O que ha de mais “fake” que as “fake news”
10 de janeiro de 2022 § 14 Comentários

O empreendedorismo é o domínio do instinto. Não é para quem quer é para quem é. A política e seu produto por excelência na democracia — a lei — é a superação da que rege o instinto e manda todo bicho “usar sua força para comer o mais possível sempre que a ocasião se apresentar”, um movimento concertado de defesa das presas contra os predadores que acaba por ser acatado até por esses últimos quando a História os ensina a pensar adiante da próxima refeição.
A informática não mudou rigorosamente nada na essência das relações humanas que já foi bem precisamente sintetizada no adágio de que “o homem é o lobo do homem”. Ela criou uma reprodução matemática do mundo real sujeita não mais às velocidades e multiplicações do universo da História e do mundo físico mas às próprias a essa ciência abstrata, o que subverteu violentamente as noções de espaço e tempo, fundamentos do conhecimento humano, com implicações altamente disruptivas nas aplicações que daí decorrem, especialmente as ligadas à produção e à transação de bens e riquezas e, mais que para todas as outras, para a capacidade de cada nação de impor leis precisas, estáveis e bem delimitadas como têm de ser as das raras democracias de fato existentes.

Como sempre, desde o controle do fogo, do arco e da roda e da domesticação dos animais, das plantas e dos metais, essa disrupção proporcionou aos “predadores alfa” da política e da economia explorar os vazios de regulamentação que se abriram com a violência e o oportunismo que o instinto lhes pede. Sob a bandeira da “reforma da humanidade” de sempre, o Google auto-atribuiu-se o direito de mudar as regras do ciclo de vida da informação espionando, indexando e tornando acessíveis para todo o sempre os pormenores das manifestações de preferência e trocas de informações entre cada um dos seres humanos sem pedir licença a ninguém, ato criminalizado em todas as legislações do mundo para todas as tecnologias não baseadas em bits.
Em paralelo, na melhor técnica do malandro que atrai a vítima sempre com a promessa de benefícios impagáveis, copiou e indexou a informação coletada e sistematizada por profissionais de todos os campos do saber em todos os tempos sem pagar direitos a quem trabalhou para produzi-la, outro crime tipificado para todos os meios anteriores, e entregou o produto desse saque planetário como um “presente grátis” a quem antes tinha de pagar por ele, “apenas” em troca da livre espionagem dos hábitos, preferências, intimidades e roteiros dos consumidores desse “serviço”. E então amealhou uma fortuna indecente vendendo os segredos de cada eleitor e cada consumidor aos tubarões da política e da economia.

Escancarada a porta, por lá passaram as boiadas da Amazon e do Facebook, as “ferrovias” de hoje com seu séquito de robber barons de vida curta, comprados com baratos bilhões para colocarem-se à salvo sem incomodar ou concorrer, e todo o resto das mazelas que conhecemos, com as Apples no fim da fila, explorando nas chinas da vida o trabalho escravo pelo qual seriam presas em casa e arrastando todos os seus concorrentes para o mesmo atalho que matou, numa só cajadada, séculos de conquistas dos trabalhadores nas democracias, tudo sob o silêncio cúmplice da política podre que finge não entender a exata semelhança entre os crimes dos donos das big techs e seus caronas de hoje e os dos robber barons de ontem.
Agora, montados nos trilhões de dólares amealhados com esse tipo de “competência”, já se sentem fortes o bastante para desafiar as maiorias de frente com a censura explícita e a incineração virtual dos “hereges” em autos-de-fé públicos mediante os quais ficam “cancelados” não só das tribunas a partir das quais a política captura os votos necessários para deter essa gigantesca falcatrua como também da vida econômica que migrou totalmente para a reprodução virtual do mundo real.

Em maio de 2014, depois que a Agência de Proteção de Dados da Espanha reassegurou a um professor o direito de ter o seu passado esquecido, a União Européia como um todo, mais “freguesa” que proprietária das mega multiplataformas da internet, restabeleceu o princípio de que o futuro da vida digital deve ser estabelecido pelas pessoas, suas leis e suas instituições democráticas e não por qualquer grupo de moleques montados numa tecnologia nova o bastante para não ser imediatamente compreendida, em seus meandros e processos, nem pelos seus usuários, nem muito menos pelos legisladores, o que recoloca nos seus devidos termos a questão decisiva deste início de 3º Milênio marcado pelo desvio do “capitalismo de espionagem” (surveillance capitalism) que só pode prosperar com a morte da democracia.
