Para 2021, sonhe com a desconstituinte

8 de janeiro de 2021 § 16 Comentários

O mundo anda desenfreado mas Trump vai ter de esperar. Mesmo com a realidade se despenhando como chicotadas sobre o lombo do Brasil Sem Voz, ainda está em tempo de desejar bons augúrios e fazer planos para o futuro. Não quero abrir o Vespeiro 2021 de outro jeito. Chamem de superstição se quiserem.

No dia em que decidir-se a tanto – e esse dia, cedo ou tarde, chegará – este país se abole da sua escravidão. Como em todas as “viradas” políticas em todos os tempos, precipitar a nossa é só uma questão de  enxergar um novo caminho, primeiro, e de desejar suficientemente andar por ele depois. Ou seja, vai ser preciso vencer a censura e expor sistematicamente por algum tempo à massa dos brasileiros a democracia real em funcionamento com seus fundamentos simples e intuitivos como sempre foram. O “desejá-la suficientemente” acontece como bônus, natural e irrefreavelmente. Democracia real – aquela que se pratica nos estados e nos municípios dos países democráticos – é conhecer e amar, como sabem todos os inimigos dela em todos os tempos. Não é atoa que é mais falsificada que badulaque chinês e que ontem, hoje e amanhã toda ditadura se apoiou, se apoia e se apoiará na censura, custe a violência que custar. 

Os que querem ver um Brasil democrático terão primeiro de criar uma imprensa comprometida com isso, portanto. Mas este não é o assunto de hoje. Para já quero tratar da outra questão que desanima o país de se propor mudar, que é a desafiadora pergunta sobre “como sair desse quadro tão vasto e completo de defeitos sem que o avião, que precisa continuar voando, se estatele de uma vez por todas no chão”?

Sonha-se em voz alta com uma constituinte. Mas a ordem dos fatores é fundamental. É impossível mudar qualquer coisa antes de mudar o poder de mãos. Fazer uma constituinte só vai agravar o quadro pois este é o país onde governos recém eleitos pelos canais viciados do Sistema, os mesmos que elegeriam os delegados constituintes, apunhalam seus eleitores nas costas com a frieza burocrática de Eichman’s em Jerusalém, aumentando violentamente os salários da privilegiatura empanturrada e os impostos sobre comida e remédios do favelão nacional faminto e doente antes mesmo de tomar posse. 

A primeiríssima coisa a fazer, portanto, é por o povo no poder aparelhando-o com as ferramentas básicas da “democracia representativa” como a constituição diz que é a nossa: eleições por voto distrital puro (mais adiante para os funcionários do Judiciário também, juízes inclusive) para que haja representação; com recall, referendo e iniciativa para que a hegemonia do representado sobre o representante possa ser imposta. E então, sim, deixar que o povo brasileiro em pessoa, sem qualquer sombra de duvida de legitimidade, desmonte o sistema que o escravizou na velocidade e na direção que houver por bem fazê-lo.

Como fazer isso passar pelas sucessivas retrancas da privilegiatura, repito, é o de menos. Quando o STF era quase sério cansamos de ver os mesmos juizes, citando as mesmas “doutas”, “saudosas” e “sapientíssimas” fontes, darem 800 páginas de argumentos contra e a favor do mesmíssimo ponto num intervalo de poucos meses. Hoje, vira-se e desvira-se para qualquer lado, a colenda corte, ao sabor das dores nos calos de cada um de seus monocráticos ministros. O essencial, repito, é o povo desejar suficientemente caminhar numa direção e lá virão eles atras se o faro lhes indicar que assim salvam a pele.

O importante, para mudar o Brasil, é não se deixar arrastar para a discussão do sexo dos anjos no debate de cada um dos 357 artigos e emendas da Constituição de 88. As instituições americanas distinguem “direitos negativos” de “direitos positivos”, e estabelecem uma hierarquia entre eles. São “direitos negativos” os que “as pessoas de todos os tempos naturalmente sabem que não devem invadir”. Os que decorrem da inviolabilidade do indivíduo e, portanto, exigem que seu beneficiário não seja sujeitado por atos do governo ou de outras pessoas para te-los satisfeitos. São eles: o direito à vida (e portanto à legitima defesa e à incolumidade do corpo), à liberdade de pensamento (e portanto de crença, de expressão e de livre associação), à propriedade ( ou seja ao produto do esforço individual investido). Só estes, de par com os sete artigos em que definem o regime e as regras de sua subordinação ao povo, são tidos como indiscutíveis e, portanto, estão na constituição federal americana que, por sua vez, condiciona as estaduais e as municipais. É de aferir esse condicionamento, e só de aferir esse condicionamento, diga-se de passagem, que vive o supremo tribunal deles.

São direitos positivos (“artificiais” por oposição ao “naturais” dos negativos) os que requerem aportes de recursos de outras pessoas, diretamente ou através do governo, para que o seu beneficiário possa desfrutá-los: o direito a um determinado padrão de vida, de educação, de moradia, à estabilidade no emprego, a salários e aposentadorias privilegiadas, etc. 

Como todo “direito positivo” viola o “direito negativo” de cada um de não ser expropriado, estes só podem ser instituídos numa democracia mediante o consentimento explícito (no voto) de quem vai pagar por eles. Por isso lá tais direitos só podem ser inscritos em leis e constituições estaduais ou municipais e depois da aprovação, no voto, da comunidade interessada.

O roteiro da nossa desconstituinte tem de ser uma inversão do processo americano. O Brasil é um Benjamin Button institucional: nasceu politicamente senil, estuprado na infância que foi no alvorecer da revolução democrática por uma corte hiper-reacionária que nos invadiu em 1808 para implantar aqui, com as armas da corrupção e as fogueiras da Inquisição a maior de todas as “reformas para trás” que o “mundo europeu” daquela época viu.

Pois é retomar de onde fomos arrancados pelo suplício de Tiradentes e o mais que veio com a Contrarreforma e a Inquisição.

Essa micro-constituição reunindo o mínimo indiscutível – os “direitos negativos” da pessoa, a definição da natureza do regime e os termos e mecanismos de sua dependência de legitimação pelo povo – poderia ter, na história da democracia brasileira, o caráter de “ato fundador” que a Carta Magna teve na da democracia inglesa. Todo o resto do lodo constitucional e legislativo em que o país se debate hoje seria repassado intacto para as constituições estaduais e municipais, ficando então o povo empoderado de cada estado e de cada município, agora sabendo que a conta será de quem os conservar, encarregado de rever cada artigo e cada emenda na velocidade e na profundidade desejadas mediante o uso de referendos ou de novas leis de iniciativa popular em eleições sucessivas, segundo o seu senso de justiça e de oportunidade.

Eu tenho um sonho. Debater e divulgar essa receita é a tarefa de ano novo que sugiro para quem quer um Brasil democrático.

§ 16 Respostas para Para 2021, sonhe com a desconstituinte

  • cadu43 disse:

    Espetacular Fernao!!! Feliz 2021

    Enviado do meu iPhone

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  • Francisco G Nobrega disse:

    Grande artigo! Obrigado.

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  • Ordélio Azevedo Sette disse:

    Que Deus lhe ouça e que o país e o nosso povo possam, um dia, alcançar esse ideal. Feliz Ano Novo 😉🍀

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  • hforster42 disse:

    Como sempre Fernão brilha na redação e reflexão em seu artigo. Fico imaginando como seria bom se alguém, devidamente iluminado, conseguisse colocar em prática.

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  • Varlice1 disse:

    Um Feliz 2021, com muita saúde para você, sua família e seus leitores.

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  • Gilson Almeida disse:

    Muito bom, Fernão.

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  • Herbert Sílvio Augusto Pinho Halbsgut disse:

    Fernão, seu texto de hoje aborda com muita clareza sobre o direto negativo e o direito positivo, como acontece nos países democráticos, onde a constituição é fiscalizada de perto em seu uso pelos estados e municípios.
    De fato, pensar numa Constituinte, baseada no que está vigendo por aí, parece que vai dar mais do mesmo, somente repaginada.
    A pandemia de covid-19 e suas inúmeras cepas desnudou muita coisa errada nos governos e na atitude omissa de cidadãos, que nos parecem não quererem pertencer a uma Nação forte e altiva, se abandonando sem reação.
    Por outro lado vemos que gente como você despertou a muitos cidadãos que estavam dormitando… e a casa Brasil começa a se agitar mostrar interesse em mudanças para corrigir os erros de 520 anos de submissão a privilegiaturas que só tem compromisso com os próprios umbigos.
    A energia maior tem que sair do povo e se voltar para a grandeza do próprio povo de forma democrática conforme um Estado democrático de direito. Esse posicionamento é um dever do povo que tem auto-estima.
    Seus escritos catalizam muito dessa energia que espero para 2021 cresça na direção do sistema de voto distrital puro com recall -,retomada do poder do representante pelo “representado” traído – , iniciativas, referendos e bota-fora de juízes incompetentes, corruptos, se o Congresso Nacional for devidamente cobrado e pressionado, para que este seja estabelecido como sistema eleitoral no Brasil.
    Que todas as forças beneméritas se unam em torno de seu sonho para o 2021.

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  • Cyro Laurenza disse:

    Creio que o Brasil não consegue receber um ato cirúrgico de salvação.Todas intervenções pensadas, não estão de acordo com nossa capacidade e nossa condição política. Nossa sobrevivência tem de se desenvolver em uma dezena de fatores importantes e factíveis que nos ofereça algo possível de caminhos. Impressão que tenho olhando para trás a de um país dizimado pela guerra a minha frente buscando caminhos grandiosos que leva a um abismo profundo, por exemplo reforma tributária, entre os demais da pra ver mais no fundo luzes, estou escolhendo uma mas outras lá estão esperando compreensão do que somos e que podemos.
    Temos que saber que existem disfunções intelectuais graves nas casas políticas de todo o país que impede avanços heróicos

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  • Toda vez que saio para caminhar por perto de casa e fazer meu exercício diário (com todo o cuidado devido à pandemia) vejo por que o “brazil” nunca vai dar certo basta ver que o sujeito em frente à uma praça pública descarta ali o seu móvel, colchão, resto de obras ou mesmo peças de carro sem cerimônia alguma, ele quer seu imóvel limpo e arrumado e foda-se o bem público. E esse fato independe de bairro chique, médio ou pobre. infelizmente isso aqui não muda nunca! sei que é desanimador para um começo de ano mais são 59 anos de experiência de vida.

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    • Marcelo disse:

      Observo o mesmo, caro Sérgio. A privilegiatura, a propósito, é exemplo pronto, acabado e institucionalizado deste tipo de comportamento.

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      • Caro Marcelo posso estar enganado, mas não foi aqui neste site que lemos a reportagem que um certo Juiz que pertence a suprema corte desse honrado país. cortava seus galhos, gravetos e grama do seu magnífico jardim e depositava no jardim do vizinho à sua propriedade, pois este estava ausente neste dia. Fernão pode me lembrar com certeza.

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    • GATO disse:

      É Sr. Honório, muito triste, povo mal ajambrado faz isso. São o mais próximo que existe de mini-raça, educação e civismo se perderam no caminho e agora fica difícil de consertar. Quem vai pagar a conta, como diz o Palmito já são quase 5 trilhões de dívida. Conversa não paga a conta, só o trabalho, mas só o querem com todos os direitos e ai lá se vão a FORD e outras….

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  • Marcelo Melgaço disse:

    Sonhando aqui. E divulgando este excelente texto!

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