O fim do feudalismo sem gallantry
27 de janeiro de 2016 § 16 Comentários
Artigo para O Estado de S. Paulo de 27/1/2016
Não foi por acaso que a democracia nasceu nas Américas. No que ela tem de essencial, trata-se de um arranjo espontâneo entre iguais para a sobrevivência em territórios isolados e em condições adversas.
“Como vamos nos organizar para termos o que comer e podermos nos defender neste fim de mundo”?
Era a essa questão muito prática que tratava de responder o Pacto do Mayflower (1620). Era a essa questão muito prática que tratavam de responder, 90 anos antes, os portugueses que instalaram em São Vicente a 1a Câmara Municipal da Terra de Santa Cruz (1530).
Câmara de São Paulo 1628 por J. Washt Rodrigues
Durante 400 anos funcionou como um relógio a “democracia dos analfabetos” daquele Brasil das vilas esparsas, sem comunicação umas com as outras, pequenos mundos isolados onde a presença do governo de fora era rala ou inexistente e onde toda a economia e toda a autoridade política tinham de ser providas pelos próprios moradores. Do povo, pelo povo, para o povo…
Foi 1808 que veio truncar essa bela história. São os filhos do privilégio que vão escrever a história da contrarrevolução no Brasil.
O século 18 aporta na democracia instintiva do Norte a sua metade futuro. Renega formalmente o passado; sacraliza a livre circulação das ideias; elege o merecimento como única fonte de legitimação do poder e do dinheiro; proíbe proibir senão a exceção e o privilégio; trata de armar esse sonho das instituições capazes de materializá-lo e blindá-lo contra e acima das tentações do “lobo do homem”.
S. Vicente por Benedito Calixto
O século 19 provaria que não era ainda o suficiente. O poder político e o poder econômico compram-se favores. A corrupção reconstitui a força do privilégio. Tudo ameaça vir abaixo. É só na virada para o 20 que se consolida a revolução. O remédio, síntese de milênios de servidão, é de uma objetividade cristalina: para que seja mais estável o mundo dos cidadãos, tudo que é necessário é que seja essencialmente instável o mundo dos servidores do “Leviatã“. A legislação antitruste, o “recall“, as leis de iniciativa popular e o poder de veto às leis do legislador armam a mão dos oprimidos; dão ao povo a última palavra; é ele no poder.
A diferença que isso faria é a que grita ao mundo hoje…
Aqui a história foi outra. O século 18 aporta na democracia instintiva do Sul a sua metade passado. Asila no Brasil o absolutismo moribundo; demoniza a livre circulação das ideias; impõe o rei como única fonte de legitimação do poder e do dinheiro; proíbe tudo menos a exceção; trata de imortalizar o sistema atribuindo-lhe a elasticidade mole da complacência e dotando-o de um labirinto judiciário sem porta de saída que tudo mói em processos sem fim.
O século 19 provaria que não foi o bastante para matar o sonho. O Brasil americano insiste. Infiltrada pelos contrarrevolucionários “positivistas” que sentindo-a inevitável embarcam na mudança para sabotá-la, nasce afinal a Republica, vencida a escravidão. Mas é só um eco; faltam as instituições. Num hiato entre ditaduras Prudente de Morais e Rui Barbosa logram plantar o marco institucional da liberdade de empreender que faz nascer o Brasil moderno. Eterno refém da insegurança jurídica, porém, ele será mantido desde então – as veias sempre oferecidas – no limite da sobrevivência para sustentar o outro.
Câmara Municipal de São Sebastião
O sistema político da República permanece exatamente o mesmo do Império com o Estado herdando as prerrogativas do imperador sobre os súditos. O povo — tanto o analfabeto quanto o que oficialmente “vota” — não participa do jogo. É convocado, de quatro em quatro anos, apenas para sacramentar a sucessão presidencial previamente acertada no circuito fechado dos chefes de partidos agora fazendo as vezes da Corte, e dispensado a seguir.
Na Primeira Republica segue o sistema do Imperador que quando, a seu talante, alternava os partidos na chefia do governo, “derrubava” os titulares de todos os cargos públicos para que fossem redistribuídos pelo novo contemplado (“governabilidade“). A única diferença é que a troca passa a se dar mediante uma “eleição” presidencial de que se conhecia o ganhador meses antes de votações abertamente fraudadas.
Câmara de Dourados, MS, 1936
Depois dos 26 anos da ditadura Vargas, o que muda com a redemocratização, essencialmente, é que não sai mais da folha de pagamento do Estado quem quer que tenha conseguido por um pé lá dentro uma vez. Isso mergulha de vez num processo de entropia um sistema politico que sempre foi divorciado do povo. Cada vez mais explicitamente os novos interesses objetivos criados vão configurando as duas únicas classes sociais com interesses intrinsecamente conflitantes no panorama sociológico brasileiro: a dos que são sustentados pelo Estado, auferem e distribuem direitos especiais vitalícios e frequentemente hereditários que a Constituição de 88 virá a tornar “pétreos“, e a dos que sustentam o Estado e todos esses privilégios. Daí por diante, das prisões à renda per capita e ao resto do IDH, tudo será cada vez mais desigual para os habitantes desses dois brasis.
