É a volta à Idade das Trevas?

2 de agosto de 2021 § 17 Comentários

As três gigantes de tecnologia – Apple, Alphabet (Google) e Microsoft – anunciaram quarta-feira passada um lucro trimestral recorde muito acima do que Wall Street esperava. Amazon e Facebook ainda não divulgaram os seus mas navegam nesse mesmo mar. Elas cresceram explosivamente na pandemia e continuam crescendo explosivamente na pós-pandemia. A expansão exponencial do trabalho remoto e das compras online, da venda das máquinas que dão acesso a esse universo (+50% nas de iPhones), da “propaganda digital” que inclui todos os componentes de espionagem que transformaram a privacidade num doce sonho do passado e ameaçam fazer o mesmo com a democracia (+69% no faturamento dos “anúncios” persecutórios do Google) e dos serviços de suporte a tudo isso na “nuvem” (+50% no Microsoft Azure Cloud Platform) explicam os números. Elas lucraram, em média, US$ 5 bi por semana depois dos impostos, uma soma de US$ 56,8 bi no trimestre, aproximadamente o dobro do que fizeram no mesmo período do ano passado.

Seu poder de corrupção galopa junto com esses números…

No mesmo dia a China anunciou interferência maciça em todos os serviços de educação do país, na sequência de um movimento geral de recrudescimento da repressão a dissidências internas que vão das ações em Hongkong e ameaças a Taiwan ao “genocídio” dos Uigur (como Joe Biden oficialmente o classificou) com “campos de reeducação urbanos” (espécie de condomínios prisionais empilhados) onde já ha mais de um milhão de internados, esterilização em massa das mulheres dessa etnia e, até, como recém apurado pelo NYTimes, a prisão e execução de parentes dos que conseguiram fugir do país.

O anuncio da intervenção generalizada na educação derrubou fortemente as ações de companhias chinesas em Wall Street, começando pelas de educação mas seguindo por uma queda geral das ações chinesas em função da crescente insegurança jurídica que acompanha os sinais que Xi Jimping emite reiteradamente de que já não se interessa tanto em ser considerado “uma economia de mercado”, como um Ocidente sempre rasteiramente ganancioso e politicamente hipócrita apressou-se em fazer contra todos os fatos, pois cresceu e criou dependência suficiente, mundo afora, para achar que já pode baixar na mesa as cartas das suas ambições geo-hegemônicas.

Arrastada por esses macro-movimentos, a periferia vai, aos trancos e barrancos e a partir de um patamar abissalmente mais profundo de falta de proteção social, defesas democráticas e censura generalizada do pensamento, num processo vertiginoso de concentração da riqueza e aprofundamento da miséria. Uma semana antes duas manchetes concomitantes nos jornais brasileiros chamavam a atenção: “Brasil perde quase 30 mil indústrias em 6 anos” e “Arrecadação federal sobe 24,5% e bate recorde”. É a tradução tupi do mesmo fenômeno descrito acima, que resulta de quase meio século de recordes sucessivos de fusões e aquisições de empresas em todos os cantos do mundo.

Cada vez menos gente, faturando cada vez mais, é dona dos meios de produção. E consequentemente, só o Estado, sócio compulsório do Poder Econômico, cresce com essa minoria, ficando a massa crescente dos “proletários” cada vez mais impossibilitada de exercer qualquer direito, a começar pelo de ascensão social e acesso à propriedade como resultado do trabalho (ou seja, livre e independentemente de vassalagem política), num ambiente de monopólios onde ela não pode, nem escolher o patrão, que já não precisa disputa-la aumentando salários, nem escolher os fornecedores, que já não precisam disputa-la reduzindo preços, e depende cada vez mais do socorro estatal.

É esse o resultado do erro crasso dos Estados Unidos e do resto das economias líderes do Ocidente de revogar o sentido antitruste de sua democracia diante do desafio da invasão de seus mercados pelos produtos do capitalismo de estado escravocrata socialista e aceitar combatê-lo “achinezando” o seu mercado de trabalho em vez de taxar o roubo de propriedade intelectual e a ausência de direitos básicos do trabalhador nos produtos autorizados a entrar no seu mercado para favorecer a causa civilizatória na(s) China(s).

