Marina e a democracia: uma retratação
4 de setembro de 2014 § 12 Comentários
Estou devendo desculpas aos leitores do Vespeiro e uma retratação do que disse no artigo anterior a respeito do programa de governo de Marina Silva.
Com compromisso fora de São Paulo marcado para a terça e quarta-feiras passadas passei o fim-de-semana escaneando os jornais em busca de análises do programa de governo da candidata, em especial no que diz respeito à questão que mais preocupa na eleição deste ano que são os mecanismos de “democracia direta” e de “governo de participação social” que podem jogar o Brasil num desvio sem retorno.
Os que o PT quer impor ao Brasil com o Decreto 8243 assinado ha quase quatro meses por Dilma Rousseff, como já tive oportunidade de alertar em vários artigos, revogam o sistema republicano e a democracia representativa (não ha outra possível hoje) no Brasil e o fato de Marina Silva te-lo elogiado diretamente, ainda que retratando-se logo depois, foi o que me endereçou para o engano, que completou-se, na sequência, por ter eu me baseado em resumos do programa então recém publicado para o artigo que, ainda na segunda, deixei programado para publicação na terça.
De volta a São Paulo, entreguei-me a leitura do original do Plano de Ação para Mudar o Brasil, da coligação Unidos pelo Brasil, o programa de governo de Marina Silva, que alterou substancialmente a impressão formada por essas leituras de segunda mão.
O primeiro capítulo, Estado e Democracia de Alta Intensidade, divide-se nos sub-temas “Reforma Política”, “Reforma Administrativa”, “Novo Federalismo” e “Política Externa”.
Para irmos diretamente ao que interessa, encontrei diferenças fundamentais entre a proposta nitidamente antidemocrática, de inspiração bolivariana e francamente desonesta visando antepor ao Congresso Nacional eleito pelo sufrágio universal “movimentos sociais” articulados e escolhidos pelo partido do decreto do PT e as propostas – “sonháticas” ou não vai de cada um avaliar – incluídas no plano de governo de Marina Silva que vai beber nas fontes holandesas e nórdicas da “democracia em rede” que inspiram o Partido Pirata, com versões em diversos países europeus e até no Brasil.
“Democratização da democracia pressupõe combinar os movimentos sociais históricos com as mobilizações que surgem por meio das novas tecnologias. (…) As tecnologias da informação e comunicação são, portanto, potenciais aliadas em um processo de mudança. (…) Por meio da democracia digital, podemos radicalizar a transparência e o controle da ação governamental, missão para o curto prazo”, reza o programa de Marina, que fala até na criação de “aplicativos” para promover essa forma de participação.
O objetivo geral desse recurso entretanto, repete-se várias vezes de forma direta ou indireta ao longo do texto, é impor “accountability” aos representantes eleitos, o que o diferencia claramente do projeto do PT, cujo objetivo é exatamente o contrário: acabar com os poucos recursos de responsabilização de representantes e governantes que sobram em pé no Brasil ao fim de 12 anos de desmontagem dos poderes Legislativo e Judiciário. O de Marina é um instrumento de pressão para ser exercida sobre os representantes eleitos; o do PT uma fórmula para substituir os representantes eleitos.
A fórmula de Marina tem em comum com as que a inspiraram, a imprecisão na definição das regras necessárias para garantir “accountability” aos próprios processos de participação direta na política, no sentido de sua representatividade e legitimidade, o que a deixa exposta a riscos que não passam muito pela lista das preocupações centrais dos eleitores dos países nórdicos ou da Holanda onde os fundamentos básicos da democracia são tidos como garantidos, irremovíveis e não são passíveis de qualquer contestação.
Aqui ainda não é assim. De modo que se mesmo os europeus namoram tentações que é sempre melhor manter fora de alcance porque o poder é o poder e a ocasião faz o ladrão, nós temos multiplicadas razões para mante-los o mais longe possível do alcance dos aventureiros que rondam por aqui e não hesitariam em lançar-lhes mão.
