Profissão de fé no povo brasileiro

14 de dezembro de 2020 § 23 Comentários

“…o finalzinho da pandemia…”

Pois é…

Mas isso não é tudo que nele me comove. Sou cobrado por um lado e pelo outro mas em verdade em verdade vos digo: há muito mais opções entre o céu e a terra do que esta, vã, entre a esquerda e a direita da privilegiatura. Eu não sou contra Bolsonaro pelo que ele diz de diferente da esquerda. Para isso bastam os fariseus do nosso “estado de direitos especiais”. Eu sou contra Bolsonaro principalmente pelo que ele faz de idêntico a ela: pelo seu apego ao privilégio, pela insensibilidade para com a miséria que ele custa e pela pétrea determinação de não alterar nenhuma das distorções do sistema político que criou e garante a permanência dessa privilegiatura.

Pense bem: quais são as propostas da esquerda para o povo brasileiro fora as das “agendas” racial e de gênero dubladas lá de fora? E quais as da direita senão a de se opor às da esquerda? Ponho fora desse rol a equipe econômica que tenta mexer no essencial e é sabotada, mas afora ela, o barulho todo que essa gente faz é só para decidir quem vai presidir o esbulho do povo brasileiro. Quanto ao que importa mesmo – a permanência da privilegiatura, da desigualdade perante a lei, e a condenação do favelão nacional a sustentá-la até a enésima geração – todos estão de pleno acordo. E vai continuar sendo assim enquanto não tivermos uma democracia sem aspas.

Tudo na brasileira é uma mentira. O poder não “emana do povo” nem “em seu nome é exercido”. A eleição é só uma chancela compulsoriamente exigida do eleitorado para um quadro de candidaturas para a montagem do qual ele não teve nenhuma participação e sobre cujos “representantes eleitos” lhe será terminantemente vedada qualquer influência depois da eleição. Ninguém deve respeito ou lealdade ao povo brasileiro sob pena de qualquer sanção.

É daí que vem essa abstenção gigantesca. Todo mundo está farto dessa tapeação. De trocar seis por meia dúzia. A hora do povo no poder está chegando. Falta só a faísca do rompimento da censura à divulgação das ferramentas elementares para armar a mão dele que existem e funcionam ha séculos pelo mundo afora. Não precisa mais nada. Só saber que existe. Só saber como é. Mostrá-las em ação é tocar fogo nesse nosso circo mambembe. Essa é a função de qualquer jornalismo que queira merecer esse nome: iluminar. O Iluminismo, pai da democracia, foi a revolução pela informação.

Na democracia o político não tem necessariamente de ser um formulador de políticas. Isso é pra estadista, animal em extinção. Os legislativos têm de ser ateliês de acabamento técnico das leis. A pauta e a iniciativa do processo têm de ser do eleitor principalmente depois das eleições. O povo que vive do trabalho é que tem de dizer o quê tem de ser feito, e quando, para que aqui também o trabalho volte a ser possível nesta arena de feras que a competição global virou. A função fundamental do político é negociar, em nome dos seus representados, o ritmo e a profundidade da execução do que lhe for determinado fazer pelo cidadão. 

As ferramentas que proporcionam que seja a do povo a vontade a prevalecer nessas escolhas e na execução dessas escolhas, são os direitos à retomada dos mandatos concedidos nas eleições a qualquer momento (recall), à proposição e à recusa de leis por iniciativa popular (iniciativa e referendo) e às eleições periódicas de confirmação de juizes para interessá-los na reforma permanente e não na petrificação do sistema. E a condição para que tudo isso funcione com garantia de legitimidade e blindagem contra golpes é o sistema de eleição distrital pura, o único que amarra com perfeita clareza cada representante, que só pode se candidatar a representar um pedacinho definido do país, aos seus representados.

O Brasil não é educado o bastante para ser democrático? Nosso povo não tem condições de decidir sua própria vida?

Mentira!

Até o mendigo analfabeto de debaixo da ponte da última cidadezinha da beira do sertão sabe se o prefeito está asfaltando aquela rua porque essa é a prioridade ou porque é o dono dos terrenos à margem dela; se o preço das compras dele está justo ou não; se os salários dos vereadores devem ou não ser aumentados; se o “servidor público” está realmente servindo ou se está na hora de mandá-lo dar espaço a quem o faça…

Com essas quatro ferramentas simples e de uso inteiramente intuitivo vigorando nos níveis estadual e municipal mata-se na raiz mais de 90% da corrupção com que se constrói e mantem a miséria do Brasil e, aos poucos, ensaiando e errando mas com plena liberdade de corrigir os erros assim que percebidos como erros, desamarra-se o país do insano cipoal de leis feitas exclusivamente para sustentar os fiscais e seus patrões que as vão impor ou deixar de impor contra suborno.