A chegada ao poder do PT, que se assume desde sempre como o campeão desse Brasil dos direitos especiais, leva o processo da entropia à fusão. Não ha saída com ele desse feudalismo sem “gallantry” dos partidos/quadrilhas hereditárias empenhados na conquista de “nobreza” (dinheiro e direitos especiais) pelo acumpliciamento a que chegamos. A “democracia” sem povo à brasileira, só de ida, esgota-se, com dois séculos de atraso, no seu próprio paroxismo.
Câmara de Paracatu, ex-Arraial do Ouro
É o fim de uma era. A meticulosidade do desastre lulopetista reitera que só existe um jeito de se construir uma nação: o difícil. Exaspera a ideia de voltar para trás mas isso já não é uma escolha. Não ha atalho possível. A História exige que todos os passos do caminho sejam trilhados. O Brasil terá de voltar à sua raíz americana; fazer as revoluções do século 18 e do século 19, ainda que acelerando o filme.
Democracia?
Faça você mesmo. “Recall“, iniciativa popular, referendo, e mãos à obra, pedra por pedra, a partir de onde se vive a vida real, que é o município. Não existe outro jeito.
Câmara de Olinda
Receita de reconstrução nacional
1 de dezembro de 2015 § 33 Comentários
Artigo para O Estado de S. Paulo de1/12/2015
A democracia teve quatro etapas de desenvolvimento.
Na primeira os cidadãos aprovavam ou não, diretamente, propostas apresentadas em praça pública. Tornou-se inviável quando a Grécia passou a ser mais que Atenas. Veio depois a Republica Romana em que o cidadão elegia quem decidia em seu nome. Naufragou na corrupção pela ausência de mecanismos de controle dos representantes pelos representados.
O passo seguinte é a República dos Iluministas que asila-se na América em 1788. É a primeira e única revolução a substituir o típico “manifesto” de direitos e objetivos utópicos em que todas as precedentes terminavam pelo desenho de instituições projetadas para submeter em vez de servir os próceres da nova ordem, pulverizar em vez de concentrar o poder dos vencedores, incentivar em vez de impedir o dissenso, e submeter cada uma dessas inovações ao debate nacional por meio dos “Artigos Federalistas” (“Federalist Papers”), de modo a “estabelecer o bom governo pela reflexão e pelo consentimento” e não mais “pelo acaso e pela força”.
Foi escassamente lido por aqui esse manual de arquitetura institucional que o uso viria a consagrar como a melhor que a humanidade produziu. A quase democracia brasileira encalhou em algum ponto bem mais próximo da versão romana que da americana. A Republica, entre nós, foi quase inteiramente “tocada de ouvido”. Não houve consertação nacional nem esforço abrangente de reforma institucional. O voto substituiu o “direito divino” mas o Estado herdou intactos os poderes discricionários do imperador sobre os súditos. Ao sabor das idiossincrasias dos presidentes tivemos, depois de duas ditaduras militares, o “acidente” democrático Prudente de Morais num breve hiato do qual Rui Barbosa teve a oportunidade fortuita de plantar o marco institucional do capitalismo brasileiro – única inovação real da Republica – com o resultado fulgurante que fez de São Paulo o que ele é até hoje. Daí em diante, porém, vimos, entre ditaduras e quase ditaduras, empilhando leis e decretos para restabelecer privilégios perdidos e criar novos, variando apenas as clientelas contempladas, e reduzindo cada vez mais o Brasil “self made” criado a partir daquela semente à condição de uma guerrilha de resistência.
Da quarta e última etapa de desenvolvimento da democracia, a que emancipa finalmente o eleitor como soberano absoluto do processo político, o Brasil ficou totalmente excluído. Mal tem notícia da sua existência, aliás.
A democracia americana da virada do século 19 para o 20 andava tão carcomida pela corrupção quanto a brasileira hoje. É nesse momento que, começando por uma única e solitária cidade, parte para a síntese entre o sistema representativo e o de democracia direta que inverteria a hierarquia da relação entre representantes e representados, submeteria o Estado à cidadania e liberaria as forças vivas da sociedade para mudar para sempre a velocidade do desenvolvimento.
O “recall”, primeiro instrumento dessa “virada”, foi importado da democracia suiça que o adotara meio século antes, e garante a todo e qualquer eleitor o poder de iniciar, mediante coleta de assinaturas, um processo de cassação do mandato do representante do seu distrito e a convocação de nova eleição a qualquer momento e por qualquer motivo, sem perturbar o resto do país. Com essa arma na mão, todo cidadão passa a ter a prerrogativa de desafiar qualquer aspecto do modelo institucional ou da ação governamental e obter obrigatoriamente uma resposta do seu respresentante sob pena de demissão. E isso altera radicalmente a ordem das prioridades na pauta política da nação.