A regra de maioria não é, certamente, perfeita, daí ser uma preocupação central de toda democracia sem aspas garantir os direitos das minorias, mas é a única possível num sistema de democracia representativa, de resto inescapável no contexto de multidões do mundo de hoje. Qualquer outra abre brechas para o autoritarismo e para coisas piores como as que o modelo do PT tem em vista.
A regra de maioria é, enfim, a única que resolve o problema de garantir que todos participem ou possam participar das decisões – de iniciativa popular, via plebiscitos, ou de iniciativa parlamentar, pela ratificação por referendo popular – que só podem ser legitimadas pelo voto universal cruzado com o critério de maioria.
O programa de Marina fala em “permitir a convocação de plebiscitos e referendos pelo povo e facilitar a iniciativa popular de leis, mediante redução das assinaturas necessárias e da possibilidade de registro de assinaturas eletrônicas”. Esse direito já está incluído na Constituição de 88. A quantidade de assinaturas, desde que numa proporção razoável, não é o principal problema. Já a certificação de “assinaturas eletrônicas” sim, é altamente problemático pelas vulnerabilidades que, de resto, afetam também as nossas “máquinas de votar”, e mais algumas.
O importante é que a lei aprovada por esse meio seja debatida em campanhas contra e a favor igualmente financiadas pelo Estado nos meios de comunicação de massa, e que fique garantido que todos poderão votar a sua aprovação ou rejeição (e não só os “movimentos sociais” escolhdios pelo partido). E mais importante ainda, seria garantir que o que ela decidisse não pudesse ser emendado e regulamentado pelo Congresso até a inversão da vontade expressa da população, fonte original da legitimidade de qualquer lei, como continua podendo acontecer aqui, fato de que é prova e exemplo o Estatuto do Desarmamento que, mesmo rejeitado nas urnas, foi imposto à população por um Congresso que não respeita a vontade popular.
O projeto de Marina não propõe esses aperfeiçoamentos e apenas chove no molhado repropondo o que já está vigente desde 88.
O complemento negativo a esse instumento descrito no primeiro capítulo vem no sexto e ultimo “Eixo”, batizado “Cidadania e Identidades”, que derrama um longo e confuso palavrório a respeito das “minorias” de sempre, que devem ter tratamento especial ou porque são credoras de “dívidas históricas” ou, simplesmente, porque estão na moda.
O capítulo é bastante impreciso mas sugere que os membros de tais grupos, que como lembrei no artigo anterior a este do Vespeiro, votam como todos os brasileiros, devam ter poderes que os demais brasileiros não têm para multiplicar sua representação.
O projeto não chega, entretanto, a formular nada de muito preciso nesse sentido o que põe a coisa na gaveta dos discursos de campanha bons para enganchar certos ouvintes mas vazios de maior significado.
Ha, finalmente, até uma proposta de impacto talvez maior do que suspeitam os formuladores do plano, dada a discrição com que a incluiram no conjunto, que é a de “permitir candidaturas avulsas aos cargos proporcionais mediante o atendimento a requisitos a definir”.
Essa medida é fundamental para quebrar o domínio dos caciques dos partidos sem o aval dos quais ninguém pode entrar na política brasileira hoje. Eles são os porteiros do filtro de seleção negativa que garante a “pureza” do DNA corrupto da nossa política, e abrir uma porta lateral é o unico meio de quebrar-lhes a hegemonia e permitir a entrada de ar fresco no sistema. Essa medida generalizada para o nível municipal onde as eleições passaram a ser apartidárias nos Estados Unidos, foi fundamental para reduzir a corrupção e renovar a política naquele país. Deixou de ser obrigatório compor-se com velhas marafonas para ingressar no sistema.
Resumindo, então: os mecanismos de “participação popular” propostos no programa de Marina Silva não parecem ter o mesmo DNA antidemocrático dos propostos pelo PT, embora se aventurem em terreno perigoso se não incluirem todas as definições necessárias para garantir a participação de todos os brasileiros neles e, assim, garantir sua legitimidade e mudar-lhes o sinal de negativo em positivo.