A democracia nunca foi produto da universidade. Desde Bolonha, onde foi fundada a primeira nos albores do século 14, e da “recepção do Direito Romano” (pense bem em todos os vícios de origem que esse “recepção” trai) a universidade é a instância máxima de defesa do establishment

Em consórcio com os avanços das tecnologias de informação, de Gutemberg em diante, elas proporcionaram um extraordinário desenvolvimento das ciências exatas. Mas esse foi um subproduto não intencional combatido literalmente a ferro e fogo pelos patrocinadores dessas instituições. O DNA da universidade é historicamente reacionário. Ela veio para dar “sustentação teórica” à superação da justiça do Senso Comum, a Common Law que o continente inteiro praticava pela tradição e é a única que a razão e a sensibilidade humanas aceitam como boa, e justificar os poderes absolutos que os reis passaram a reivindicar quando a tecnologia militar e a consolidação das estradas da Europa passaram a permitir-lhes aumentar a extensão do seu poder. E o “cimento” dessa associação da intelligentsia patrocinada com o Estado sempre foi o privilégio.

Democracia é o império do Senso Comum. Não requer especial ilustração. Eventualmente ganhou substância teórica em universidades mas sempre graças a indivíduos isolados ou a dissidências no seio delas. Só pôde instalar-se de fato quando tomou distância desses “centros de saber” e de seus “mecenas”. Foi nos porões dos Mayflowers, onde iam os perseguidos deles, que a verdadeira nasceu.

Democracia existe quando o povo manda no governo e não existe quando o governo manda no povo. É simples assim. E hoje o que a universidade mais faz é tratar de soterrar essa definição subversiva debaixo de toneladas de raciocínios tortuosos para manter seus privilégios.

Eu acredito no brasileiro como acredito em qualquer povo como o mais competente agente da busca da sua própria felicidade. A humanidade é a mesma em toda a parte e em todos os tempos e é pra isto que ela vem a este mundo. Os sistemas dentro dos quais ela se organiza como sociedade é que mudam o resultado dessa busca. 

O pior de todos os sistemas com exceção de todos os outros” produz o melhor resultado já colhido em nossa longa história como espécie onde quer que se o aplique, qualquer que seja a cultura, a localização no globo ou o estágio de desenvolvimento anteriores. O povo brasileiro não será exceção.

 

Com que sonhar para 2015

25 de dezembro de 2014 § 20 Comentários

a4

Artigo para o Estado de S. Paulo de 25/12/2014

Getúlio Vargas veio para combater a corrupção, impôs o fascismo como instrumento do desenvolvimento e encarregou o Estado, com o Trabalho e o Capital a reboque, de promovê-lo. Naufragou na corrupção. Os militares vieram para combater a corrupção e prevenir a ditadura comunista, impuseram o autoritarismo tecnocrático como instrumento de desenvolvimento e encarregaram o Estado, com o Capital a reboque, de promovê-lo. Naufragaram na corrupção. O PT veio para plantar “a ética na política”, impôs o patrimonialismo assistencialista como instrumento de desenvolvimento e sujeitou o Capital, o Trabalho e o Estado ao partido para promovê-lo. Naufragou na corrupção.

Receitas e discursos antípodas, resultados idênticos.

Por mais que lhe mintam na cara o brasileiro não aprende qual é o valor do discurso dos políticos. Na Era PT o divórcio entre os fatos e sua descrição em português tornou-se absoluto mas o que há de preocupante nisso não é os governantes mentirem pela gorja, o que é no mínimo um clássico, mas sim os ouvintes terem perdido a condição de identificar tais mentiras como o que são mesmo quando elas colidem estrondosamente com a verdade bem diante dos seus olhos.

Prenda-se a Venina; liberte-se a Graça!” exatamente diante da prova do crime é só o epílogo da última temporada deste invariável “seriado”.

a000000Tais enormidades fazem parte da nossa memória atávica. Duzentos anos de gente sendo incinerada viva em fogo lento em praça pública ao fim de meses de tortura excruciante produziram o efeito de banir do horizonte da nossa consciência a prova empírica como ferramenta válida de estruturação do pensamento até 12 anos depois da independência do Brasil, quando o instituto da Inquisição foi finalmente extinto nos reinos de Portugal, Espanha e Itália (1834).