O atual impasse prende-se mais à corrupção que às dificuldades técnicas envolvidas. Não é preciso inventar nada de conceitual ou filosoficamente novo, como querem fazer crer os enganadores de sempre, apenas submeter as big techs e suas praças públicas virtuais às mesmas leis que enquadraram os robber barons do passado e garantem o exercício dos direitos fundamentais do homem nas praças públicas físicas (à propriedade, à sua intimidade #ownyourdata, à liberdade de crença e expressão, ao devido processo, etc.), impondo aos tecnólogos, como condição para operar seus aplicativos, plataformas e redes, a busca das soluções necessárias para implementar essas garantias.
Sim, conseguir são outros 500. Mas ser obrigado a tentar é tudo que sempre fez a humanidade andar para a frente…

Quanto ao gigantismo que desenvolveram violando as leis que todos os seus concorrentes eram obrigados a cumprir, vale o mesmo princípio. A democracia se reapresentou ao mundo em 1787 com a missão de evitar a criação de superpoderes no universo da política com a bandeira de que somente cada indivíduo tinha o direito de escolher o seu modo de alcançar a felicidade e definir o que era ou não “fake” para ele em matéria de pensamentos e crenças, o que lhe deu um impulso inicial brilhante mas não suficiente.
Na virada do século 19 para o 20, refém da corrupção gerada pelo seu principal “defeito de fabricação” que foi a blindagem, ainda que temporária, dos mandatos dos representantes eleitos contra seus eleitores, acrescentou à sua lista de objetivos prioritários, mediante o aparato antitruste que só pôde impor depois de armar a mão do eleitor para dar a palavra final sobre cada ato dos seus representantes, a prevenção da criação de superpoderes também na economia privada, o que pôs em cena o único “estado de bem estar social” que jamais se materializou no mundo real: não o que o socialismo prometia autorizando o governante de plantão a distribuir dinheiro alheio entre seus amigos e correligionários mas aquele que Theodore Roosevelt dotou do moto continuo naturalmente invulnerável à politicagem da limitação da competência para açambarcar mercados pela manutenção obrigatória do grau mínimo de competição necessário em cada setor da economia para obrigar os empreendedores a disputar trabalhadores aumentando salários e consumidores reduzindo preços, com o Estado estritamente no papel de árbitro.

Foi esse o truque simples que fez dos Estados Unidos o que são (estes em que o PIB do estado de Nova York equivale ao do Brasil inteiro e o dos outros 49 estados é “lambuja” e não aquele que nossa imprensa mostra) e propiciou que arrastassem a humanidade inteira atras de si para patamares mais altos de liberdade, afluência e progresso da ciência ao longo de escassos ¾ do século 20 que os alcançados na soma de todas as centenas de séculos anteriores.
Agora quer a horda dos reacionários a volta ao padrão anterior a 1787, com sua igreja ditando o que é e o que não é “verdade” e calando quem discorda na marra em nome da “defesa da democracia”.
“FAKE“!
A tergiversação em torno dessa empulhação, do gigantismo das big techs e de todos os seus nefandos corolários explica-se pelos trilhões acumulados pelos modernos robber barons, que engraxam tanto os que correm atras do poder de explorar o próximo pela via da economia quanto os especializados em faze-lo pela da política, muito mais que por qualquer dificuldade técnica para corrigir o rumo e aplicar a elas regulamentos honestos, democráticos e limpos.

A verdade sobre a CoronaVac
8 de janeiro de 2021 § 6 Comentários
Depois de muitas idas e vindas o governador João Dória anunciou finalmente, ontem, os resultados da 3a fase de testes da CoronaVac chinesa. Num discurso diferente do que se tem ouvido sobre outras vacinas pelo mundo afora ele e seus assessores mais o pessoal do Butantan disseram que “a vacina tem 100% de eficácia para casos graves e moderados, evitou 100% de internações hospitalares e demonstrou 78% de eficácia para casos leves”.
Consultei um médico brasileiro que divide seu tempo entre Brasil e Estados Unidos onde dá aulas em universidades renomadas para entender melhor o pouco misterioso mistério dessa conversa.