Com um século de exercício dessa prerrogativa – que sem nunca ter passado do âmbito estadual bastou para desinfetar todo o sistema – os americanos, enquanto iam filtrando o joio do trigo, foram-se equipando, de reforma em reforma, de um ferramental cada vez mais amplo de intervenção direta no processo político que hoje lhes permite decidir no voto, sem pedir licença a ninguém, tudo que nós vivemos rezando para os nossos políticos fazerem ou deixarem de fazer por inspiração do Bom Jesus da Lapa.
Que impostos concordam em pagar; que quantidade de dívida cada governo pode emitir; qual o salário e as obrigações dos servidores; quem continua ou não empregado do Estado; qual a pena para cada crime no Código Penal; leis de inciativa popular que o legislador não pode modificar; poder de veto a leis aprovadas pelo Legislativo; confirmação ou não do juiz de cada circunscrição a cada quatro anos; revisões periódicas obrigatórias de constituições estaduais; escolha de diretores, currículos e professores das escolas públicas, tudo isso e muito mais é decidido diretamente no voto e entra ou sai da lista de questões incluídas nas cédulas de cada eleição por iniciativa de quem vota e não de quem é votado.
Democracia é isso. O resto é tapeação.
Ao fazer da facilitação das correções sucessivas de rumo o padrão do seu sistema num mundo travado pela burocracia a serviço do privilegio os Estados Unidos decolaram para o futuro. Essa nossa montanha de entulho institucional cheirando a idade média não dá mais remendo. O teste da História comprova que só ha uma maneira de construir um país “user friendly”: é as instituições passarem a ser definidas passo a passo pelos seus próprios usuários. E assim que isso começa a acontecer no elo primário da cadeia que é o município, todo o resto do sistema se vai ajustando pelo novo gabarito.
É um objetivo perfeitamente alcançável mesmo num sistema tão emperrado quanto o nosso. Apresentar cotidianamente à massa dos brasileiros o espetáculo da democracia em funcionamento onde ela de fato existe seria um poderoso acelerador. Mas ainda que a imprensa siga até o fim dos tempos tomando Brasília pelo Brasil e colocando ambos fora do mundo a rua pode conquistar sozinha esse direito fundamental à ultima palavra nas decisões que afetam o seu destino que define a democracia moderna. Tudo que é necessário é foco e persistência.
O direito de não insistir no erro
10 de novembro de 2014 § 7 Comentários
O Estado de S. Paulo dá manchete hoje com uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas para o Forum Brasileiro de Segurança Pública que mostra que para 81% dos brasileiros “é fácil” desobedecer as leis do país. Imprecisa como costumam ser hoje as matérias de jornal, esta não explica o que exatamente quer dizer esse “fácil”. Mas informa também que 57% dos entrevistados acha que “ha poucos motivos para seguir a lei” no país. As duas expressões talvez se refiram à idéia de impunidade misturada à de corrupção posto que uma terceira medição mencionada aponta para uma correlação entre essas percepções e o dinheiro ou, digamos, delas com a “capacidade de suborno” de quem responde à pesquisa posto que 69% dos pobres (que ganham até um salário mínimo) e 86% dos remediados até os ricos (oito e mais salários) acreditam que o “jeitinho” é que é a regra.
Na geléia geral brasileira – esta cuja cremosidade é permanentemente reforçada pela imprecisão da imprensa e não só dela – é sempre difícil distinguir causa de consequência, o que ajuda a nos manter atolados na confusão que torna tão confortável a vida dos que dedicam-se a nos explorar.
A questão realmente preocupante é que não é que é “fácil”, é imprescindível desobedecer a lei no Brasil, e quem não o fizer estará condenando-se à imobilidade e, provavelmente, à falência. Todo o “sistema” está montado para nos empurrar para a ilegalidade e o “jeitinho” que é o que, na prática, resulta em que fiquemos todos, e sempre, sujeitos ao arbítrio do rei.
Não é por acaso que qualquer código brasileiro, da Constituição para baixo, tenha proporções literalmente intragáveis com dezenas, às vezes centenas de milhares de regras que se vão sobrepondo umas às outras e revogando pedaços das anteriores de modo a tornar impossível, tanto cumprir todas elas ao mesmo tempo como, até, entender com precisão quais delas restaram vigentes depois dos sucessivos acrescentamentos que acabam por resultar num labirinto intransponivel.
Disso resulta que é absolutamente garantido, para qualquer autoridade em exercício procurando se locupletar, que todo brasileiro estará fora da lei não apenas em uma mas em várias ou provavlmente em todas as dimensões da sua vida: a de contribuinte, a de produtor, a de empregado, a de empregador, a de morador num imóvel ou o que quer que seja.Tudo é tão minuciosamente reglamentado que é impossível atender todas as regras.