A forma consagrada de se conseguir tudo isso, além de um bom grau de saudável particularização de problemas que não são iguais para todos os brasileiros, e muito mais daí por diante como já se explicou incontáveis vezes aqui no Vespeiro, é instituir o voto distrital com recall depois de reconstituir o sistema federativo, proposta que consta com algum detalhe e demonstrações de empenho no programa de Marina.
Para esgotar a crítica a esse primeiro “Eixo”, cabe registrar algumas palavras sobre os demais sub-temas incluídos nele.
Em “Reforma Administrativa”, vai-se pelo diagnóstico correto com a descrição das consequências da ausência de meritocracia no sistema, mas “amarela-se” na hora das propostas concretas para esse contingente tão poderoso e numéricamente muito mais significativo do que deveria ser numa economia saudável, que é o universo do funcionalismo. Fica-se no mesmo “choque de gestão” de Aécio que o projeto começa por criticar como insuficiente e na proposição de metas a serem cumpridas, propostas que mudam alguma coisa se o governante de plantão tiver vocação para Sísifo, mas que são semi-inócuas num contexto de indemissibilidade dos funcionários públicos. É o que é possível fazer no mundo real. Mas neste capítulo o programa de Marina acaba por fazer concessões vergonhosas sugerindo que o proprio funcionalismo continue decidindo “democraticamente” (para quem cara-pálida?) o seu próprio destino, ou seja, como e quando entrarão em nossos bolsos.
Em “Novo Federalismo” ha um diagnóstico correto e uma ou duas medidas iniciais concretas descritas com numeros. Mas de qualquer maneira ele ajuda a corroborar a impressão de que não ha um viés antidemocrático no conjunto.
Finalmente em “Política Externa”, de longe a peça mais consistente, objetiva, assertiva e bem escrita do documento, faz-se uma crítica contundente à ideologização e ao aparelhamento da política externa do PT para um projeto de poder e não para o interesse geral da Nação, e um minucioso roteiro para voltar a colocar a política externa a serviço do desenvolvimento nacional e de volta no figurino da tradição diplomática brasileira, um patrimônio nacional que o do PT foi o primeiro governo em nossa história a violentar frontal e brutalmente.
Também esse capítulo combina com o tom filo-democrático do cojunto.
Tudo isso considerado, retrato-me do artigo anterior. A proposição “Com o PT a certeza da venezuelização, com Marina livramo-nos desse pesadelo” continua sendo verdadeira, se tomarmos pelo valor de face o que está escrito no programa da candidata.
Marina e a democracia
2 de setembro de 2014 § 99 Comentários
Marina Silva oferece como a mais sólida chancela de sua candidatura o grupo com que sonha fazer-se acompanhar e não o que ela própria é ou pensa fazer, embora tenha opiniões muito firmes sobre as mais candentes questões em jogo nesta eleição.
Não é bom sinal.
Como ha um fator excruciante de exaustão moral com a bandalheira que está aí e uma grande massa de eleitores define seu voto por exclusão de defeitos e não por afirmação de qualidades do candidato, Marina Silva apresenta-se, espertamente, como quem pessoalmente não é nada apenas um terreno vazio em cima do qual poder-se-á erigir qualquer construção “dos melhores”.
Mas a verdade dos fatos é que Marina Silva nem é tão neutra — como comprova uma leitura atenta de seu Programa de Governo divulgado no fim de semana cheio de ingredientes que transformam o conteúdo no contrário do que quer fazer parecer sua publicidade de campanha — nem tão vazia de retrospectro quanto pretende parecer agora.
Na eleição de 2010, quando teve mais de 20 milhões de votos, poder-se-ia dizer que ela era o “Cacareco” – o rinoceronte do zoológico em que os paulistas enojados com a deterioração moral em que andava a política local podiam depositar impunemente seu voto de protesto na eleição de 1959. Não havia nenhuma esperança real de que ela fosse eleita em 2010 e assim foi nela que votaram todos quantos, já naquela altura, não se sentiam representados pelo modo PT de governar e nem pelos demais candidatos que se ofereciam ao eleitorado.