“Só a ultima parte dela é verdadeira”, disse ele, ressalvando que ainda não teve acesso aos dados da pesquisa. “A vacina demonstrou 78% de eficácia nos 12.476 voluntários nos quais o Butantan a aplicou, o que é um ótimo resultado dadas as circunstâncias. Mas de cada 100 voluntários, 22 contraíram assim mesmo o Covid 19. Afirmar que desses 22 nenhum teve a forma grave da doença ou precisou ser hospitalizado tem tanto significado científico quanto afirmar que a vacina é 100% eficaz para quem tem olhos verdes porque nenhum dos 22 que contraíram o vírus depois de vacinados tem olhos verdes. Isso não tem nada a ver com a vacina. É impossível afirmar cientificamente que a vacina tem o efeito de enfraquecer o vírus. O que as vacinas fazem é imunizar ou não imunizar o paciente. E os dados, caso confirmados, mostram que ela imuniza, em média, 78% dos inoculados”.
É o contrário do que tentou sugerir o dr. Dimas Covas, diretor do Butantan, quando afirmou que “A pessoa pode até se infectar mas queremos que a doença não progrida a ponto de precisar ir para o hospital”.
O Butantan, informou a Anvisa, ainda não entregou os dados completos da pesquisa. “O que aconteceu hoje (ontem) foi uma reunião de pre-submissão”. Quando entregar os dados completos a Anvisa, aplicando o rito sumário autorizado pela emergência do momento (lei 13.979), pode aprovar em 10 dias as vacinas que já lhe chegarem com o aval de suas congêneres nos EUA, na Europa, no Japão ou na China.
Dória e o Instituto Butantan tinham marcado a divulgação dos dados da 3a fase da pesquisa para 15 de dezembro passado. Depois adiaram para 23 de dezembro e finalmente para hoje. Nesse meio tempo, dia 21/12, a Anvisa fez uma inspeção à fábrica da CoronaVac na China. E o próprio governo chinês anunciou o início da vacinação no país mas com a concorrente chinesa da CoronaVac, a vacina da Sinopharm, que apresentou 86% de eficácia. Essa sucessão de tropeços já indicavam o que se confirmou. Das vacinas já anunciadas a da Sinovac alcançou os menores níveis de eficácia, junto com a vacina da Oxford, a aposta do governo federal que, no entanto, supera a marca da CoronaVac depois de tomada a segunda dose (sobe de 60% de imunização na primeira para 90% com as duas doses). A vacina da Pfizer afirma ter 96% de eficácia, a da Moderna 94,1% e a russa Sputnik 91,4%. Para a Organização Mundial de Saude qualquer vacina com performance superior a 50% de imunização é considerada eficaz, o que considerados os números de vitimas da pandemia não precisa ser um gênio para entender. A menos que o seu cérebro esteja congestionado pelas toxinas da para sempre interminável eleição brasileira…
PS.: A CoronaVac também passou no teste de segurança. 35% dos voluntários sofreram “efeitos adversos leves” como dor local, inchaço, dor de cabeça e fadiga superados no prazo de 48 horas. Brasil (46 milhões de doses, 6 milhões importadas e 40 milhões feitas no Butantan), China, Indonésia, Turquia e Chile estão na fila dos compradores da CoronaVac.
Para domesticar a internet
10 de dezembro de 2020 § 9 Comentários
Num artigo bem pé-no-chão publicado em O Estado de S. Paulo de segunda-feira, 7 (“As três internets”), Moises Naim resumiu bem o ponto a que as coisas chegaram. A internet nem mais é global nem é aberta. Também já não é descentralizada nem é gratuita. Mais de 40% da população mundial vive em países onde o acesso, mesmo a uma internet fortemente censurada, é radicalmente controlado pelo ditador de plantão e dado em troca do controle de cada pensamento e cada passo do usuário. E onde ela continua “aberta”, pagamos pelo que vemos entregando a comerciantes todos os passos e segredos de nossas vidas, comerciantes estes que, com violência cada vez mais explícita, trabalham para transformar a posse dessas informações, bem como o acesso ao mercado “global” informatizado que as usará para nos oferecer bens e serviços com “target”, em monopólios cada vez mais estritos.
Em outras palavras, o sonho acabou (mais um!), até para os ingênuos que em algum momento acreditaram que ele tivesse começado um dia…
Naim falava então no surgimento de três internets. A chinesa, fechada, censurada, protecionista e com “ciberfronteiras” muito claramente delimitadas onde só entram “aliados” como a Coreia do Norte, cujo protagonista central é a ditadura do partido único e seu sistema de controle dos cidadãos, e que se impõe na competição planetária por deter um bilhão de usuários. A americana, anárquica, inovadora, comercial e com altas tendências monopolistas, cujos protagonistas centrais são as grandes empresas de tecnologia e que se impõe pelo seu acesso a enormes volumes de capital, talento tecnológico e capacidade de inovar. A européia, a mais regulada e “preocupada em defender os usuários”, o que trata de fazer com um enfoque jurídico, definindo parâmetros, exportando regras e impondo multas bilionárias.