No socialismo real, versão redesenhada do absolutismo monárquico agora policiado por computador, toda propriedade pertence ao rei (ou ao dono do partido) e aos barões que se prestarem ao papel de atuar para garantir a invulnerabilidade do rei excluindo da vida econômica os dissidentes, “fator de dissuasão” que, no atacado, é muito mais eficiente que a mera violência física para disciplinar multidões. O mundo, enfim, vai-se “socializando” ao plantar diretamente o resultado final do processo socializante que é concentrar todo o Poder Econômico nas mesmas mãos que detêm todo o Poder Politico, em vez de opor um como moderador do outro, garantida a alternância do Político, como é da receita democrática.

A quebra do paradigma tecnológico foi a pá de cal, não só pelo acesso que deu aos mercados sem consideração de fronteiras, o que tornou impotentes as leis nacionais, como pelo despreparo das instituições democráticas para regulamentar a nova realidade do mundo conectado em rede. Essa é a tarefa que se apresenta agora e para a qual os Estados Unidos começam a despertar com atraso potencialmente fatal. É o mesmo “gap” com que eles se depararam na virada do século 19 para o 20 quando a evolução das técnicas de gestão, que levaram aos “ganhos de escala” na produção industrial (igualmente, na época, à custa da monopolização e do massacre dos salários), viram-se potencializadas pela corrupção política em conluio com a do setor privado proporcionada pela “ferroviarização” do território americano que teve, para a época, o mesmo efeito, guardadas as proporções, que as amazons da vida têm hoje para o pequeno empreendedor: ninguém pode viver sem ajoelhar-se para elas.

Desta vez, porem, o fenômeno é agravado pelo componente adicional da política que, menos ainda, pode viver sem as redes sociais. Estas, embora sejam hoje o que o espaço público foi desde sempre, ainda são reguladas pelas leis das empresas privadas do passado pre-informatizado, o que as isenta de cumprir determinações tão básicas do arsenal de legítima defesa do cidadão contra os tubarões de sempre quanto a Primeira Emenda da constituição americana que garante ao menos voz para todo mundo.

É com um desses dois modelos – o totalitarismo informatizado ou a democracia, sempre correndo atrás das evoluções do crime – que o mundo, cada vez mais inescapavelmente “um só” vai ficar.

Os Estados Unidos terão de reeditar, reescalonadas para termos globais, as suas batalhas antitruste e pelos direitos civis, possivelmente extendendo para o nível federal as ferramentas de democracia direta que deu aos eleitores nos níveis estadual e municipal para passar as reformas da virada do século 19 para o 20 para conseguir safar-se da armadilha e arrastar o mundo com eles como da outra vez, ou o planeta mergulhará numa Idade das Trevas de nos fazer ter saudades daquela em que a outra igreja que queimava “hereges” na fogueira reinou inconteste por quase 1800 anos.

Para domesticar a internet

10 de dezembro de 2020 § 9 Comentários

Num artigo bem pé-no-chão publicado em O Estado de S. Paulo de segunda-feira, 7 (“As três internets”), Moises Naim resumiu bem o ponto a que as coisas chegaram. A internet nem mais é global nem é aberta. Também já não é descentralizada nem é gratuita. Mais de 40% da população mundial vive em países onde o acesso, mesmo a uma internet fortemente censurada, é radicalmente controlado pelo ditador de plantão e dado em troca do controle de cada pensamento e cada passo do usuário. E onde ela continua “aberta”, pagamos pelo que vemos entregando a comerciantes todos os passos e segredos de nossas vidas, comerciantes estes que, com violência cada vez mais explícita, trabalham para transformar a posse dessas informações, bem como o acesso ao mercado “global” informatizado que as usará para nos oferecer bens e serviços com “target”, em monopólios cada vez mais estritos. 

