Racismo dublado
8 de dezembro de 2020 § 33 Comentários
Se há controvérsia quanto ao diagnóstico do racismo no Brasil o erro do remédio “de uso tópico” prescrito – as “ações afirmativas” ancoradas no racismo institucionalizado que pune ou premia pessoas segundo a cor da sua pele – é um fato medido.
Toussaint-Louverture, no Haiti de 1791-94, comandou a primeira força na Terra a derrotar Napoleão Bonaparte com a bandeira da liberdade. Mas, sem a democracia e a elevação do nível geral de educação que só a democracia promove o Haiti que ele fundou, depois de 16 governantes depostos ou assassinados nas disputas pelo poder, acabou nas ditaduras ferozes dos Tonton Macoute do “Papa” e do “Baby Doc” e, desde então, vive mergulhado na corrupção generalizada, desde sempre a doença que mais mata no mundo.
A exploração do homem pelo homem, que levava africanos a entregarem africanos aos traficantes de escravos das Américas, desaguou na exploração de ex-escravos por ex-escravos no país nascido de uma rebelião de escravos.
Em 19 de novembro passado, véspera do “Dia da Consciência Negra”, João Alberto de Freitas, quase negro, é espancado e morto após agredir um segurança quase branco de uma loja do Carrefour em Porto Alegre, e aquela imprensa que não pensa, é pensada – e ultimamente em inglês – sai “dublando” o #Vidas negras importam! que mantinha ha meses engatilhado na garganta à espera de um pretexto.
Dois dias antes João Alberto estivera no mesmo supermercado embriagado e sem máscara. Embora a imprensa não investigue, corre a informação de que a moça a quem se vê nas gravações das câmaras ele se dirigir de forma a provocar a primeira reação dos seguranças é uma velha conhecida. Mas não importa. Ao ser escoltado para fora sem ser tocado, João Alberto acerta um murro na cara de um dos seguranças e … a cena pega fogo …
Essas circunstâncias eliminam a brutalidade que resultou na morte dele?
Certamente que não.
Mas descarta liminarmente a hipótese de que a agressão a João Alberto foi desencadeada gratuitamente apenas por ter ele a pele alguns tons mais acima do “branco” que a de seus agressores.
Tem-se no máximo um homicídio culposo, mas o “jornalismo de dublagem” exige mais. Não conseguiu reproduzir as manifestações de rua que queria desencadear porque o Brasil Real continua muito melhor que suas elites, mas talvez consiga o “homicídio triplamente qualificado” que pode resultar do acovardamento padrão diante desse tipo de pressão que impera hoje entre essas ditas “elites” no Brasil e no mundo, o que não seria mais que uma versão estatizada da Lei de Lynch. Mais um grande feito desta imprensa que, quando “vai às compras” nos Estados Unidos, em vez de importar o voto distrital com recall, os direitos de iniciativa de lei popular, de referendo das leis dos legislativos e de promover eleições periódicas de retenção (ou não) de juizes que são a cura da corrupção e o fim da exploração vil do favelão nacional pelo banditismo estatizado, importa o racismo “raiz”, o ódio entre os sexos e a criminalização do amor.
O Brasil que o “jornalismo de dublagem” está tentando construir é bem pior que o original. Neste, do homem quase negro morto pelos seguranças quase brancos, praticamente não houve brancos durante 389 anos, até começar a imigração dos explorados da Europa do feudalismo, a versão totalitária da privilegiatura sustentada pela força bruta que está aí até hoje e desde sempre tem sido a divisória real entre a humanidade escravizadora e a humanidade escravizada de todas as raças, em todos os tempos e nos quatro cantos da Terra.
A Nação brasileira mesmo foi forjada pela Campanha Abolicionista, mais uma das verdades que essa imprensa decaída e uma academia doente tentam soterrar em “narrativas” desonestas. O movimento que, dos meados até o final do século 19, mobilizou o país por 40 anos ininterruptos fez o Brasil, pela primeira vez em sua história, reconhecer-se como um todo que tinha a mesma idéia fundamental sobre o que não queria ser. Até então o país não passava de um punhado de vilas quase independentes que mal se conheciam umas às outras, mas que eram pedaços de humanidade que, por seus portos e suas picadas, conseguiam, como têm conseguido sempre os pedaços de humanidade de todos os tempos, manterem-se conectados ao todo … fundamentalmente pela esperança da liberdade.