Postas em termos mais rudes, reproduções matemáticas da realidade que são, as três internets descritas por Naim resumem o que são as culturas que traduzem. A do “despotismo oriental” da chinesa, que decorre naturalmente do “modo de produção asiático” de servidão coletiva; a do “todo poder ao povo” sem nenhum controle da americana; a do “todo poder para o Estado” da européia. A grande “vantagem competitiva” da chinesa é que não tem nenhum compromisso com a lei. A da americana, se a história se repetir, é a da ausência de compromisso com o erro que só se torna possível em sistema mais centralizados e só faz sentido como recurso de defesa de privilégios. A da européia, a suscetibilidade à perpetuação daquela forma de “erro” que, na verdade, traduz “acertos” da privilegiatura que só são possíveis quando a iniciativa das ações de defesa está nas mãos do Estado – e portanto pode ser comprada – e não difundidas nas mãos do povo.
A tendência para o monopólio da competição sem limite traz como sub-produto a facilitação do controle da circulação de ideias e a instrumentalização política pela supressão da diversidade de plataformas. Não é atoa que a grande aliada das big techs (e vice-versa) é, hoje, a esquerda americana. A revolução antitruste que reorientou a democracia deles a partir da virada do século 19 para o 20 encontrou a melhor solução para esse problema ao tomar o cuidado de armar a ganância para se contrapor à ganância, obrigando empresários que conquistassem mais que uma determinada faixa de mercado (tipicamente 30%) a vender parte do seu negócio a outros empresários, forçando a concorrência em benefício do consumidor (e a diversidade sem a qual a democracia não sobrevive), em vez de tratar de limitar a força do poder econômico aumentando a força do poder do Estado (que sempre pode ser facilmente comprada pelo poder econômico).
Existem, no entanto, fortes limitações técnicas para transpor a solução do século 20 para a realidade do século 21. Dificuldades estas que foram muito competentemente delineadas no artigo “Esforço comum para domar big techs” que Rana Faroohar escreveu para o Financial Times, o Valor de terça-feira, 8, traduziu e você pode conferir ampliando a imagem abaixo. Nele Faroohar aponta outra distinção mais importante das internets – a das pessoas e a das coisas; a do consumidor e a industrial e põe ainda no horizonte o desafio da inteligência artificial – que terão de ser tratadas no enorme trabalho de regulamentação que a humanidade tem pela frente se quiser evitar de ser devorada pelo “Grande Irmão”.
Como não poderia deixar de ser nessa realidade em que cada internet traduz a cultura de que é fruto, neste Brasil Oficial campeão mundial do xadrez da mentira a regulamentação que “O Sistema” auto-referente e preocupado exclusivamente com a sua própria perpetuação ensaia é a mentira da mentira da mentira: o controle das chamadas “fake news” como pretexto para a censura de qualquer manifestação política que fira os interesses da privilegiatura ou possa afetar as eleições, hoje cercadas por uma minuciosa barreira de censura à imprensa que varia conforme as limitações de penetração de cada meio num eleitorado funcionalmente analfabeto majoritário, mas que é inflexível na qualificação de “antidemocrática” de toda ação adversa à privilegiatura punível até com prisão no esdrúxulo “estado de direitos especiais” que a Constituição de 88 criou e “petreamente” mantém, sob o aplauso da old mídia.
Para esse departamento, o resto do mundo já entendeu que o único remédio que não deságua na censura que mata a democracia é o de sempre: deixar que os cidadãos “elejam” diariamente, pagando pelo serviço, as fontes de informação que se propuserem trabalha-la segundo regras de todos conhecidas, e ignorar o resto como boataria da praça pública a que todo mundo desde sempre também tem direito.
Decoro, pelo amor de Deus!
9 de dezembro de 2020 § 20 Comentários
João Doria e Jair Bolsonaro nasceram um para o outro. O oportunismo sem breque de um e a pesporrência interneteira suicida do outro acabam sempre em sexo explícito enfiado goela abaixo do Brasil.
Haja saco para tanta falta de compostura no meio do velório nacional!