E se está fora do alcance do cidadão colocar-se dentro ou fora da lei, é como se ele vivesse sem lei nenhuma. Ele está permanentemente exposto ao fiscal, ao distribuidor de alvarás e ao político que os nomeia e distribui isenções e privilégios às leis que ele próprio escreve, seja a indivíduos, deixando de cobrar-lhes as faltas, seja a categorias inteiras se ela for eleitoralmente significativa o bastante para merecer um privilégio consagrado em lei, o que, além do resto, incentiva a multiplicação em metástese de mais e mais leis e regulamentos. E se essa possibilidade de comprar a isenção à lei sempre existe, qualquer um pode usá-la também para invadir o direito do próximo.
Vem dentro desse pacote nefasto também o argumento necessário para não ter de desamarrá-lo nunca. Porque para quem olha de fora tudo aqui “parece” – porque ha um monte de leis e tudo está baseado em uma ou mais delas – mas não é um Estado de Direito – porque o excesso de leis resulta na anulação da possibilidade delas serem realmente cumpridas ou impostas. Em outras palavras, a lei não impõe a ordem; a lei promove a desordem.
Com isso o país fica sujeito a epidemias crônicas: de crimes de sangue, de crimes do colarinho branco, da tribunalização da vida cotidiana, do custo proibitivo do trabalho e assim por diante. E no desespero que isso provoca, lá vêm mais leis para prover curativos o que só piora a situação.
É um círculo vicioso…
Tudo isso, entretanto, são doenças infantis da democracia velhas de dar sono na gente. Quando ela estava engatinhando, na Inglaterra setecentista, e ainda se tinha memória fresca do que era a liberdade do medievo (ao menos para quem não surgisse como uma ameaça direta ao rei e aos seus asseclas, caso em que morria-se logo e a coisa ficava resolvida), uma das primeiras grandes correções de rumo que o povo impôs ao Parlamento quando este, embriagado pelos poderes que recém adquirira na “Revolução Gloriosa” de 1689, começou a querer se meter em tudo e tudo regulamentar, foi tolher-lhe essa volúpia. Para tanto os parlamentares foram simplesmente proibidos de votar e aprovar leis senão em um par de semanas por ano legislativo. Fora dessas semanas podia-se propor e debater leis mas não votá-las.
Tendo em vista o mesmo efeito, ficou consagrada a norma de que tudo que não tivesse sido formalmente proibido pela lei estava permitido, sem que os legisladores estivessem autorizados a dizer ao povo como fazer o que a lei não o proibia de fazer. Essa parte ficou reservada ao universo dos contratos entre as partes que é este que, no universo da cultura ibérica o Estado invade violentamente com as leis e os regulamentos corporativos com que nos mantém dependentes dele.
São, enfim, histórias que tambem os brasileiros ainda poderão vir a aprender na escola, um dia, quando as nossas se tiverem livrado da ditadura gramsciana a que estão submetidas hoje, o que proporcionará às futuras gerações o mesmo direito que as de outros países já têm de pouparem-se de perder tempo com a repetição de erros multisecularmente identificados como erros, o que nos abrirá as portas da inovação e nos dará o direito de errar apenas e tão somente os caminhos ainda não mapeados.
Ética para o juiz
22 de novembro de 2013 § 7 Comentários
Intervenção no 2o seminário “Ética para o juiz. Um olhar externo” ocorrido na manhã de hoje na Escola Paulista da Magistratura
Antes de começar é melhor preveni-los sobre como ouvir o que tenho para dizer.
A minha trajetória pelo jornalismo se deu por aquela vertente que Raymond Aron definia como a de um “espectador engajado”.
Buscar a verdade com todo o empenho e a mais firme disposição de desconfiar de toda resposta fácil demais que subir à minha cabeça?
Ok. Isso é inegociável.
Mas fingir “neutralidade”, como está na moda hoje nas nossas escolas de jornalismo pra mim é só uma forma dissimulada de falta de isenção. Embaça muito mais do que esclarece.
A chave para filtrar o que eu digo, portanto, é a seguinte:
A historia da construção da democracia tem sido o objeto do estudo de toda a minha vida. Desse esforço eu conclui que, entre todas as outras vertentes experimentadas pela humanidade, a democracia é o estágio moral e eticamente mais elevado que é possível alcançar na organização das relações humanas.
Democracia é o que eu quero para o meu país. Democracia é o que eu quero para os meus filhos. Portanto, a angulação do meu olhar para os acontecimentos do presente e toda a minha própria orientação ética está referida à contribuição que eu desejo dar para a construção da democracia no Brasil.
***
Eu sei que há um psicanalista entre os convidados a falar para esta plateia. Vou tomar carona na especialidade dele.
A ética relacionada a uma profissão é, sempre, um corolário da função. E a função se define ao longo da História. É uma cultura. E cultura é o que determina tudo que nós fazemos sem que tenhamos plena consciência disso.
Nesse sentido, uma cultura é quase um destino; uma fatalidade.
Mas o homem é o único animal capaz de mudar o seu próprio destino. E uma das maneiras de conseguir isso é com o recurso à psicanálise.
Eu gosto de dizer sempre que a História é a psicanálise das sociedades. Tanto individual quanto coletivamente nós só conquistamos a condição de alterar o nosso destino depois de entender claramente como foi que nos transformamos naquilo que somos.
A primeira coisa que constatei nesse meu mergulho na história da construção da democracia é que a estruturação de um determinado ordenamento jurídico é sempre o elemento fundador desse processo.
É isto que me amarra a vocês. Jornalistas, juristas e democracias não podem viver uns sem os outros…
A segunda coisa que aprendi nestes 40 anos de observação direta e mais 140 anos de cultura familiar/profissional acumulada é que no campo das criações humanas não existem verdades absolutas nem fundamentos “científicos” imutáveis.
Não ha nada que esteja para as ciências humanas como a matemática, a geometria e as leis da física estão para as ciências exatas.
A gente trabalha para organizar as sociedades assim ou assado para um propósito. E tudo que nós temos para tentar atingir esse propósito são convenções apoiadas no máximo em hipóteses informadas.
A única medida possível da qualidade desses instrumentos, portanto, é o uso. O teste real da sua eficácia para a produção dos efeitos a que se propõem.
É por isso que o estudo das chamadas ciências sociais só traz proveitos concretos se for feito em bases comparativas.
Só se pode andar para a frente, do ponto de vista institucional, medindo os resultados que cada sistema produz – os bons e os ruins – e relacionando esses resultados ao tipo de arranjo que os gerou.
Para esse efeito viver nesta nossa ilha cercada de língua portuguesa por todos os lados é um forte handicap negativo.
É impossível aprender democracia em português. Pelo simples fato de que nenhum povo que fala essa língua jamais experimentou uma.
Mas a língua não é o único obstáculo e nem, talvez, o principal. Os campeões desse tipo de estudo comparativo têm sido os franceses. Mas nem por isso eles são tão evoluídos assim do ponto de vista institucional.
Existem pelo menos mais duas barreiras importantes atrapalhando esse tipo de aprendizado.
A primeira decorre da lei universal do menor esforço que pode ser traduzida mais ou menos assim: o bicho homem vai viver da exploração do próximo sempre que isto lhe for permitido, e vai lutar com unhas e dentes antes de concordar em trocar essa condição pelo esforço pessoal e pelo mérito.
A segunda, não menos formidável que a primeira, é a barreira do orgulho que, em geral, se apoia na ignorância.
O surgimento de um francês intelectualmente humilde é um dos eventos mais raros da natureza. Mas de vez em quando acontece.
Três deles se destacaram nos estudos comparativos das duas grandes linhas de construção de instituições da era moderna: Voltaire, com as suas Cartas de Inglaterra, Tocqueville, com A Democracia na América, e o menos conhecido mas talvez o mais importante deles, especialmente para esta plateia, Henri Levy-Ullman, com o seu Le Systéme Juridique de l’Angleterre.
Depois deles é impossível dizer qualquer coisa de novo a respeito da alternativa entre as duas linhas básicas de arquitetura institucional que, apesar das variações de grau e de estilo, segue até hoje sendo a única à disposição da humanidade.
O que me resta, portanto, é só repassar os pontos principais.
Vamos a eles.
O Poder Judiciário nasce para atender a necessidade das sociedades humanas de dispor de um método pacífico de resolver controvérsias.
Historicamente falando, só existem duas maneiras de fazer isso:
- pedindo proteção a um poder estabelecido capaz de se impor pela força em troca de vassalagem ou
- atrelando o senso inato de justiça do homem, depurado pela prática da sua aplicação ao longo do tempo, à reconstituição da verdade dos fatos segundo regras precisas de aferição do equilíbrio entre as versões em conflito de modo a, no final, atribuir a cada um aquilo que os fatos provarem ser de cada um.
Toda a parcela da humanidade que superou o estado feral e, depois dele, a fase mágica, trilhou esse mesmo caminho pelo menos enquanto pôde.
O turning point que bifurcou o mundo ocidental – e atrás dele o resto da humanidade – nas sendas do autoritarismo ou da democracia é Bolonha: o momento em que a Europa Continental é forçada a se desligar do esforço, até então comum a toda a comunidade europeia, de interrogar a natureza e a História para estruturar, de baixo para cima, um ordenamento jurídico baseado na tradição para atender à necessidade de proteger o mais fraco do mais forte e os súditos dos reis e dos barões.
É a partir de Bolonha que esses europeus são constrangidos a regredir, pela força das armas dos que sabiam que seus privilégios não sobreviveriam à nova ordem que se ia esboçando em função dessa busca, para um ordenamento jurídico estruturado em cima de uma falsificação do Direito Romano especialmente desenhada para restabelecer a situação anterior e perpetuá-los no poder.
Naquela altura, só houve uma exceção.
O meu herói predileto chama-se Edward Coke. Ele era o juiz supremo da Inglaterra quando o primeiro Stuart subiu ao trono. Em 1605, cara a cara com James I que reivindicava os mesmos poderes absolutos dos seus pares do continente, ele declara o rei “under god and under the law”.
O “under the law” significa, literalmente, que sua majestade é “igual a todos nós” em direitos e em deveres. E, portanto, daí para baixo, todo mundo.
O “under god” significa, literalmente, que também o rei está submetido à verdade dos fatos e não tem mais a prerrogativa de troce-los como melhor lhe convier.
As repercussões desse ato de coragem foram muito maiores do que qualquer coisa com que Coke pudesse ter sonhado.
Enviado o sinal para a sociedade de que fazia sentido resistir, o Parlamento tomou a bandeira que o Judiciário lhe passou e o resto é história.
Com o menor preço em sangue jamais pago por qualquer comunidade humana por mudanças tão profundas nas relações de poder o povo da Inglaterra, antes do ultimo quartil daquele século, já tinha, sobre o seu próprio destino, as mesmas condições de controle que continua tendo até hoje.
Mas não foi só isso.
Ao tirar o pressuposto da frente do fato e o dogma da frente da experimentação, Coke não estava apenas cravando no chão a primeira baliza sólida a partir da qual a democracia pôde iniciar a sua terceira tentativa de caminhar sobre a Terra.
Ele estava abrindo o caminho para o surgimento da ciência moderna.
A semente plantada por ele, fertilizada pela visão newtoniana da ordem cósmica, evoluiu para o sistema de pesos e contrapesos que os iluministas americanos costuraram com toda a minúcia para não deixar nas mãos de ninguém poder demais e para fazer o funcionamento do sistema depender de todos e de cada um dos cidadãos.
Foi o momento mais brilhante da humanidade.
Desde então a democracia e a inovação, que é o único antídoto seguro contra a doença política da miséria, andam juntas.
Uma depende da outra.
Mas, e nós?
Nós … não estávamos lá. Nós somos filhos da outra corrente.
O direito português é a última cópia das cópias da falsificação de Bolonha. E o direito brasileiro é o filho temporão do direito português.
Desde então tem havido tentativas de correção de rumo. Mas é sempre remar contra a corrente. Passados quase 800 anos desde Bolonha cá estamos nós, mais uma vez, sob a ameaça real de ficarmos reduzidos a um único poder absoluto que usa a corrupção como uma arma de conquista.
O Legislativo corre o sério risco de se afogar na lama.
No Poder Judiciário o panorama também não é animador.
Nós temos 5 justiças e nenhuma definição clara de competências, embora vivamos todos sob uma única salada de leis.
Os juízes e os funcionários do Judiciário são nomeados pelos donos do poder que eles têm por função cercear.
Eu gastaria mais que a meia hora de que disponho somente para enumerar quem julga quem em quais circunstâncias, dentro dos 4 poderes (estou incluindo a imprensa), tantos são os “foros especiais”.
Daí para baixo, na escala social, sempre segundo o poder de cada corporação de afetar a vida alheia, todos e cada um têm tantos “direitos especiais” que é difícil saber se há mais brasileiros hoje sob regimes de exceção ou submetidos à regra geral.
E isso lembrando que os conceitos de “direito” e de “especial” são mutuamente excludentes num contexto democrático.
Para desfrutar do poder de distribuir e garantir tais benesses; para se apropriar desse “toque de Midas”; pode-se entrar no Judiciário pela porta da frente, pela porta dos fundos ou até semiclandestinamente, pelas janelas do chamado Quinto Constitucional.
Uma vez lá dentro, são dois anos e o sujeito sabe que ninguém mais tira ele de lá.
Removida do horizonte a ameaça da sanção contra a falta de merecimento pelo empenho que é o que move o mundo aqui fora, o resto é consequência.
Daí pra frente o que vale para a progressão na carreira jurídica, como nas demais carreiras públicas, são as relações de cumplicidade. O sangue fresco que entra no sistema fica obrigado a se comprometer com o sangue contaminado para subir hierarquia acima.
O processo judicial deixou de ser um meio para se transformar num fim em si. Mais de 70% dos que correm nestas terras não têm uma solução de mérito.
São tantos os furos na peneira dos recursos que o processo só termina se e quando o próprio condenado se declarar de acordo com a sua condenação.
Ou seja, não termina nunca.
Qualquer querela que bata numa corte – e tudo, neste país, tem de passar obrigatoriamente por elas – levará mais tempo, em geral para não ser resolvida, do que a última Guerra Mundial.
E por aí vai o nosso labirinto.
O resultado é que nós não somos mais um povo. É impossível criar laços de solidariedade até dentro de cada classe social. Nós somos uma multidão de grupinhos que vagam numa penumbra onde é difícil discernir qualquer limite do que quer que seja, cada um aferrado “ao seu”, sendo este “seu” garantido, à custa do próximo, por um padrinho que morde a melhor parte a cada vez que repete o truque de tirar alguma coisa que ele não produziu do bolso de alguém para depositá-la no bolso de outrém.
Vamos falar de ética?
Mas é possível discutir ética dentro de um sistema tão torto? Dá pra transitar dentro dele em linha reta?
Há muitos que tentam. Mas é uma luta perdida…
Portanto, senhores, a charada que, ou nós deciframos já, ou nos devora a todos é:
“Como reconstruir essa máquina em pleno voo, sem que o avião caia”?
O desafio é bravo!
Mas eu afirmo que isso é possível desde que a gente decida de que lado quer ficar.
Apesar de todas as travas e tortuosidades do sistema ele ainda está assentado no consentimento.
Se um número suficiente de nós não consentir mais isso não continua. E então os caminhos começam a se abrir como que por encanto.
Mas para que o processo se inicie é preciso uma sinalização forte. E esta sinalização tem de sair daqui.
Junho, filho das condenações do Mensalão, foi um ensaio dessa verdade que chegou a colocar o Sistema em pânico. Provou que nem ele é, nem ele se sente indestrutível. Ao contrário. É mais frágil do que se poderia pensar até então.
Mas depois foi o que foi…
Para que essa possibilidade volte a existir é preciso, antes de mais nada, que nós paremos de pensar no ritmo do nosso tempo vital e comecemos a pensar no ritmo do tempo histórico.
É só pensarmos menos em nós mesmos e mais nos nossos filhos que as respostas certas começam a se insinuar.
Esse mesmo tipo de exercício projetado numa distância um pouco maior vai lhe dizer que você, afinal de contas, não está preso a essa herança negativa por compromisso nenhum que você mesmo tenha assumido; você é só mais uma vítima dela.
Mas, e daí? Quais são as medidas práticas? Os passos concretos possíveis?
Tem vários jeitos de abordar esse problema.
As culturas asiáticas, por exemplo, vêm agindo darwinianamente. Como é de sobrevivência que se trata, elas seguem sem pestanejar pelo caminho mais curto e mais eficiente.
Seja quem for que o tenha descoberto primeiro eles partem retos para a cópia melhorada; para as instituições híbridas do produto nacional com o produto estrangeiro cuidando de selecionar as características positivas de cada um a serem preservadas.
E têm colhido resultados fulgurantes com isso!
Já nós, latinos, somos mais complicados. Os católicos mais que os outros.
“Nós vivemos confortavelmente demais dentro da mentira”, dizia Octavio Paz.
Um bom expediente, portanto, seria começar por um esforço de limpeza do entulho retórico com que insistimos em soterrar as verdades que já não adianta esconder porque todo mundo conhece, e passar a chamar as coisas pelos nomes certos.
“Justiça garantista”? “Ideologias”? “ismos”?
Façam-me o favor, senhores juristas, senhores jornalistas! Sigam o dinheiro que as palavras certas vão colar por si mesmas nos fatos certos para produzir descrições honestas do que é que realmente nos aflige.
Parece nada mas é um exercício de condicionamento psicológico que tem um efeito muito mais poderoso para desencadear reformas do que parece à primeira vista.
Depois é só ir trabalhando os vetores básicos dos vícios do sistema para que as coisas comecem a se arrumar.
Eu sei que não existem panaceias e nem ha sistemas perfeitos no mundo. Mas o mundo está andando rápido demais e nós ainda estamos tão longe do “ruim” dos melhores que é suicídio deixar como está.
É preciso inverter as cadeias de cumplicidade; mudar os sistemas de nomeação; substituir nomeações por eleições de funcionários públicos; limpar o sangue do sistema do veneno da estabilidade no emprego a qualquer preço; atrelar as carreiras públicas ao mérito…
Aqui fora tudo já funciona assim. Mas como forçar quem manda lá dentro a fazer o mesmo?
Instituir o voto distrital com recall que arma a mão do eleitor e muda a iniciativa da pauta política e legislativa da Nação das mãos de quem não quer para as de quem necessita desesperadamente de reformas seria um excelente começo.
A bola que esse instrumento põe em movimento não para nunca mais de rolar. E sempre na direção que a gente quer. Os exemplos concretos estão aí para serem conferidos.
Enfim, senhores: o que tem faltado não são remédios, é a vontade de toma-los.
O consolo é que, enquanto ela permanecer aberta dependendo do voto, por mais capenga que ela seja a política funciona assim:
SE A GENTE ACREDITAR A GENTE VENCE!
(MAIS SOBRE VOTO DISTRITAL COM RECALL NESTE LINK)
O destino dos cagados de regras
25 de setembro de 2013 § 1 comentário
Não vale a pena perder tempo com o mérito da questão posto que não é essa “espionagem” que todo mundo pratica, a começar pela Dilma e o PT, que está em causa. Ela é só o pretexto que o “lobo” alega para fazer do “cordeiro” aquilo que ele sempre pretendeu fazer, corra a água na direção que correr.
Mas é sintomático como passa batido por todo o varejado “filtro crítico” da Nação que deveria ser a imprensa e outras plataformas de expressão da opinião pública ideias estapafúrdias como essa de “regulamentar a espionagem” que a nossa presidenta, com a maior cara de séria – e, pior, talvez pensando realmente a sério nessa possibilidade! – foi exigir da comunidade internacional na ONU.
Vergonha deixa pra lá que ha coisa muito mais séria em jogo.
A regulação do irregulável é o fulcro da corrupção crônica que nos rói. A incerteza ampla, geral e irrestrita sobre o que é ou não é permitido fazer e a interpretação variável em 180 graus que pode ser dada a qualquer lei que se dispõe a definir que algo seja como não pode ser ou obrigue as pessoas a algo que, na prática, lhes ameace a própria sobrevivência é o moto contínuo que recheia o bolso dos parasitas que nos têm feito anêmicos ha 513 anos.
Já a passividade com que contamos com isso tão certo e pacificamente como que o sol nascerá amanhã é a medida exata da distância que ainda nos separa da porta de saída da barbárie.
Esse é um problema tão antigo quanto a própria democracia representativa. Ela nasceu lá nos estertores da Idade Média, época em que a humanidade não era, nem vigiada, nem regulamentada – ainda que fosse, aqui e ali, violentada mas apenas até onde alcançasse o braço que brandia a espada. Todo mundo ainda se lembrava por testemunho próprio do que fosse a verdadeira liberdade. Assim, quando começaram a tolhe-la o povo logo entendeu que era aí que morava o perigo.
Mal tinha o Parlamento inglês enquadrado sua majestade, em 1605, e logo os novos legisladores começaram a tentar regular a vida alheia com mais volúpia ainda que a que mostrava o tirano derrubado. E tanto e de tal modo que as primeiras construções coletivas para se proteger da nova encarnação do Leviatã foram arquitetadas para deter essa fome dos novos cagadores de regras.
O Brasil teria muito a aprender examinando os expedientes inventados por aquela gente com essa finalidade nos idos do século 17 e os meios e modos a que recorriam os legisladores para dar-lhes a volta e continuar a cercá-los até que, finalmente, o povo conseguiu o alívio procurado limitando as seções do Parlamento a umas poucas por mês e reservando às de apenas dois meses do ano aquelas em que leis poderiam ser aprovadas.
Enfim, nas latitudes mais altas do lado de cima do Equador o Estado e as sociedades nasceram juntos e estas trataram, desde pequenino, de torcer o pepino e educar a fera.
Mas do lado de baixo não houve exceções. As filiais do Estado Absolutista foram plantadas antes e as sociedades vieram vindo depois, aos poucos, constituídas exatamente dos fugitivos e degredados das matrizes. Gente, enfim, que veio ou foi mandada para cá fugindo do, ou sendo expelida pelo, ente regulador.
Nossa sociedade, portanto, já nasceu ensinada pela dura realidade que o Estado (absolutista como era o deles e não democrático como o inglês) é inconversável e inconsertável e tudo que se pode fazer em relação a ele é driblá-lo: “ouvi-lo” para não ser massacrado, e desobedecê-lo para não ser moído.
Pouco mudou desde então.
Manter-se à margem e na contramão do Estado sempre foi, entre nós, uma condição essencial de sobrevivência. Funcionou por alguns séculos para todos quantos conseguiram fazê-lo sem “serem pegos”, façanha que sempre dependeu de conseguir compor-se com o inimigo a um preço suportável.
Os regulamentos continuaram sendo derramados na costumeira torrente de verborragia indecifrável mas ninguém ligava muito pra isso porque os dois lados estavam de acordo que as regulamentações do irregulamentável, assim como a vasta tonelagem de impostos e impostos sobre impostos, não eram feitas para serem seguidas nem cobrados todos, mas sim para render um troco, aqui e ali, para o fiscal e para permitir que os amigos do rei tivessem sua carga aliviada e, assim, o mais esperto e bem relacionado pudesse sempre se sobrepor ao mais competente e mais empenhado, em conformidade com os cânones latino-católicos de “justiça social“.
No meio do caminho, porém, os lá de cima inventaram o computador e a vida migrou para o mundo virtual. Nela tudo fica registrado e todo caminho é traçável, sejam quais forem as voltas que se dê. E a máquina, que não descansa quatro dias por semana como o resto do funcionalismo que precisa de tempo para gastar o que nos arranca, é capaz de buscar toda e qualquer violação dos regulamentos; todo e qualquer imposto contornado. E isso tornou impenetrável a nossa antes complacente selva burocrática e insuportáveis os impostos todos e mais os impostos sobre os impostos dos impostos.
E eis-nos de volta à periferia do mundo!
Ou aceitamos que assim é, recolhemos o baralho inteiro e começamos o jogo de novo, ou não haverá vencedores nele, mesmo porque a outra novidade introduzida pelo computador é que agora o jogo não se dá mais só entre os mais e os menos amigos do nosso bondoso rei, mas entre nós todos somados e aquele pessoal lá de fora que, desde o começo, tratou de acostumar as suas feras ao relho e à rédea curta.
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