Em outras palavras, o sonho acabou (mais um!), até para os ingênuos que em algum momento acreditaram que ele tivesse começado um dia…

Naim falava então no surgimento de três internets. A chinesa, fechada, censurada, protecionista e com “ciberfronteiras” muito claramente delimitadas onde só entram “aliados” como a Coreia do Norte, cujo protagonista central é a ditadura do partido único e seu sistema de controle dos cidadãos, e que se impõe na competição planetária por deter um bilhão de usuários. A americana, anárquica, inovadora, comercial e com altas tendências monopolistas, cujos protagonistas centrais são as grandes empresas de tecnologia e que se impõe pelo seu acesso a enormes volumes de capital, talento tecnológico e capacidade de inovar. A européia, a mais regulada e “preocupada em defender os usuários”, o que trata de fazer com um enfoque jurídico, definindo parâmetros, exportando regras e impondo multas bilionárias.

Postas em termos mais rudes, reproduções matemáticas da realidade que são, as três internets descritas por Naim resumem o que são as culturas que traduzem. A do “despotismo oriental” da chinesa, que decorre naturalmente do “modo de produção asiático” de servidão coletiva; a do “todo poder ao povo” sem nenhum controle da americana; a do “todo poder para o Estado” da européia. A grande “vantagem competitiva” da chinesa é que não tem nenhum compromisso com a lei. A da americana, se a história se repetir, é a da ausência de compromisso com o erro que só se torna possível em sistema mais centralizados e só faz sentido como recurso de defesa de privilégios. A da européia, a suscetibilidade à perpetuação daquela forma de “erro” que, na verdade, traduz “acertos” da privilegiatura que só são possíveis quando a iniciativa das ações de defesa está nas mãos do Estado – e portanto pode ser comprada – e não difundidas nas mãos do povo.

A tendência para o monopólio da competição sem limite traz como sub-produto a facilitação do controle da circulação de ideias e a instrumentalização política pela supressão da diversidade de plataformas. Não é atoa que a grande aliada das big techs (e vice-versa) é, hoje, a esquerda americana. A revolução antitruste que reorientou a democracia deles a partir da virada do século 19 para o 20 encontrou a melhor solução para esse problema ao tomar o cuidado de armar a ganância para se contrapor à ganância, obrigando empresários que conquistassem mais que uma determinada faixa de mercado (tipicamente 30%) a vender parte do seu negócio a outros empresários, forçando a concorrência em benefício do consumidor (e a diversidade sem a qual a democracia não sobrevive), em vez de tratar de limitar a força do poder econômico aumentando a força do poder do Estado (que sempre pode ser facilmente comprada pelo poder econômico).

Existem, no entanto, fortes limitações técnicas para transpor a solução do século 20 para a realidade do século 21. Dificuldades estas que foram muito competentemente delineadas no artigo “Esforço comum para domar big techs” que Rana Faroohar escreveu para o Financial Times, o Valor de terça-feira, 8, traduziu e você pode conferir ampliando a imagem abaixo. Nele Faroohar aponta outra distinção mais importante das internets – a das pessoas e a das coisas; a do consumidor e a industrial e põe ainda no horizonte o desafio da inteligência artificial – que terão de ser tratadas no enorme trabalho de regulamentação que a humanidade tem pela frente se quiser evitar de ser devorada pelo “Grande Irmão”. 

Como não poderia deixar de ser nessa realidade em que cada internet traduz a cultura de que é fruto, neste Brasil Oficial campeão mundial do xadrez da mentira a regulamentação que “O Sistema” auto-referente e preocupado exclusivamente com a sua própria perpetuação ensaia é a mentira da mentira da mentira: o controle das chamadas “fake news” como pretexto para a censura de qualquer manifestação política que fira os interesses da privilegiatura ou possa afetar as eleições, hoje cercadas por uma minuciosa barreira de censura à imprensa que varia conforme as limitações de penetração de cada meio num eleitorado funcionalmente analfabeto majoritário, mas que é inflexível na qualificação de “antidemocrática” de toda ação adversa à privilegiatura punível até com prisão no esdrúxulo “estado de direitos especiais” que a Constituição de 88 criou e “petreamente” mantém, sob o aplauso da old mídia.

Para esse departamento, o resto do mundo já entendeu que o único remédio que não deságua na censura que mata a democracia é o de sempre: deixar que os cidadãos “elejam” diariamente, pagando pelo serviço, as fontes de informação que se propuserem trabalha-la segundo regras de todos conhecidas, e ignorar o resto como boataria da praça pública a que todo mundo desde sempre também tem direito.

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