Desta vez é diferente. O contingente dos “não representados” mais o dos mal representados subiu para 76% do eleitorado (os que querem “mudanças” sem ter nenhuma ideia de quais segundo as ultimas pesquisas).
Desde 2010 Marina submergiu no limbo midiático. Salvo pela refrega perdida da “Rede“, só tem sido assunto para especialistas. Carona do PSB, nunca chegou a fazer campanha com suas próprias idéias. Por isso ressurge agora “nova” e desconhecida da grande massa dos brasileiros, menos pela embalagem que, tocada pelo incidente da morte espetacular de Eduardo Campos ganhou uma exposição na mídia que nem Dilma Roussef e seus 40 aliados conseguiram amealhar com todos os minutos de televisão que trocaram entre si no país onde eleição vence-se pelo tempo de prateleira na TV, posto que o exame e o debate de idéias entre candidatos é ferozmente censurado na mídia de massa.
É a tempestade perfeita!
Só que Marina Silva tem currículo, sim, e opiniões consolidadas pelo duríssimo cimento da mistura de fé com ideologia. Ela nasceu dentro do PT onde passou 20 anos militando. Comunga especialmente as idéias daquele partido que se referem ao “aperfeiçoamento da democracia” por expedientes plebiscitários e à “relativização” do direito de propriedade. Aplaudiu o Decreto 8243 de Dilma Roussef, antes de recuar avisada por seus marqueteiros do mal que qualquer lembrança de suas raízes petistas poderia provocar nessa sua imagem de “virgindade” mas – a cada nova declaração isso se confirma – continua nessa mesma linha.
Diz que quer criar “uma dmocracia de alta intensidade” que ninguém, nem ela mesmo, consegue explicar o que seja. Fala no assunto por vias tortas no programa de seu partido o que não é propriamente um sinal de boa fé, mas acaba sempre no mesmo ponto: quer “ação direta” (plebiscitos) para instalar “uma nova ordem constitucional” para a obtenção da qual o Congresso é visto como um empecilho. Afirma, como o pior PT, que “a representação não se dá de forma equilibrada, excluindo grupos inteiros de cidadãos como indígenas, negros, quilombolas e mulheres”. Como mesmo com todos esses grupos votando com o mesmo peso de qualquer outro brasileiro, do que é prova o fato desta eleição estar dividida entre duas mulheres, uma delas negra, Marina, como Dilma, continua a defini-los como “excluídos”, conclui-se que o que ela pretende fazer, como Dilma e como o pior PT, é dar aos “movimentos sociais” representando os cortes mais radicais desses segmentos, articulados pelo partido, um peso maior que o dos outros brasileiros nas decisões que podem alterar a Constituição e o regime republicano.
Como essa conta jamais fecharia considerada a regra de maioria, o jeito é suspender essa regra ou criar, como é o caso aqui, um filtro prévio da minoria a quem se quer entregar todas as decisões para conviver com um Congresso Nacional esvaziado de suas funções que o PT vem, ha 12 anos, “cevando” nas migalhas do banquete da corrupção, até que chegue o momento de dar-lhe o tiro de misericórdia.
Ninguém chorará por esse defunto, nem os próprios congressistas que, de tão concentrados em locupletar-se, não encontram tempo para reagir contra o decreto que anula suas funções e já está em vigor ha quase quatro meses.
Suas outras credenciais são igualmente duvidosas:
Marina Silva diferencia-se por quem se faz acompanhar? A sua empresária e os seus economistas de estimação são garantia do seu compromisso com a democracia?
Lula usou expediente semelhante quando assinou a “Carta aos Brasileiros” e embarcou Jose de Alencar, primeiro, e Henrique Meirelles, depois, na sua equipe.