Por cima dessa trava derramou-se outro meio século de sobrevivência da escravidão, o que refinou o processo de “seleção natural” onde só permanecia “encarnado” neste mundo quem se mostrasse apto a, com absoluta convicção, afirmar que “era negro o branco que seus olhos viam” se assim o desejasse (o feitor ou) o representante do papa, conforme constava do juramento que antecedia a ordenação dos jesuítas que, por quase 400 anos, tiveram o privilégio do monopólio da educação dos brasileiros.

Isso explica porque, enquanto a ponta da civilização palpava a “harmonia dos mundos” e inventava a ciência e a democracia modernas nós tratávamos de salvar nossos corpos fingindo, sob pena de suplício e morte horripilantes, que tudo que nos interessava era salvar nossas almas.

a00000

De lá aos nossos dias, entretanto, a coisa piorou pois se não havia quem não soubesse, naqueles tempos, que tudo não passava de uma palhaçada sinistra necessária para salvar a pele, hoje há um bom contingente de brasileiros trabalhados desde a mais tenra infância nos torniquetes morais da subversão conceitual gramsciana que domina nossas escolas e ainda faz reinações em nossos palcos e em nossas redações que segue engolindo mentiras sinceramente convencido de se tratarem de verdades.

São cada vez mais raros esses inocentes posto que a maioria dos que juram hoje que “é vermelho o marrom que seus olhos vêm” fazem-no apenas para salvar seu emprego vitalício desacompanhado de trabalho, sua aposentadoria precoce não antecedida de contribuições, sua indenização por prejuízos físicos e morais não necessariamente sofridos, a valorização da sua “arte” sem concurso de talento, a sua imunidade ao castigo apesar da monstruosidade dos seus crimes. Mas ainda os há, como acabam de nos lembrar os irrefreados frêmitos de júbilo “humanitário” registrados na super-reação dos jornalistas, escritores e poetas que comemoraram como uma estupenda vitória da liberdade a readmissão no círculo de relacionamentos oficiais do “Grande Satã” da mais longeva das ditaduras que ainda aniquila e promete continuar aniquilando jornalistas, escritores e poetas.

a0000

É esse mesmo tipo de compulsão suicida da capacidade de intelecção que reaparece quando, 26 anos depois, com o país atolado até às ventas no brejo dos tribunais surge, mesmo fora da carcomida corporação dos “prestadores de justiça” que lucram com ela, quem ainda afirme embevecido que a Carta de 88, que trata de regular a tudo e a todos em todos os níveis do viver na sua sufocante minuciosidade, marca não a petrificação do Brasil arcaico mas “a refundação do Brasil democrático” ao consagrar, agora como fundamento da Nação, o “a cada um o seu direito e o seu tribunal especiais” segundo o grau da sua fidelidade ao rei.

É ele que se manifesta também quando, 260 escândalos depois, vê-se que ainda ha quem aposte que uma seção de exorcismo a cada década, movida a discursos “pela ética na política” e a delações premiadas, ainda que “dê zebra” e custe uma rápida visita à cadeia, que seja, aos donos de foros especiais, será remédio bastante para nos resgatar de uma vez para sempre dos efeitos obrigatórios que as nossas ancestrais deformações institucionais vêm produzindo década após década, governo após governo, século após século.

a2

É ele que reaparece quando mais uma vez, como desde sempre, sugere-se que “comigo vai ser diferente”; que o que falta é “vergonha na cara” ou “amor aos pobres”; que é a “qualidade dos homens” e não a das instituições que produz o milagre.

Não é. Nunca foi.

A força da corrupção é inversamente proporcional à quantidade de democracia investida numa ordem institucional, definida democracia como igualdade perante a lei, separação entre Estado e Capital, mérito sobreposto à cooptação, proporcionalidade da representação (“um homem, um voto”) e o grau de sujeição do representante ao representado, ou seja, o grau de instabilidade dos mandatos e dos cargos públicos que deveriam ser todos permanentemente sujeitos a recall. É isso que faz as coisas funcionarem da Califórnia para Leste até os “Tigres Asiáticos”, da Noruega para Sul até a Nova Zelândia, passando por tudo que está no meio, independentemente de culturas ou religiões pregressas.

O resto, ou é tapeação, ou é terrorismo.

a0

MAIS INFORMAÇÕES SOBRE O RECALL COM VOTO DISTRITAL 

1

A reforma que inclui todas as reformas

2

Voto distrital com recall: como funciona

3

Mais informações sobre a arma do recall

4

Recall sem batatas nem legumes

5

Porque não ha perigo no recall

6

Democracia à mão armada

7

Discutindo recall na TV Bandeirantes

8

O modelo honesto de participação popular

9

A “bala de prata” existe, sim

Onde estou?

Você está navegando em publicações marcadas com definição de democracia em VESPEIRO.

%d blogueiros gostam disto: