As desventuras da imprensa sem povo – 1

8 de outubro de 2019 § 12 Comentários

Artigo para O Estado de S. Paulo de 8/10/2019

É claro que cada um tem a sua própria medida de tolerância. Mas senão pelo coletivo, ele mesmo, que é uma entidade autônoma com comportamento independente dos indivíduos que o compõem, certamente para os interlocutores da multidão que vivem de voto ainda é a imprensa, mais que qualquer outra força, que pauta todas as instâncias do “Sistema”, do vereador ao ministro do STF, sobre quais os assuntos que ele está ou não obrigado a tratar com prioridade e dentro de quais limites.

A quebra do paradigma tecnológico reduziu substancialmente a barreira de acesso a esse poder. A democratização da disponibilização de recursos gráficos e audiovisuais de qualidade para a produção de conteúdos com alcance planetário nas redes sociais multiplicou exponencialmente a quantidade de gente capaz de fazer barulho à primeira vista aparentado com jornalismo. Mas mais cedo do que tarde o mero fazedor de barulho terá a sua militância identificada como o que é.

As condições mínimas para ser acatado como uma instituição da República – o “4o Poder” sem o qual não existe democracia – continuam as mesmas de sempre: estar equipado para cobrir em primeira mão os assuntos que serão a matéria prima do debate político nacional respeitando um código de ética para o tratamento das controvérsias de todos conhecido, e ser “eleito” por um grupo numérica ou sociologicamente significativo da sociedade em que atua, o que não se consegue sem ter clareza bastante no seu tão inevitável quanto desejável posicionamento ideológico para que todo leitor/espectador saiba como se posicionar em relação a ele para amá-lo ou para odiá-lo. 

A “isenção”, extensamente marketizada no Brasil do século passado, não sendo humana, é sempre fake. O registro burocrático do “outro lado” é nada menos que uma falsificação quando, como quase sempre, ha desproporção na exposição de cada um. E justapor opiniões “contra” e “a favor”, mais frequentemente do que não, ou é um artifício silogístico para furar o viés editorial oficialmente adotado por um veículo “com dono jornalista”, coisa raríssima no Brasil de hoje em dia, ou um meio para pôr alguma coisa sob suspeita sem assumir essa atitude. Nenhum desses expedientes tem qualquer coisa a ver com um esforço genuinamente jornalístico de apuração e busca da verdade que é coisa que não se afere pelo resultado que possa dar mas pela trajetória percorrida pela reportagem que deve ser relatada com minúcia suficiente para convencer o leitor/espectador de que de fato foi feito.

As regras que balizam o 4º Poder estão entre aquelas não escritas do jogo democrático reconhecidas tanto por quem sabe quanto por quem não sabe descreve-las verbalmente, e que por isso mesmo têm infinitamente mais força que todas as que são escrevinhadas ou gritadas por aí para tentar anulá-las. E é exatamente pela força que tem o “4º Poder” que ha tanta gente empenhada em falsificá-lo e até manuais de conquista do poder através da sistematização cientificamente orientada dessa falsificação como são o de Antonio Gramsci e as novas técnicas de algoritimização do endereçamento da mentira.

No Brasil de hoje é fácil identificar, entre os principais veículos de imprensa escrita, falada, televisiva ou de internet, 1) os que olham o país, seja com os olhos da esquerda, seja com os olhos da direita da “privilegiatura”, entendida como o restrito grupo legal e constitucionalmente credenciado para disputar o poder e o pequeno exército que, uma vez “lá”, ele unge com a dispensa de segurar o emprego e disputar a ascensão nas carreiras com a entrega de resultados e com o “direito adquirido” de se apropriar de metade da renda nacional sem dar nada em troca para a coletividade, 2) os que, no esforço para permanecer “no meio”, atrelam o seu olhar às instituições … que criaram essa “privilegiatura” que continuará onde está enquanto elas “estiverem funcionando”, 3) os que tudo referem a uma abordagem policialesca focada exclusivamente nos efeitos e não nas causas dos aleijões institucionais brasileiros, e 4) quem faça tudo isso no todo ou em parte numa linguagem mais culta ou vazada em tons variados de um “populismo jornalístico” que ecoa, contra ou a favor, os populismos que se alternam no poder. 

Assim, a imprensa acaba, inevitavelmente, ficando cínica como os “lados” a que se atrela, ou alienada, quando não insuportavelmente injusta como são as “instituições que funcionam” ou ainda superficial e perigosamente jacobina como poderá ser também qualquer dos lados que “apropriar-se” do Poder Judiciário. É por isso que a imprensa inteira está hoje na mesma cesta do resto do País Oficial onde o País Real, com o justo rancor dos traídos, a vê.

O anti-intelectualismo que, com um século de atraso como tudo o mais, tem neste momento a sua versão brasileira, não é, como alguns querem fazer crer, uma atitude gratuita de inimigos de nascença da cultura, é uma resposta ao elitismo europeu; mais precisamente à rejeição da tentativa de desclassificação do senso comum como ferramenta competente de solução de problemas da comunidade. Ou em outra formulação mais chã, uma reação à exclusão da comunidade da solução dos problemas da comunidade; um basta à busca a esta altura nada menos que hipócrita de uma elite alienada por respostas exclusivamente onde ha cinco séculos, 19 anos e 10 meses o País Real mais a torcida do Corinthians estão carecas de saber que elas não estão; no Estado, pelo Estado e para o Estado.

É preciso começar tudo de novo. No Brasil tudo está em aberto. As instituições estarem funcionando não é a solução, é o problema. Ainda está por ocorrer o ato fundador da democracia brasileira. E a imprensa só encontrará um tom digno do papel do jornalismo numa democracia; a imprensa só se tornará inteligível para o Brasil Real – a única condição imprescindível à sua sobrevivência – se e quando partir do elemento essencial do drama brasileiro que é, em pleno 3º Milênio, sermos ainda uma sociedade feudal onde as linhas divisórias não são de classe, na horizontal, são de casta, na vertical.

§ 12 Respostas para As desventuras da imprensa sem povo – 1

  • Raimundo Porto Filho disse:

    Eu tenho denominado, por razões óbvias, esse sistema que temos no Brasil de HIPOCRITOCRACIA.

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  • “Ainda está por ocorrer o ato fundador da sociedade democrática brasileira.” Penso que está na hora de parar de criticar e passar a projetar o país que queremos. Difícil? Sim! Você tem opinião diferente da minha? Então vamos combinar que a última palavra não deve ser minha ou sua, mas da realidade, da natureza, dado que a verdade lhe pertence tal como nós mesmos. Ao aceitar que não podemos fugir da natureza resulta evidente que precisamos conhecê-la e saber como funciona de tal sorte que nossos projetos se ajustem a ela, que, afinal, tem demonstrado sabedoria ao conduzir o processo de complexificação universal, com exito, de um oceano de energias quânticas ao formato complexo atual. Pautando a nossa racionalidade nas leis da natureza poderemos evitar os delírios facultados pelo livre arbítrio e sintonizar a evolução cósmica e surfar nela. Esse negócio de se insurgir contra a natureza é coisa de menino teimoso e não de um ser adulto.

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    • A. disse:

      Vou passar o dia, quiçá o resto da semana, forçando meu débil raciocínio a entender que cargas d’água significam “pautar a nossa racionalidade nas leis da natureza”, “delírios facultados pelo livre arbítrio” e “evolução cósmica”… Temo continuar a ser um menino teimoso sem essa compreensão!

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      • RUBI RODRIGUES disse:

        Respondi A. mas o sistema o engoliu

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      • Tentando responder novamente: É A, esses conceitos remetem à ordem da natureza e do universo cujo conhecimento nos tornaria seres capazes de nos movimentar com competência no mundo, sem trombar com a realidade a toda hora. Como alguém pode dar-se bem em universo desconhecido? Olhe com atenção a tabela periódica de elementos e perceba que a própria materialidade indica que o universo se estende ordenadamente do simples para o complexo viabilizando, em cada etapa de complexificação, propriedades inusitadas e específicas da instância. Quando telescópios conseguem ler o que se passa a centenas de anos luz de distância, resulta evidente que todo o tecido universal se desenvolve dentro do espaço de possibilidades demarcado pela Geometria, pela Lógica e pela Matemática, tal como já sabiam os gregos clássicos. O universo é o local de manifestação da organização. Organizar é estabelecer nexos lógicos entre as coisas. Pensar é compreender os nexos lógicos que configuram as coisas, é compreender a inteligência organizativa que molda e constitui algo naquilo que ele é. Melhorou ou piorou?

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    • A. disse:

      Não entendi nem seu comentário, nem sua resposta! Tô “maus” mesmo… (vou voltar pra “massinha 1”!)

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  • Luiz Barros disse:

    Hoje é impossivel saber o que esta acontecendo acompanhando noticiarios. É como Nietsche enunciou a respeito do mundo, nao so da imprensa: “Não há fatos, só interpretacoes”.

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  • Mora disse:

    Rubi,concordo com você. A nossa democracia é o supremo estado da arte a que conseguimos chegar por estas bandas. Dá para melhorar se o FLM não desistir.

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  • Ethan Edwards disse:

    Houve um momento em que o sucesso dos jornalistas começou a matar o jornalismo. Talvez quando Bob Woodward e Carl Bernstein se transformaram, após Watergate, em celebridades e chegaram àquele lugar a que, até então, só chegavam astros do beisebol ou de Hollywood. Já havia, é claro, jornalistas célebres, intelectuais dotados de talento literário, ensaístas, colunistas de política ou de “cultura”, que cada redação exibia como um troféu e prova da qualidade do seu produto. Mas foi Watergate – acredito – que mudou o jogo. Deixou evidente que era possível não apenas usar o jornalismo para “fazer justiça social” como também – melhor dos dois mundos – tornar-se célebre, passar a viver num mundo diferente do frequentado pelos mortais comuns. Mais: com a queda progressiva dos valores cívicos e o declínio da educação do público, qualquer pessoa minimamente ilustrada poderia tornar-se jornalista. O jornalismo tornou-se, assim, cada vez menos um árduo trabalho de investigação e apuração dos fatos e cada vez mais uma atividade “artística”, que, como as demais contidas nessa rubrica, de uns tempos para cá tem como primeiro objetivo criar um laço prazeroso entre dois narcisismos: o do leitor e o do jornalista.
    Espero que a difusão massiva de tecnologias de comunicação torne impossível, num certo momento, o controle da população pelas burocracias e seus aliados na imprensa. (Sempre há uma China para contra-exemplo, mas, mesmo nesse caso, acredito, com Friedman, que o controle político acabará cedendo, ao cabo de algumas crises, às exigências do crescimento econômico e da produção de riqueza). Difusamente, caoticamente, errando muito e acertando outro tanto, depois de alguns anos de experiência nesse novo cenário tecnológico, a população estabelecerá – de novo é minha esperança – uma hierarquia entre os veículos, as mídias, e saberá onde encontrar a informação de que precisa. A privilegiatura quer abortar esse processo demorado e caótico, fixando ela mesma, de uma vez para sempre, o que são e o que não são fake news. Mas a privilegiatura já perdeu a iniciativa e não pode mais deter a pedra que num certo momento pôs-se em movimento. Não sei que democracia teremos dentro de alguns anos. Mas certamente será (é ainda minha esperança falando) algo melhor do que essa que nos dão agora.
    Parabéns, Fernão, pelo artigo e, sobretudo, pela persistência cívica.

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    • flm disse:

      A vaidade, caro Ethan, sempre foi um dos motores do comportamento humano. Creio até que o mais forte de todos. O nascimento do Brasil simboliza bem isso. Homens que se atiravam à temerária aventura de viajar a “outro planeta” sem nenhum recurso que lhes garantisse um mínimo de segurança para cabalar índios, em troca de espelhinhos e miçangas (enfeites) a cortar o pau de onde se tirava a tinta que tingia a roupa dos novos ricos da Europa (roupa de cardeal) ou de quem queria se parecer com eles. O homem primitivo e o mais civilizado de seu tempo correndo atras do mesmo tipo de premio (leia “Amor, luxo e capitalismo”, o post que inaugurou o Vespeiro)…
      Mas volto da digressão.
      Se as regras que Woodward e Bernstein seguiram para fazer suas matérias (confirmação de cada passo por três fontes independentes, etc.) continuassem sendo seguidas depois deles a imprensa não tinha caído no abismo do “jornalismo de acesso” que a reduziu à presente condição de arma randômica de assassinato de personagens para uso dos bandos adversários em luta pelo poder…
      Seu exemplo não me parece muito feliz, portanto.
      Eu diria antes que a TV é que é a entronização do Fausto (o de Goethe) que corrompe jornalistas e publico igualmente. O que ela sinaliza para o povo que rende aparições na telinha acaba por se impor pelo tipo de razão que você detectou: o pobre mortal pisa no pescoço da mãe para sair do anonimato. O resto o poder de determinar o que renderá ou não esse premio faz.
      No mais concordamos em quase tudo. Sim, ha de haver a depuração que as novas mídias diluíram e a qualidade das normas éticas adotadas por cada um voltarão a separar o joio do trigo. A infinita praça publica da internet terá de voltar a ser editada para que informação volte a se distinguir de fofoca e de gritaria e possa servir como ferramenta para propósitos específicos. Os direitos do individuo voltarão a ser o objetivo final de tudo e a humanidade voltará a compreender que liberdade não é mais que poder escolher o patrão e os fornecedores. A maré antitruste voltará a se sobrepor ao medo do desemprego e haverá impostos contra a falta de direitos do trabalho (os verdadeiros e não a putaria getulista). O direito de propriedade voltará a ser entendido como a única ferramenta capaz de redimir pelo esforço e pelo merecimento quem nasceu sem nada. O trabalho honesto voltará a prevalecer sobre o roubo e a pirataria desenfreados (os mártires de Hongkong, a caminho, serão lembrados como os precursores desse movimento)…
      Mas vai levar tempo e pode ser que a democracia.3 mergulhe outra vez no limbo, como a grega e a romana, antes que ressurja a democracia.4, semidireta e online…
      “Interesting times”, no sentido de Hobsbawn, caro Ethan!

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      • A. disse:

        Sinto até vergonha em meter uma colher torta entre esses dois gigantes: o articulista e o comentarista! Peço apenas licença pra cumprimentar os dois: deveria ter sido tudo escrito em caixa alta e aplaudido em pé! Pra mim serviu como uma aula de lucidez, conhecimentos e até de civilidade (quando discordam)!

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