Marina jurou exorcizar a “velha política” e as “aliancas entre contrários” que nos condenam ao toma-lá-dá-cá? Mas voa em aviões enlameados de “laranjas”; juntou-se ao PSB para manter um projeto pessoal de poder; transitou de inimiga jurada do agronegócio e dos transgênicos a aliada dos usineiros e “meio amiga” dos transgênicos de que “dá fé” Beto Albuquerque seu vice e seu contrário (enquanto aumenta o “quociente de produtividade” abaixo do qual pode-se desapropriar a terra alheia)…
A fórmula que vem funcionando para esvaziar Aécio – “Com o PT a certeza da venezuelização, com Marina livramo-nos desse pesadelo” – não se apoia, portanto, em nada de concreto.
Não ha 3a via. Nunca houve 3a via. O Brasil ainda vive num estágio onde o divisor de águas é aceitar ou não aceitar a regra do jogo democrático. Depois que resolver isso, poderá debater-se entre esquerdas e direitas ou entre esquerdas e meias-esquerdas democráticas.
Por enquanto não é o caso. Se ha algo que, até onde se sabe pelo que foi posto na mesa até hoje, não muda com a opção Marina ou o PT, é a intenção declarada de ambos de “resolver” os problemas que decorrem da escassez de democracia na política que se pratica no Brasil, com menos democracia ainda ou com democracia nenhuma.
O modelo honesto de participação popular
30 de agosto de 2014 § 9 Comentários
Publicado em O Estado de S. Paulo de 30/8/2014
Ha uma perigosa conversa de surdos no Brasil em torno dos conceitos de “democracia direta” e “governo de participação popular”.
A rejeição generalizada ao que a imprensa chama de “política tradicional” não significa a rejeição da democracia tradicional. É exatamente o contrário pois nenhum dos elementos que definem esse regime está presente na ordem institucional brasileira: não somos iguais perante a lei, não elegemos nossos representantes na base de “um homem, um voto” e nem vivemos numa meritocracia.
Enquanto o país não tomar consciência de que a droga institucional em que está viciado define-o como um doente grave de insuficiência democrática, e não o contrário, não se disporá a curar-se. Continuará, a cada crise, aceitando doses crescentes dos venenos populistas que ingere no lugar do remédio democrático até que a overdose de migalhas de “direitos adquiridos” sem fazer força acabe por matar definitivamente a moral e a economia nacionais.
Até agora só o PT mostrou que sabe para que quer a sua formula de “participação social”, sintomaticamente decidida sem a participação de ninguém, que faz do Congresso Nacional eleito por todos os brasileiros uma espécie de “rainha da Inglaterra” submetida a Organizações Não Governamentais Organizadas pelo Governo na sequência da “cristianização” do Judiciário que se seguiu ao julgamento do mensalão.
É historicamente justificável, aliás, que só quem se alinhe no campo antidemocrático tenha know how sólido sobre o que fazer na disputa pelo poder no Brasil posto que democracia, ao contrário das bugigangas institucionais vendidas pelos nossos camelôs da política, requer, sim, muita prática e muita habilidade e nós, lusófonos, não temos nenhuma.
O PT não só é versado na praxis autoritária que nós dividimos com os outros povos latinos e católicos, como é ultra especializado na vertente francamente antidemocrática dessa tradição representada pelo corporativismo ibérico, o expediente que mais refinou a prática de usar as expressões e as ferramentas da democracia para impedir a sua entrada no território nacional e matar qualquer semente dela que, por acidente, chegue a germinar no solo pátrio.
As demais correntes políticas brasileiras – e tanto mais quanto mais sinceramente apegadas forem aos dogmas da tolerância e do respeito pela diferença e, consequentemente, da liberdade de pensamento e expressão – tateiam no escuro da nossa completa ausência de experiência prática no assunto, agravada pelo nosso isolamento linguístico, na sua busca pelo aperfeiçoamento da nossa democracia, penumbra esta que a imprensa não tem ajudado a iluminar em função da regra que se impõe de só mostrar das democracias mais avançadas o que elas produzem de pior.
Marina Silva não sabe qual tipo de “participação popular” deseja e nem exatamente para que, podendo facilmente tornar-se vítima de enganos fatais como aquele em que quase embarcou comprando por lebre o gato que Dilma vende no Decreto 8243 (integra aqui). Alertada recuou, e desde então trata de produzir o seu modelo de “participação” para não mostrar-se surda à demanda posta por 76% do eleitorado, o que nos põe sob risco iminente.
Já Aécio, o único que não hesita na afirmação de sua fé anti-autoritária, sabe que é gato a lebre de Dilma mas não sabe apontar com precisão o que é que define essa falsificação. Na dúvida abraça a metade inócua da solução certa com sua proposta de voto distrital “misto”, apodo que lhe tira o componente mais forte de participação popular, e com isso perde não só a oportunidade de propor uma solução democrática consagrada capaz de revolucionar a política brasileira como também a de acrescentar ao seu discurso a contundência reformista que lhe falta.
O primeiro pingo a ser reposto nos “is” para retomar essa questão em melhores termos é estabelecer definitivamente que, ao contrário do que sugere o blá-blá-blá geral, só a democracia “tradicional”, que tem obrigatoriamente de ser representativa no contexto de multidões em que vivemos, garante a real participação da sociedade na definição do seu próprio destino político, desde que legitimada pelo sufrágio universal.
O segundo é lembrar que garantir o controle do representante pelo representado sempre foi o calcanhar de Aquiles do regime tendo posto a perder as suas duas primeiras tentativas de caminhar pela Terra – em Atenas e em Roma – mas que na terceira, iniciada na Inglaterra e consolidada em seu prolongamento americano, conseguiu-se, após uma série de tropeços, uma solução boa o bastante para reduzir a corrupção a ponto de extinguir a miséria e dar flexibilidade ao sistema de modo a produzir a mais próspera e progressista das sociedades que nossa espécie jamais reuniu.
Essa solução, que pressupõe o restabelecimento do federalismo e da independência entre os tres poderes da Republica que nós já tivemos e nos foram suprimidos, é o voto distrital com recall ou “retomada”, que arma a mão do eleitor para cassar, a qualquer momento, o mandato do representante que não honrar a sua representação sem provocar nenhuma perturbação maior no bom andamento dos negócios públicos, o que põe todos os eleitores participando de forma transparente e inverte radicalmente a hierarquia das relações entre cidadãos e servidores públicos.
Nesse modelo cada candidato só pode concorrer por um distrito definido e qualquer eleitor desse colégio eleitoral pode iniciar uma petição pela “retomada” do mandato condicionalmente concedido ao seu representante que, se aprovada por seus pares numa votação circunscrita, manda-o de volta para casa ou deixa-o à disposição do Judiciário já como cidadão comum.
Isso põe os políticos na dependência da nossa boa vontade e não o contrário como é hoje, o que, de saída, obriga-os a jogar a nosso favor, introduz a meritocracia no serviço público e abre as portas para todas as demais reformas que nos parecerem necessárias que, então, poderão ser empurradas pela formidavel arma da remoção expressa de todos que se lhe opuserem de dentro das nossas casas legislativas.
Isso opera milagres! O resto é tapeação.
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22 de agosto de 2014 § 7 Comentários
Artigo para O Estado de S. Paulo de 22 de agosto de 2014
Passados nove dias da morte de Eduardo Campos em que a imprensa serviu doses maciças de revisões e análises da crucial eleição de 2014 onde todos se apresentam como representantes da “mudança”, nenhum fato que possa servir de referência foi fincado fora do terreno pantanoso da propaganda em que tudo continua boiando para balizar a eleição por esse critério que a unanimidade dos candidatos adicionou pelo menos ao rótulo da embalagem com que se apresenta ao público.
Mudança em relação a quê?
Desde as ruas de 2013 não ha político nem marqueteiro que tenha conseguido formular qualquer coisa de convincente.
Mas existe uma chave para esse mistério. A única mudança que não merece aspas nem é unanimidade entre todas as que aparecem nas propostas dos candidatos é aquela que, inexplicavelmente, menos para os seus protagonistas, ninguém menciona.
Mais do que propor, o partido de Dilma Rousseff impôs à mesa a carta de uma mudança daquelas que é para ser infinita enquanto durar. Continua em vigor, fazendo tres meses agora, o Decreto Presidencial nº 8243, de 25 de maio de 2014, assinado por ela, que revoga o sistema representativo eleito pelo voto universal e tira do Congresso Nacional as prerrogativas que são exclusivas dele numa democracia.
Não foi a única tentativa. Mas entre esta e a primeira muito mais coisa mudou no Brasil do que a incorporação de suites especiais ao Presídio da Papuda.
A medida da gravidade da intoxicação que acomete o país não está no fato do PT ter apresentado uma nova modelagem do seu DNA antidemocrático desde sempre conhecido mas sim na enormidade que é, depois de impo-lo ao Brasil na forma de um édito de sua majestade em pleno Terceiro Milênio ele não ter sido mencionado uma única vez em todo o debate eleitoral, nem pelos candidatos, uns interpelando os outros, nem pela imprensa cobrando de cada um que se posicione em relação a ele.
Quem, afinal, está em desacordo com isso?
A docilidade com que o Poder Legislativo segue permitindo que o seu pescoço permaneça acomodado no cêpo de uma guilhotina com a lâmina já destravada, posto que decretada e não meramente proposta a execução está, é de arrepiar os cabelos.
O Congresso Nacional, vá lá, é o que foi feito dele. Mas sendo ainda uma criatura da democracia, sempre acaba dando sinais de vida desde que a imprensa cumpra a sua função de fustigá-lo com os necessários rigor e pertinácia, tanto que esboçou reação antes que a Copa esvaziasse a pressão.
É assim mesmo que funciona.
Perseguir a corrupção faz, sim, parte do “metier”. Mas o tema da quantidade de máculas carregada por cada candidato num quadro institucional que não admite trânsito isento de vício é insuficiente para criar uma distinção livre de argumentações teóricas desviantes, ainda que as diferenças de grau possíveis nesse quesito e suas funestas consequências sejam as que se conhece. Essa linha de ação, portanto, mais serve para igualar coisas que são diferentes do que ajuda o eleitor a diferenciá-las. Não é por acaso que o “Eu sou, mas quem não é”? foi transformado, desde a segunda semana do Mensalão, praticamente na divisa armorial do brasão do lulismo.
Ha valores muito mais importantes em jogo. E, no entanto, Eduardo Campos morreu a 53 dias da decisão sem nunca ter sido instado a nos contar como se posicionava diante deste édito tão cheio de consequências definitivas da contendora de quem já tinha sido um aliado e um servidor. No país dos 30 e tantos partidos políticos, quase todos “socialistas”, aliás, qual seria a diferença entre o “socialismo” do PT, o “socialismo” de Eduardo Campos e o “socialismo” de Marina Silva?
Ninguém disse nem jamais foi-lhes perguntado.
O de Aécio Neves declara-se formalmente “democrático”, “social democracia” que seria. Mas, mesmo a ele, como aos demais, não conviria peguntar diretamente, olho no olho do eleitor, como se posicionam em relação ao menos a algumas daquelas 521 alterações na Constituição da Republica que integram o “Plano Nacional de Direitos Humanos”, programa oficial de governo do PT que, segundo a nova “Política Nacional de Participação Social” decretada pelo Palácio, passarão a ser implementadas ou não segundo o que for decidido entre o presidente e os “movimentos sociais” que o Secretário Geral da Presidência houver por bem selecionar?
Concordam, por exemplo, que todos os professores e alunos do país sejam submetidos a um programa de reeducação para entender qual a nova interpretação que o governo exige que se aceite em ordem unida, do conceito de direitos humanos? Estão de acordo com que a confirmação ou não da posse de propriedades rurais ou urbanas invadidas deva sair das mãos do Poder Judiciário e passar às dos “movimentos sociais” que tomarem a iniciativa de invadí-las? Que todas as polícias do país passem a depender e obedecer exclusivamente ao presidente? Que os ungidos do senhor secretário passem a determinar que leis os representantes eleitos de todos os brasileiros poderão examinar, o que cada um de nós poderá ou não ler e a imprensa publicar?
E à própria candidata à reeleição, não cabe pedir que nos explique, ponto por ponto, por qual tipo de matemática pode-se demonstrar ao eleitor que as novas Organizações Não Governamentais Organizadas pelo Governo (ONGOGs) o representam melhor que o representante em quem ele votou?
É da permanência ou não do Brasil no campo democrático que se trata. Ha 12 anos o país tem vivido num empurra-empurra para fora, mediante todo tipo de expediente tipificado ou não no Código Penal, e de volta para dentro dele na undécima hora, e é isto que explica porque está ficando tão difícil trabalhar aqui. E a cada tentativa abortada o elemento de resistência tem sido sumariamente eliminado, tenha o peso institucional que tiver. O que esta eleição pode mudar é acabar de uma vez por todas com esse tipo de mudança, reverter os pedaços dela que nos foram impingidos ilegalmente e reafirmar como indestrutível o pacto deste país com a democracia para que todos possamos recomeçar a trabalhar em paz.
Ensaio para um inferno
21 de junho de 2014 § 2 Comentários
Em São Paulo, a mega metrópole de 10 milhões de habitantes cujo Plano Diretor está sendo desenhado com o objetivo precípuo de consolidar as cinco últimas invasões do MTST, o ensaio do Brasil para o Inferno prossegue livre, leve e solto. Quinta-feira, dia de jogão da Copa no Itaquerão, aquela meia duzia de sempre manteve a cidade bloqueada por quase cinco horas ininterruptas, promovendo depredações selvagens a gosto, sem que ninguém os perturbasse.
O séquito de reporteres e cinegrafistas acompanhando a turba era quase tão numerosa quanto ela de modo que a multidão pacífica pode observar em detalhe durante toda a metade de um dia, de dentro de suas casas, o que é que vem vindo por aí. Quem insiste em trabalhar, em ir e vir pelas ruas para buscar a vida, então, esses são os alvos prioritários.
Não passarão!
E se estiverem carregando bandeiras verdes e amarelas, então, pau neles! Só as vermelhas ou as negras são admitidas. Só a violência — com ou sem “causa” — tem salvo-conduto.
Passadas quase cinco horas de livre exercício de selvageria a PM se deu o incômodo de apagar incêndios, juntar cacos e ir desbloquear esta ou aquela avenida barricada. Houve duas ou tres prisões e, mesmo com tão poucas, foram apreendidos socos-ingleses, facas e o resto dos instrumentos do costume. O tipo de “equipamento” atesta a boa formação moral dos seus portadores.
O comandante da PM de São Paulo, não obstante, explicou aos contribuintes que “assinou um termo de compromisso com ‘as líderanças’ dos ‘manifestantes’ comprometendo-se a não incomodá-los” nem mesmo com uma supervisão direta.
E porque não, afinal? Não são eles os mesmos que a presidente da Republica convoca volta e meia para sentar-se à mesa do poder em rodas de conversas amenas depois de badernas até maiores que as desse dia? Não são eles os mesmos a quem o mais recente decreto de sua excelência determina que seja entregue a co-governança da Nação passando por cima dos poderes Legislativo e Judiciário?
No meio deles esgueiram-se os mascarados de sempre, à procura de um cadaver. Não vai demorar que o produzam. Será o primeiro de muitos porque, como o mundo nos prova todos os dias e a quinta-feira passada confirmou mais uma vez, a civilização não é muito mais que a presença da polícia e nós já alcançamos o estágio em que os comandantes da polícia é que dão a ordem para que ela se faça ausente, seguindo, por sua vez, as ordens dos comandantes dos comandantes da polícia.
Isso acaba mal! Acaba muito mal!
Não custa repetir aquilo que a humanidade já sabe desde a Bíblia: a coisa mais fácil do mundo é abrir as portas do Inferno; e a mais difícil, é cercar todos os diabos fugidos, tocá-los de novo lá pra baixo e trancá-la outra vez.
Será que teremos mesmo de ser os próximos a reconfirmar o que desde sempre se sabe? A sociedade brasileira terá mesmo perdido a energia que se requer para impedir que seja ela a próxima a se auto-imolar?
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