciona para o Zé da Silva e para o Steve Jobs. Funcionaria também, portanto, até para os nossos políticos.
Ao contrário do que se costuma dizer por aí, esse tratamento dispensa uma cultura e um processo civilizatório prévios. É aplicar e manter a pressão que a coisa acontece. Se a lei for imposta com a inexorabilidade com que os radares impõem a velocidade máxima nas estradas, o resultado é imediato e infalível. Todo mundo passa a respeitar.
O inverso também é verdadeiro, independentemente de diferenças culturais e de suposto grau de civilização.
Steve Jobs era visto como uma espécie de novo Leonardo da Vinci. Ele reunia numa mesma embalagem o suprassumo da tecnologia e do design modernos e revolucionou nossa vida. No entanto, bastou que a internet proporcionasse a exportação do trabalho sem que as legislações nacionais fossem junto e lá se foi o nosso Da Vinci explorar, até o limite dos suicídios em massa, a miséria e a ausência de direitos dos filhos dos antigos “paraísos socialistas” e fabricar nossos lindos iPhones e iPads na China, pagando salários de fome e oferecendo condições de trabalho que nos EUA o levariam à cadeia.
A mesmíssima coisa aconteceu com os mais refinados designers europeus. Por mais “civilizados” e “politicamente corretos” que sejam em seus próprios países, assim que se certificaram de que podiam fazer isso impunemente, bateram-se todos para as Bangladesh da vida para produzir sua moda cool com mão de obra faminta naqueles tugúrios que a gente vê desabar sobre as pessoas na TV.
É isso que quero dizer quando afirmo que civilização é, essencialmente, a presença da polícia. E que, se instituirmos uma polícia para fiscalizar cada passo dos nossos políticos e eles tiverem a certeza de que cada vez que jogarem contra nós serão punidos, seu comportamento mudará da água para o vinho a partir do mesmo minuto em que tal certeza se instalar.
Essa polícia somos nós mesmos, os eleitores, e o que falta é apenas armar a nossa mão.
Quando Samuel Colt inventou seu famoso revólver de seis tiros num mundo em que mandava quem tinha a mão mais pesada, a propaganda para vendê-lo era assim: “Deus fez os homens diferentes, Sam Colt tornou-os iguais“. Pronto! O mundo não estava mais dividido entre grandalhões e fracotes. Com todos andando armados, era melhor que cada um respeitasse o outro.
O que arma a mão dos eleitores e faz os políticos passarem a respeitá-los é o instrumento simples do voto distrital com recall. Nele cada cidade, cada Estado ou o País inteiro, nas eleições para cargos federais, é dividido em distritos eleitorais. O distrito é definido, nas cidades, pela divisão do número de eleitores pelo número de vereadores, e pelo delineamento de alguma unidade geográfica – bairro, conjunto de bairros, zona da cidade – em que o número de eleitores se aproxime dessa fração ideal. Os distritos e zonas eleitorais, na verdade, já estão mais ou menos definidos no sistema de hoje. Só não se traduzem em poder algum para os eleitores.
No sistema distrital com recall cada candidato só poderá concorrer aos votos de um determinado distrito. O primeiro turno extrai os dois mais votados. O segundo fecha a disputa. O mesmo raciocínio se aplica aos Estados, para as eleições estaduais, e ao País inteiro nas federais.
Com isso, fica-se sabendo exatamente quem representa quem em cada Câmara Municipal, Assembleia Legislativa ou no Congresso Nacional. A partir daí, qualquer cidadão de um distrito que vir razões para tanto pode iniciar uma petição de recall do seu representante, pela razão que entender suficiente.
Se colher entre seus pares o número de assinaturas estabelecido na lei para esse efeito – algo que varia entre 5% e 7% nos países onde o sistema já vigora -, consegue homologar o recall e o Estado é obrigado a patrocinar com verba idêntica a campanha contra e a campanha a favor da derrubada desse representante.
É feita, então, nova votação só nesse distrito para substituir o político em questão. Não são necessárias manifestações gigantes nem pedidos a colegas pouco dispostos a criar precedentes que possam voltar-se contra eles próprios. O resto do País pode continuar trabalhando em paz. Mas o político defeituoso é recolhido exatamente como no recall de automóveis, “para evitar um desastre“, e, se for o caso, entregue à Justiça comum para posteriores deliberações.