É questão de tempo, aliás, para que um exale o último suspiro sobre o cadáver político do outro pois assim como a única coisa que pode salvar este e qualquer hipótese de um próximo mandato para Bolsonaro e evitar a explosão para a qual se vai acumulando pressão na miséria nacional é a velocidade da retomada da economia que depende estritamente da velocidade da vacinação, só um recolhimento e uma modéstia de monge budista em penitência poderiam “desplastificar” a imagem e apagar a memória da incontida sofreguidão que está expulsando João Doria das pesquisas de intenção de voto.
A orientação da cobertura da imprensa preferencialmente para o disse-que-disse e não para o esclarecimento do público também não ajuda a poupar essa náusea ao país.
- Estão completados os testes em humanos a cargo do Butantã?
- Se não estão, quanto tempo tomam ainda?
- Se estão, porque o instituto não os entregou à Anvisa?
- Com os testes em humanos nas mãos, qual o protocolo que a Anvisa tem de seguir?
- O que justifica os prazos que ela alega ter de cumprir, burocracia ou tempo de processamento tecnicamente justificado?
- O que é preciso fazer para acelerar o andamento disso?
- Como foi o “procedimento de emergência” da agência inglesa?
- Estando todas elas cadastradas num mesmo organismo internacional não teria a Anvisa acesso a essa mesma via rápida?
Enquanto em vez de responder perguntas como essas as televisões oferecerem um palco iluminado diário ao Boneco dos Bandeirantes o Panaca do Planalto responderá com mais uma grosseria internetavel e o Brasil não se livrará desse barraco.
Só a re-angulação dessa cobertura da doença do país para o interesse do país doente cala a boca desses dois.
O dilema das redes
23 de setembro de 2020 § 27 Comentários
O que a vida em rede vai fazer com este mundo pendurado nos celulares? O docudrama “The social Dilemma”, da Netflix (aqui), abre para o grande público a batalha deste milênio no front do jornalismo.
É absolutamente assustador mas o fato do problema estar, finalmente, sendo encarado no que tem de essencial é a prova de que tem cura. A base de tudo são os trabalhos de Shoshana Zuboff. Professora da Harvard Business School, ela é aquela espécie de Farrah Fawcett da terceira idade que aparece no filme. Persegue o tema desde 2014. A forma acabada é o livro de 2019 cujo título não brinca em serviço: “THE AGE OF SURVEILLANCE CAPITALISM, The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power”.
Alguns traduzem como “capitalismo de vigilância”. Eu acho “capitalismo de espionagem” mais preciso. A própria Shoshana abre o seu livro com uma definição em oito pontos: 1 – É uma nova ordem econômica que trata a experiencia humana como matéria prima para práticas comerciais ocultas de extração, predição e vendas; 2 – Uma lógica econômica parasitária em que a produção de bens e serviços esta subordinada a uma nova arquitetura global de modificação de comportamentos; 3 – Uma mutação bandida do capitalismo marcada por um grau sem precedentes de concentração de riqueza, conhecimento e poder; 4 – A estrutura fundamental da economia da espionagem; 5 – Uma ameaça tão grande à natureza humana quanto o capitalismo industrial foi para o mundo natural nos séculos 19 e 20; 6 – Um instrumento de poder que garante o domínio da sociedade e traz ameaças sem precedentes para a democracia de mercado; 7 – Um movimento que busca impor uma nova ordem coletiva baseada na certeza total; 8 – A expropriação de direitos humanos fundamentais que só pode ser entendida como um golpe de cima para baixo contra a soberania do povo.
Este o livro que os alexandres de morais e, antes deles, os jornalistas e editorialistas que têm apoiado as truculências do Grande Censor do STF teriam de ler se o que estivessem querendo fosse mesmo proteger a democracia no novo mundo em rede e não fazer política partidária rasteira para dizer quem pode e quem não pode usar esse instrumento com vistas à próxima eleição.
O que o diretor da peça da Netflix, Jeff Orlowski, e seus roteiristas fazem com maestria é, mais que traduzir para uma linguagem mais próxima da relação das pessoas comuns com a rede, dramatizar, pondo na boca dos interlocutores mais certos impossível, os perigos das grandes plataformas que nos dão acesso à rede mundial. Põem os próprios “criminosos” confessando seus “crimes”. Tristam Harris, diretor de ética e design do Google, Justin Rosenstein, inventor do “like” do Facebook, Tim Kendal, do Pinterest, Jaron Lenier, pioneiro da realidade virtual e mais uma boa dezena de figurões da ciência da computacão de Silicon Valley depõem na tela sobre a perda de controle sobre suas criaturas, o mal de que elas são capazes, como eles tentam proteger seus próprios filhos dos venenos que elas destilam e o medo que têm de que tudo isso esteja definitivamente fora de controle.
Resumo alguns depoimentos:
Se você não está pagando pelo produto que consome na rede, você é o produto. O que eles vendem são contratos futuros de seres humanos. Previsões cada vez mais precisas sobre o que você vai fazer e desejar. E então, passam a manipular as informações que têm o poder de fazer chegar ou não a você de modo a que as previsões que venderam se cumpram. Têm um modelo de cada ser humano “no porão”, com uma memória infindável, analisado por ciências e perspectivas cruzadas 100% do tempo, que se vai tornando mais preciso que o original e fazendo, a cada dia que passa, mais o que as plataformas querem que façam.
Quando uma coisa é uma ferramenta ela fica lá esperando você. O seu celular não. Ele te chama. Demanda coisas de você. Te seduz. A mídia social não é uma ferramenta, é uma droga. Quando surgiu a bicicleta as famílias, os relacionamentos pessoais, a democracia, nada ficou ameaçado. Hoje a manipulação exercida pelas redes está no centro de tudo que fazemos. É a “persuasion technology”. Você está sendo programado no seu nível mais profundo sem saber. Nós viramos ratos de laboratório e o nosso “sacrifício” não está se dando para achar a cura do câncer. É só para dar lucro a eles.
O que é essa polarização maluca que envolveu o mundo? São as pessoas indignando-se com a constatação em relação aos outros: “Como é que eles não enxergam o que está tão evidente”?! O que ninguém se dá conta é de que “eles” não enxergam porque não estamos todos vendo os mesmos fatos. A cada um está sendo entregue uma “realidade” particular. Cada pessoa no mundo tem a sua própria “realidade” e os seus próprios “fatos”.
Está fora de controle. Isso é feito por algorítmos que se reescrevem a si mesmos recorrentemente a partir das informações que vão armazenando. As pessoas esperam que a Inteligência Artificial resolva isso. Não vai resolver. Nem isso, nem as fake news. O Google conta cliques. Ele não sabe qual é a verdade. E se não existir verdade nenhuma, estamos todos ferrados. Se não concordarmos que existe uma verdade nada tem solução. Mas isso depende de uma compreensão comum do que é a realidade…
A mensagem é aterrorizante mas o fato de estar dada é otimista. Não ha caminho fácil, porém. Os americanos dizem que “a seção 230 do Communications Decency Act de 1996 contém as 26 palavras que tornaram a internet possível”. O que ela diz, resumidamente é que em matéria de responsabilidade legal, os websites e plataformas devem ser tratados mais como bancas que como publishers de jornais. Ou em outras palavras, o prefeito não pode ser responsabilizado por tudo que se diz no Parque do Ibirapuera. Isso mataria a internet como a conhecemos e poria o mundo de volta naquela condição em que uns poucos grupos com muitos recursos tinham voz no debate publico e todo o resto ficava a mercê dos seus editores que sustentou as hegemonias que hoje sentem-se ameaçadas.
Mas a liberdade para publicar não é tudo que a internet proporciona. Shoshana Zuboff e “The Social Dilemma” estão mostrando o outro lado dessa moeda, e onde, mais exatamente, está o problema. É nas ferramentas originalmente desenhadas para procurar e para sugerir o que comprar e turbinar o que vender a partir de exercícios de avaliação e relacionamento dos impulsos introduzidos na rede que mora o perigo. Dominadas por quem quer te vender ideias e comportamentos, elas se transformam numa poderosa ameaça contra a liberdade.
O primeiro passo é, sempre, identificar o inimigo. O resto vem com luta. Toda quebra de padrão tecnológico traz ganhos e perdas. Cada uma fabrica os seus “robber barons” e os políticos que eles põem no bolso, enseja o logro e a desgraça dos desavisados, proporciona concentração de riqueza e poder. Depois que passa a ofuscação com a “competência” dos desbravadores espertos e são expostos os truques sujos que os tornaram trilionários; depois que amaina o furor e a ganância dos aproveitadores políticos e esfria o terror instilado pelos interesses contrariados, o essencial começa a ser destrinchado: a identificação precisa da nova fonte de poder sem controle que é preciso domesticar.
Já aconteceu antes e vai acontecer de novo. O problema é cada vez maior e mais complexo, mas é basicamente o mesmo. A essência da humanidade é a liberdade. E nós nunca deixaremos de persegui-la … enquanto durarmos como espécie.
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