É em 1850 que se forma no Rio de Janeiro a Sociedade Contra o Tráfico de Africanos de Tavares Bastos, a primeira de centenas, em contato com a British and Foreing Anti-Slavery Society (BASS).
Mas o abolicionismo brasileiro foi mais moderno … e mais cínico que aqueles em que se inspirou. “Se o escravismo estadunidense fora um sistema coeso e desabrido de apelo à desigualdade racial e à retórica religiosa, o nosso foi enrustido” – diz Angela Alonso na conclusão do seu monumental “Flores, Votos e Balas”, uma história da Campanha Abolicionista que o Brasil de hoje faria bem em re-examinar, senão por tudo mais, pela sua surpreendente modernidade tática, que garantiu a penetração do movimento em todas as classes sociais e a mobilização do país inteiro. “Em vez de escravistas de princípio, com legitimação enfática, tivemos escravistas de circunstância: compelidos pela conjuntura a justificar a situação escravista sem defender a instituição em si que, como reconheciam todos, a civilização e a moral condenavam (…) A Câmara e o Senado defendiam a situação escravista mas não a escravidão (…) Ninguém no Brasil combate a emancipação. Porem quer-se um procedimento ‘racional’, prudente, prevenido, não se sacrificando a propriedade atual”…
Pouco mudou, desde então, no Brasil dessa privilegiatura que não larga o osso apesar de ser a primeira a reconhecer a própria iniquidade. Nossos parlamentos nunca representaram nada senão as pessoas sentadas nas suas bancadas. Continuam como sempre – outorgados e não negociados e contratados que foram e continuam a ser os seus poderes por sistemas eleitorais espúrios – não só impermeáveis como fundamentalmente antagônicos ao Brasil Real. São eles a força reacionária que nos mantêm amarrados a um passado revogado em todo o resto do planeta, com exceção de Brasília e seus arredores, e à esta nossa miséria medieval meticulosamente construída e mantida.
O que mudou mais, de lá para cá, é o posicionamento da imprensa. Na Abolição, de que ela foi um dos motores essenciais, a maior parte da imprensa brasileira estava do lado certo da História.
Pensando o 2º turno – 2
7 de dezembro de 2020 § 23 Comentários
Tendo escrito o primeiro artigo desta série na noite do domingo da eleição, pois estava de partida na segunda pela manhã para local fora do alcance das loucuras internetáveis, ficou faltando a avaliação dos votos brancos, dos votos nulos e das abstenções que, repetindo com mais ênfase o que já acontecera no 1º turno, foram os grandes “vencedores” destas eleições não só em São Paulo como também no Brasil inteiro.
Bruno Covas foi eleito com 3.169.121 votos, Boulos ficou com 2.168.109. Abstenções, brancos e nulos somaram 3.649.457, quase meio milhão a mais que Bruno Covas.
O que leva-me a reafirmar a conclusão da primeira análise. Por que, afinal, os candidatos “outsiders” perderam foça? A resposta que o numero de “não votos” sugere é: porque não são realmente “outsiders”. A começar pelos candidatos e pelos representantes eleitos do “Novo”, nenhum tem nada de realmente novo a propor. O aparente “repúdio da anti-política” que se configurou nesta eleição pode ser mais adequadamente lido como mais uma atitude não necessariamente “anti-política” mas certamente “anti-essa-nossa-política” de um eleitorado órfão que permanece excluído dela antes e depois das eleições. Não significa, portanto, uma vitória dos “pró-política” e dos “insiders”. O grande vencedor da eleição continua sendo o anti-voto.
Outro dado notável que se repete apesar de todos os esforços da torcida é a rejeição maciça das candidaturas “de minorias”, seja as de raça, seja as de gênero, não só pelos eleitores como até mesmo dos próprios candidatos que poderiam supostamente beneficiar-se do incentivo a critérios de seleção “ideológico-afirmativos”. O Brasil ainda é saudável o bastante para não acreditar que todos os problemas do mundo podem ser resolvidos colocando-se um “exemplar” de cada “minoria” num canto da sala, como quer aquela imprensa americana doente que a parcela da imprensa nacional que não pensa, é pensada “dubla” em ordem unida. O brasileiro que ainda se dá o trabalho de votar, prefere os conteúdos aos invólucros.