Inventado com as características que tem hoje na Suíça em meados do século 19 e implantado em todas as democracias desenvolvidas a partir do início do século 20, esse expediente simples reduz a corrupção em pelo menos 80% e arma a cidadania para impor, daí por diante, todas as reformas de que sentir necessidade. Muitos abrem a lista, nesta segunda rodada, exigindo a despartidarização das eleições municipais de modo a quebrar o poder de chantagem de velhos caciques e garantir transfusões regulares de sangue não contaminado na política.
O Brasil não precisa mais que isso para começar a andar só para a frente.
TODA A SÉRIE SOBRE VOTO DISTRITAL COM “RECALL”
https://vespeiro.com/2013/08/21/democracia-a-mao-armada-9/
https://vespeiro.com/2013/08/14/a-travessia-do-deserto/
https://vespeiro.com/2013/08/02/porque-nao-ha-perigo-no-recall-7/
https://vespeiro.com/2013/07/23/recall-sem-batatas-nem-legumes/
https://vespeiro.com/2013/07/20/discutindo-recall-na-tv-bandeirantes-6/
https://vespeiro.com/2013/07/15/mais-informacoes-sobre-a-arma-do-recall/
https://vespeiro.com/2013/07/12/voto-distrital-com-recall-como-funciona/
https://vespeiro.com/2013/07/10/a-reforma-que-inclui-todas-as-reformas/
https://vespeiro.com/2013/06/25/voto-distrital-com-recall-e-a-resposta/
A travessia do deserto – 8
14 de agosto de 2013 § 14 Comentários
(8º de uma série sobre voto distrital com recall. O 7mo está neste link)
As manifestações de junho terão sido só um ponto fora da curva se não surgir um mote capaz de dar um foco a toda aquela energia positiva e motivar os seus protagonistas originais a acreditar que voltar às ruas pode servir a algum propósito útil.
A máquina de moer esperanças do Sistema trabalha rápido para isolar e destruir o “corpo estranho” que invadiu, ameaçando saneá-lo, o caldo de cultura de que se nutre a luta pelo poder entre nós há 513 anos e restabelecer a tranquilidade do establishment.
Passado o choque da perda do controle das ruas as viúvas das manifestações “de griffe” estilo século 20 tratam de usurpá-las e devolvê-las ao serviço dos que vêm desde sempre se revezando no poder. Embora as mirradas “manifestações” aparelhadas que se seguiram às originais sejam falsificações grosseiras demais para convencer quem quer que seja de que não fazem parte desse mesmo “vale tudo” que constitui o pouco que o Brasil inteiro, com exceção do irremediavelmente podre, sabe com certeza que não quer mais, há que se recordar que não tem sido pelo convencimento mas sim pelo cansaço que eles têm conseguido prevalecer há tanto tempo.
No mais, segue o baile: a ala radical trabalha para rebaixar as defesas do país contra golpes plebiscitários enquanto a frente “política” vai cevando na corrupção os vendedores de governabilidade e trabalhando para quebrar a fibra moral da Nação. A exumação do escândalo do Cartel do Metrô de São Paulo atingindo todas as figuras de proa vivas e mortas do PSDB é o exemplo mais recente. São fatos ocorridos entre 1996 e 2007 investigados e divulgados na época pelos governos dos Estados Unidos e da Alemanha, mas que vêm a calhar nesta emergência para o esforço permanente do PT, não para reduzir a corrupção mas para zerar por baixo o seu handicap negativo de campeão incontestável da modalidade pelo mote oficializado por Lula desde o Mensalão: “Sim, nós somos. Mas quem não é”?
Já os enamorados do nada, dos “Black Blocs” da vida com suas máscaras negras aos “Anonimous”, contrafação ultra informatizada dos primeiros com suas máscaras brancas, não são novidade. Não ha porque temê-los para além do que possam perpetrar com as próprias patas ou com seus “malware”. O anarquismo é uma constante histórica que tem um apelo inicial sedutor (“Ay gobierno? Soy contra!”) mas que não tem um projeto de poder. Por isso, no seu radicalismo nihilista, consegue no máximo sistematizar o terrorismo – hoje praticado também e principalmente no ambiente virtual – durante períodos curtos de tempo.
Também eles contribuem, porém, para afastar do movimento de junho a camada intermediária da classe média rebelada que, mesmo avessa “à bagunça”, reconheceu-se naquelas manifestações e simpatizou com elas ainda que hesitando em sair às ruas.
A última pesquisa é inequívoca. Dilma recomeça a subir. O PSDB cai. Marina Silva e Eduardo Campos sobem ainda, mais por não terem tido a oportunidade de decepcionar do que por qualquer virtude especial reconhecida, enquanto os totalmente desiludidos seguem na faixa de quase 1/5 do eleitorado.
Ou seja, a negação de “tudo isto que está aí” ainda cresce; os miseráveis, que chegaram a balançar, na dúvida começam a voltar a se abrigar na segurança da esmola; os que anseiam por mudanças reais continuam órfãos de pai e mãe.
Nada que prenuncie a visão da Terra Prometida…
Se ha uma coisa sobre a qual não pairam dúvidas desde o primeiro momento é que o repertório doméstico de expedientes políticos e remendos institucionais está definitivamente esgotado.
Este é, aliás, o único ponto incontroverso deste movimento.
A imprensa, única instituição democrática teoricamente isenta da pressão direta da luta pelo poder, no entanto, tem restringido o escopo do seu trabalho de reportagem às nossas fronteiras físicas e ao repertório exaurido das “fontes” viciadas da discussão política doméstica onde já se sabe que as respostas não podem ser encontradas apesar de todas as facilidades para expandir essa pesquisa para experiências mais avançadas de democracia que a rede mundial oferece hoje.
A solução para o impasse brasileiro terá de vir do vasto rol dos arranjos democráticos “nunca antes experimentados na história deste país” no qual podem ser incluídos quase todos os que constituem os fundamentos básicos de uma democracia sem aspas.
A lista é vasta como ilustrava bem a multiplicidade dos cartazes que direta ou indiretamente a eles se referiam nas manifestações originais. E esta é a primeira das dificuldades. Por onde começar? Como reduzir tudo quanto nos falta conquistar a algo em torno de que possa haver uma decisão “sim ou não”?
A resposta está em focar essa busca na identificação de um método de produção de instituições e de resultados mais sadio que o que temos e não na repetição do erro de sempre de inscrever os direitos conquistados pelas sociedades que os alcançaram porque adotaram esse método numa lista de desejos que a nossa fábrica de instituições defeituosa não está aparelhada para produzir.
Assim como nada define melhor o divórcio do Brasil do Terceiro Milênio com este que ainda se arrasta por aí do que o “Não nos representa!” que atroa as ruas desde junho, nada pode responder melhor a esse apelo do que transferir das mãos dos interessados em que nada mude para as dos que precisam desesperadamente de mudanças a iniciativa e o controle final do processo de reformas que teremos de iniciar o quanto antes se quisermos manter a esperança de não sermos definitivamente condenados à periferia do mundo.
É exatamente isso que faz o sistema de voto distrital com recall: ele inverte a ordem que vivemos hoje e põe nas mãos de cada cidadão o poder de iniciativa e de controle do desfecho final de cada ação do poder público que possa afetar a sua vida, sem deixar nas mãos de ninguém poder sobrando para desaguar, nem em imposições, nem em arbítrio e, assim, arma a cidadania para forçar os legisladores e o governo a fazer, daí por diante, todas as reformas que lhe parecerem necessárias.
Artigo publicado em O Estado de S. Paulo de 14 de agosto de 2013
TODA A SÉRIE SOBRE VOTO DISTRITAL COM “RECALL”
https://vespeiro.com/2013/08/21/democracia-a-mao-armada-9/
https://vespeiro.com/2013/08/14/a-travessia-do-deserto/
https://vespeiro.com/2013/08/02/porque-nao-ha-perigo-no-recall-7/
https://vespeiro.com/2013/07/23/recall-sem-batatas-nem-legumes/
https://vespeiro.com/2013/07/20/discutindo-recall-na-tv-bandeirantes-6/
https://vespeiro.com/2013/07/15/mais-informacoes-sobre-a-arma-do-recall/
https://vespeiro.com/2013/07/12/voto-distrital-com-recall-como-funciona/
https://vespeiro.com/2013/07/10/a-reforma-que-inclui-todas-as-reformas/
https://vespeiro.com/2013/06/25/voto-distrital-com-recall-e-a-resposta/
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