Mas este é o assunto de amanhã.
O dilema das redes
23 de setembro de 2020 § 27 Comentários
O que a vida em rede vai fazer com este mundo pendurado nos celulares? O docudrama “The social Dilemma”, da Netflix (aqui), abre para o grande público a batalha deste milênio no front do jornalismo.
É absolutamente assustador mas o fato do problema estar, finalmente, sendo encarado no que tem de essencial é a prova de que tem cura. A base de tudo são os trabalhos de Shoshana Zuboff. Professora da Harvard Business School, ela é aquela espécie de Farrah Fawcett da terceira idade que aparece no filme. Persegue o tema desde 2014. A forma acabada é o livro de 2019 cujo título não brinca em serviço: “THE AGE OF SURVEILLANCE CAPITALISM, The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power”.
Alguns traduzem como “capitalismo de vigilância”. Eu acho “capitalismo de espionagem” mais preciso. A própria Shoshana abre o seu livro com uma definição em oito pontos: 1 – É uma nova ordem econômica que trata a experiencia humana como matéria prima para práticas comerciais ocultas de extração, predição e vendas; 2 – Uma lógica econômica parasitária em que a produção de bens e serviços esta subordinada a uma nova arquitetura global de modificação de comportamentos; 3 – Uma mutação bandida do capitalismo marcada por um grau sem precedentes de concentração de riqueza, conhecimento e poder; 4 – A estrutura fundamental da economia da espionagem; 5 – Uma ameaça tão grande à natureza humana quanto o capitalismo industrial foi para o mundo natural nos séculos 19 e 20; 6 – Um instrumento de poder que garante o domínio da sociedade e traz ameaças sem precedentes para a democracia de mercado; 7 – Um movimento que busca impor uma nova ordem coletiva baseada na certeza total; 8 – A expropriação de direitos humanos fundamentais que só pode ser entendida como um golpe de cima para baixo contra a soberania do povo.
Este o livro que os alexandres de morais e, antes deles, os jornalistas e editorialistas que têm apoiado as truculências do Grande Censor do STF teriam de ler se o que estivessem querendo fosse mesmo proteger a democracia no novo mundo em rede e não fazer política partidária rasteira para dizer quem pode e quem não pode usar esse instrumento com vistas à próxima eleição.
O que o diretor da peça da Netflix, Jeff Orlowski, e seus roteiristas fazem com maestria é, mais que traduzir para uma linguagem mais próxima da relação das pessoas comuns com a rede, dramatizar, pondo na boca dos interlocutores mais certos impossível, os perigos das grandes plataformas que nos dão acesso à rede mundial. Põem os próprios “criminosos” confessando seus “crimes”. Tristam Harris, diretor de ética e design do Google, Justin Rosenstein, inventor do “like” do Facebook, Tim Kendal, do Pinterest, Jaron Lenier, pioneiro da realidade virtual e mais uma boa dezena de figurões da ciência da computacão de Silicon Valley depõem na tela sobre a perda de controle sobre suas criaturas, o mal de que elas são capazes, como eles tentam proteger seus próprios filhos dos venenos que elas destilam e o medo que têm de que tudo isso esteja definitivamente fora de controle.
Resumo alguns depoimentos:
Se você não está pagando pelo produto que consome na rede, você é o produto. O que eles vendem são contratos futuros de seres humanos. Previsões cada vez mais precisas sobre o que você vai fazer e desejar. E então, passam a manipular as informações que têm o poder de fazer chegar ou não a você de modo a que as previsões que venderam se cumpram. Têm um modelo de cada ser humano “no porão”, com uma memória infindável, analisado por ciências e perspectivas cruzadas 100% do tempo, que se vai tornando mais preciso que o original e fazendo, a cada dia que passa, mais o que as plataformas querem que façam.
Quando uma coisa é uma ferramenta ela fica lá esperando você. O seu celular não. Ele te chama. Demanda coisas de você. Te seduz. A mídia social não é uma ferramenta, é uma droga. Quando surgiu a bicicleta as famílias, os relacionamentos pessoais, a democracia, nada ficou ameaçado. Hoje a manipulação exercida pelas redes está no centro de tudo que fazemos. É a “persuasion technology”. Você está sendo programado no seu nível mais profundo sem saber. Nós viramos ratos de laboratório e o nosso “sacrifício” não está se dando para achar a cura do câncer. É só para dar lucro a eles.
O que é essa polarização maluca que envolveu o mundo? São as pessoas indignando-se com a constatação em relação aos outros: “Como é que eles não enxergam o que está tão evidente”?! O que ninguém se dá conta é de que “eles” não enxergam porque não estamos todos vendo os mesmos fatos. A cada um está sendo entregue uma “realidade” particular. Cada pessoa no mundo tem a sua própria “realidade” e os seus próprios “fatos”.
Está fora de controle. Isso é feito por algorítmos que se reescrevem a si mesmos recorrentemente a partir das informações que vão armazenando. As pessoas esperam que a Inteligência Artificial resolva isso. Não vai resolver. Nem isso, nem as fake news. O Google conta cliques. Ele não sabe qual é a verdade. E se não existir verdade nenhuma, estamos todos ferrados. Se não concordarmos que existe uma verdade nada tem solução. Mas isso depende de uma compreensão comum do que é a realidade…
A mensagem é aterrorizante mas o fato de estar dada é otimista. Não ha caminho fácil, porém. Os americanos dizem que “a seção 230 do Communications Decency Act de 1996 contém as 26 palavras que tornaram a internet possível”. O que ela diz, resumidamente é que em matéria de responsabilidade legal, os websites e plataformas devem ser tratados mais como bancas que como publishers de jornais. Ou em outras palavras, o prefeito não pode ser responsabilizado por tudo que se diz no Parque do Ibirapuera. Isso mataria a internet como a conhecemos e poria o mundo de volta naquela condição em que uns poucos grupos com muitos recursos tinham voz no debate publico e todo o resto ficava a mercê dos seus editores que sustentou as hegemonias que hoje sentem-se ameaçadas.
Mas a liberdade para publicar não é tudo que a internet proporciona. Shoshana Zuboff e “The Social Dilemma” estão mostrando o outro lado dessa moeda, e onde, mais exatamente, está o problema. É nas ferramentas originalmente desenhadas para procurar e para sugerir o que comprar e turbinar o que vender a partir de exercícios de avaliação e relacionamento dos impulsos introduzidos na rede que mora o perigo. Dominadas por quem quer te vender ideias e comportamentos, elas se transformam numa poderosa ameaça contra a liberdade.
O primeiro passo é, sempre, identificar o inimigo. O resto vem com luta. Toda quebra de padrão tecnológico traz ganhos e perdas. Cada uma fabrica os seus “robber barons” e os políticos que eles põem no bolso, enseja o logro e a desgraça dos desavisados, proporciona concentração de riqueza e poder. Depois que passa a ofuscação com a “competência” dos desbravadores espertos e são expostos os truques sujos que os tornaram trilionários; depois que amaina o furor e a ganância dos aproveitadores políticos e esfria o terror instilado pelos interesses contrariados, o essencial começa a ser destrinchado: a identificação precisa da nova fonte de poder sem controle que é preciso domesticar.
Já aconteceu antes e vai acontecer de novo. O problema é cada vez maior e mais complexo, mas é basicamente o mesmo. A essência da humanidade é a liberdade. E nós nunca deixaremos de persegui-la … enquanto durarmos como espécie.
Mais uma vitória do mau gosto
11 de junho de 2020 § 35 Comentários
Péssima surpresa – ainda que nem tão surpreendente assim – ao descer neste fim-de-semana para o Vale do Ribeira. Estão destruindo o (para padrões brasileiros) tradicionalíssimo Restaurante do Japonês lá pelo quilometro 350 da Regis Bittencourt (a temida BR 116 cuja marcação de quilometragem é um mistério que jamais alguém me conseguiu explicar). Vai sair ali mais um Graal, ou seja, mais um daqueles “nadas” com cara de nada, iguais a todos os nadas sobre os quais flutua, perdido e sem referências, este país sem história.
Vão com ele gerações inteiras de memórias e, possivelmente, também a lojinha de pesca que resistia bravamente, marco de memórias mais recentes mas ainda heroicas, dos primeiros dedicados pescadores com isca artificial que, lá pelos anos 60 e 70, aprenderam a duras penas as artimanhas dos black bass plantados na Fumaça, uma das represas mais altas do latifúndio da família Ermírio de Moraes na Serra do Mar, que eles preservaram mas só para eles em troca da destruição dos mitológicos caniones de Mata Atlântica cavados pelo rio Juquiá-Guaçu, represado sucessivamente para geração de eletricidade para a Companhia Brasileira de Alumínio.
Aquilo é um símbolo do Brasil. Ainda que mutilado no que tinha de único – as escavações feitas pelo maior rio a se despenhar Serra do Mar abaixo pelo meio da mata virgem – a gente ainda agradece à família que manteve pelo menos o entorno dele mais ou menos como era, ainda que só para os seus próprios olhos, porque não ha mesmo outro jeito de fazer isso no país onde os “ambientalistas” mandam fechar os parques nacionais porque, não admitindo a sua exploração econômica para a caça e a pesca esportivas e o turismo ecológico como em todos os outros países do mundo sem nenhuma exceção, impedem que o povo se eduque ecologicamente. O que sabe o brasileiro que pensa que sabe alguma coisa sobre conservação ambiental é o que lhe diz a Rede Globo porque viver no mato e do mato é proibido por lei e considerado “imoral” nesta nossa ilha inexpugnável de estupidez.
Desde que eu tinha 4 ou 5 anos de idade (estou com 68) parava lá com meu pai a caminho de Cananéia e daquele maravilhoso Lagamar que ainda resiste lá à violência do Brasil e ao mau gosto de São Paulo, para um clássico pastel de queijo dos melhores que o país já fez, receita que chegou quase intacta de boa até ha pouco menos de um mês. E tudo continuava familiar. O piso de pastilhas vermelhas salpicadas de amarelo. Os grandes leques japoneses enfeitando as paredes (o biombo, espetacular, foi surrupiado recentemente, coisa de dois ou três anos), as lâmpadas de papel decorado e outros objetos e produtos genuinamente japoneses continuavam a ser vendidos. Até o tanque de carpas a caminho do banheiro continuava lá E COM AS CARPAS VELHAS E BEM TRATADAS!
Nos meus tempos de moleque aquilo, como todas as cidadezinhas do alto da Serra, tinha aquele ar e aquele cheiro típicos de “sertão”: pequena circulação de mateiros e tropeiros com suas roupas “sem cor”, facões pendurados, ferramenta única com que se fazia literalmente tudo, e cheiro de fogão a lenha.
Teve o mesmo destino de outros ícones da paulistanidade. Ha nesta latitude do Brasil um tipo resiliente de imbecil que paga caro para comprar um sucesso resistente às décadas que ele não ajudou a construir…mas é burro o bastante para destruir e descaracterizar até que não sobre nada do que o fazia famoso, especialmente a antiga freguesia. O Restaurante do Japonês rendeu-se ao mau gosto. É mais um Rodeio, mais um Pandoro, mais um Bar Brahma. Espero que seu novo dono colha o mesmo resultado dessas outras vitimas da vitória do mau gosto.
A minha cara, pelo menos, não verão mais.
Tirem o joelho do nosso pescoço!
9 de junho de 2020 § 9 Comentários
Artigo para O Estado de S. Paulo de 9/6/2020
Com os caronas da rebelião pela morte de George Floyd “quebrando tudo” cá estava eu terça passada exortando o Brasil a imitar os Estados Unidos.
“Mas eles estão piores que nós”. “Aquilo está um pandemônio”. “Quem precisa de um Bolsonaro se já tem um Donald Trump”?, são algumas das reações que colhi.
A cena e o ato são hediondos. Tinham mais é de por os Estados Unidos em peso nas ruas. E ha uma eleição no horizonte. Na luta pelo poder, lá ou onde for, nada se perde, tudo se transforma. É o que move as manifestações-carona. Mas o que explica que elas “viralizassem” por tantos países?
Existem uns Estados Unidos da América como os olhos dos que nascem e morrem abusados pelo Estado os vêm, e existem os Estados Unidos da América. É gente que manda no seu governo, escolhe suas leis, aprova as obras públicas que quer, escorraça seus ladrões e decide que impostos quer pagar, tudo no voto que pode ser sacado e disparado por qualquer cidadão e a qualquer momento. É gente que vive esse sonho de toda a humanidade. São estes que podem gritar e gritaram esse “Não ouse meter o joelho no nosso pescoço”! Mas são estes também, os nunca pisados, que as privilegiaturas, mundo afora, precisam provar que não existem. O alvo dos movimentos que tentam cavalgar a indignação autêntica para dar George Floyd como “prova” de que a democracia real não existe porque enquanto ela existir o sonho não acaba e as privilegiaturas não podem dormir em paz.
A exacerbação que vai por aí responde ao efeito pendular. Não se rompe impunemente uma hegemonia centenária em torno da qual estruturou-se uma rede multi-trilionária e globalizada de “direitos adquiridos” criada e sustentada pelo monopólio do diktat comportamental e do discurso político com acesso aos centros de decisão agora ameaçados de disrrupção pela internet.
Em 2016 a Universidade de Oxford elegeu “pós-verdade” como a palavra do ano e definiu a expressão como “um substantivo que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”. A eleição do alvo – bem precisa nessa definição – aponta para uma “ante-verdade” que é essencial para se entender a “pós”. Sim, é de mentira que se trata, mas do uso dela com o objetivo específico de minar a democracia, o único sistema de constituição do poder do Estado em que a “opinião pública” é o fator determinante.
A paulatina conversão da luta contra a “democracia burguesa” de uma disputa entre verdades concorrentes para a destruição do próprio conceito de verdade inclui o reconhecimento da relação indissolúvel entre democracia e verdade. Admitir que onde está bem plantada ela só pode ser destruída por dentro, a partir de uma deliberação da maioria contra si mesmo, e que só uma trapaça (a sistematização “orgânica” da censura e da mentira propostas por Antonio Gramsci) pode produzir esse efeito, homenageia a superioridade moral que seus inimigos sempre negaram a essa democracia em que o povo manda no Estado.
É onde se agarra a nossa privilegiatura. É triste ver provectos senhores e venerandas instituições perderem a compostura e desnudarem-se em público em apopléticas tempestades de adjetivos diante das cópias da direita, nuas e cruas, desprovidas da graxa dialética dos originais burilados ao longo de um século de poder pela esquerda para enganar os trouxas, agora que elas ameaçam seus privilégios.
O problema é velho como a humanidade: defender-se contra a mentira é uma tarefa para cada indivíduo porque a alternativa é dar a alguém o papel de fiscal da verdade, “solução” que conduz diretamente às fogueiras da Inquisição. Fiquemos pois com os clássicos nesse assunto: “Se todos os homens menos um partilhassem da mesma opinião, e apenas uma única pessoa fosse de opinião contrária, a humanidade não teria mais legitimidade para silenciar esta única pessoa do que ela, se poder tivesse, para silenciar toda a humanidade” (John Stuart Mill).
Com a correria para inventar uma legislação contra “fake news” para depor Bolsonaro a qualquer custo o STF e cia. ameaçam expor novamente a nação ao risco que lhe impôs ao devolver chefões do PCC às ruas para conseguir soltar Lula. Com a diferença nada desprezível da exclusão da tolerância com a roubalheira perpetrada contra a lei, mas mantendo a defesa intransigente do “direito” de uma privilegiatura de roubar o povo com a lei, o que temos hoje no Brasil é uma guerra da alta nobreza dessa privilegiatura – o Judiciário e a elite dos “servidores” que se apropriaram do Estado – contra a baixa nobreza da mesma privilegiatura – as polícias e os militares recém saídos de 35 anos de ostracismo que têm aberto a fila dos “fura reformas” de estimação de Jair Bolsonaro – pelo comando da exploração vil do resto de nós.
Esqueçam o século 20. Só ha uma atitude decente, só ha um “lado certo da História” da luta da humanidade contra a opressão. O que se abriu lá atras, no século 17. “Tirem (vocês todos, os indemissíveis que exigem aumento até nas pandemias) o joelho do nosso pescoço! O Brasil não consegue mais respirar”!
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