A imprensa e a morte da democracia

2 de junho de 2014 § 9 Comentários

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O Brasil tem podido caminhar como um sonâmbulo a passo cada vez mais acelerado para um desastre porque a imprensa brasileira fez exatamente isso antes dele.

O Estado de S. Paulo traz hoje duas notícias que confirmam o célebre vaticínio de Joseph Pulitzer, um dos inventores do jornalismo moderno, aquele que deve ser ativo e propositivo no seu papel de instituição imprescindível à saúde da democracia. Foi esse jornalismo que salvou a democracia norte-americana de ter o mesmo destino trágico que ameaça neste momento a nossa quando aquele país andava atolado na corrupção e na impunidade na virada do século 19 para o 20, literalmente forçando políticos tão corruptos quanto os nossos a redesenhar de cabo a rabo as instituições nacionais, tangidos por uma maciça campanha de mobilização da opinião pública.

Dizia Pulitzer que “A nossa democracia e sua imprensa vão prosperar ou naufragar juntas” e que “o poder de moldar o futuro da democracia estará nas mãos dos jornalistas do futuro”.

Os do Brasil estão à beira de um fracasso suicida nesse desafio.

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A primeira notícia a que me referi de O Estado de S. Paulo de segunda-feira enseja um paralelo interessante para explicar como chegamos a isso.

Entre cinco chamadas no mesmo “rodapé” da primeira página, quatro delas direta ou indiretamente relacionadas à dramática situação política que o Brasil está vivendo, o jornal encaixa com grande estardalhaço, mais destacado que os outros, este título: “Alex Atala contrata empresa gestora”.

Alex Atala, para quem não sabe, vem a ser o dono de 2 (dois) restaurantes, um deles entre os 10 mais estrelados do mundo, e 1 (um) bar em São Paulo o que já faz o leitor mais atento se perguntar o que, diabos, uma notícia como esta esta fazendo em lugar de tanto destaque, puxando toda a seção de “Negócios” do jornal mais importante da cidade mais importante da economia do país.

Mas deixemos este pormenor de lado por enquanto.

Lá dentro o leitor ficará sabendo que Alex Atala contratou uma empresa gestora especializada em private equity e venture capital para cuidar do seu dinheiro e especular sobre a possibilidade de, no futuro, talvez, fazer de um de seus restaurantes uma rede. Ficará sabendo também que Atala contratou, além dessa, outra empresa, esta de marketing, para cuidar do “seu maior asset”, a “marca” Alex Atala, e gerenciar o tratamento da sua própria imagem.

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Felizmente Alex, lúcido como sei que é este meu particular amigo, não determinou que o especialista em finanças contratado para cuidar do seu dinheiro saísse pilotando as panelas do DOM, o que resultaria inevitavelmente, numa desastrosa gororoba, na sua desclassificação da lista dos 10 melhores restaurantes do mundo e, finalmente, na sua provavel falência.

Nove entre 10 jornais brasileiros e internacionais, entretanto, fizeram exatamente isso: premidos pela crise da mudança de paradigma tecnológico contrataram empresas especializadas para reorganizar seus números e seus processos de gestão mas, em vez de como Alex, reservá-las para fazer aquilo que é da sua especialidade, colocaram esses gestores de contas e administradores de empresas no comando de suas operações jornalísticas, muitas delas depois de jogar no lixo o seu maior asset que eram os seus mais experimentados jornalistas, em alguns casos junto com suas históricas “marcas registradas”.

O resultado é essa gororoba que a imprensa brasileira serve hoje, em que notícias como esta sobre os futuros possíveis negócios de Alex Atala ganham mais destaque que o golpe de estado que está em curso no país, golpe de estado este que a maioria dos jornais e TVs nacionais sequer registrou simplesmente porque seus novos “profissionais de redação” não têm repertório para entender os fatos pelo seu real significado, que é a hipótese na qual prefiro acreditar.

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Se pilotar panelas numa cozinha de alto nível não é coisa para principiantes, exercer o Quarto Poder numa democracia, especialmente numa que vive sob ameaça permanente num país sem nenhum conhecimento, nem da sua própria História, nem da História alheia, e pouquíssimo informado sobre por onde anda, em matéria de preparação do terreno institucional para essa disputa, o resto do mundo com quem compete por um lugarzinho ao sol cada vez mais ferozmente disputado é coisa que requer especialização ainda muito mais complexa.

Para estar à altura desse desafio é preciso, antes de mais nada, especializar-se no conhecimento de todas as vertentes e todas as nuances da engenharia das instituições e da história da sua evolução ao longo da aventura humana na Terra, que é o que determina se os milhões de indivíduos presos a um país e a um regime de governo serão livres ou se tornarão escravos, terão ambiente para trabalhar e prosperar ou serão condenados à miséria por mais que se matem de nadar contra a invencível correnteza torta em que as instituições tortas infalivelmente resultam.

Entregar a pilotagem dessas “panelas” em que são cozinhados os destinos de milhões de pessoas a indivíduos inteiramnte alheios a este campo do saber não é coisa que se possa remediar levantando-se da mesa e, eventualmente, recusando-se a pagar a conta de um prato intragavel. Pode resultar numa tragédia nacional de proporções argentinas que perdurará por décadas e deixará sequelas por séculos.

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É, portanto, um imperdoável crime de lesa pátria. E, no entanto, é exatamente isso que, espantosamente, está acontecendo com este país.

Esta é a terceira vez, nos últimos quatro anos, que o PT tenta repetir o mesmo golpe contra a democracia brasileira. Estranhamente, ele foi barrado nas duas primeiras pela ação da imprensa que, ainda sob a batuta de jornalistas aparelhados para a sua missão, cumpriu o seu papel fazendo o alarme correspondente ao tamanho da agressão que estava em curso e do potencial destrutivo que ela tinha e ainda tem.

A primeira foi em 2009, nas vésperas do Natal, quando um Lula de saída do Palácio do Planalto, assinou um decreto subscrito pelos seus 30 ministros, instituindo o Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH) que substituia a demoracia representativa brasileira, baseada no padrão mundial ainda que muito imperfeitamente, por um esquema primariamente falssificado de uma “democracia direta” de que só participam os amigos do partido, golpe tão velho quanto todos aqueles do milênio passado, de que o planeta inteiro ainda tenta se esquecer, que levaram o mundo a uma sucessão de genocídios.

Não pode haver engano inocente, portanto, a respeito de onde isso vai nos levar e quanto vai nos custar.

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Houve uma segunda tentativa a cargo do Secretário Nacional de Direitos Humanos de Lula, Paulo Vannucchi, em 2012, novamente abortada pelo clamor da imprensa. Nesse meio tempo, este senhor dedicou-se a nos intrujar com pedaços isolados desse monstrengo jurídico que foram sendo implantados “no tapa”, em função do progressivo arrefecimento do estado de alerta da imprensa brasileira e do crescente esvaziamento das redações de jornalistas preparados para a profissão que, jejunos de qualquer repertório que lhes permita pensar com a própria cabeça, decidiram tragar sem mastigar o engodo que o PT lançou e, com a inestimável ajuda da imprensa, convenceu este país a acreditar que o que ele mais necessita é voltar 50 anos para trás e não saltar 50 anos para a frente. Posso imaginar o misto de gozo e surpresa que isso não está provocando nas suítes especiais recentemente construidas no presídio da Papuda…

Graças a esse processo de catarse coletiva que jamais poderia se instalar sem o concurso decisivo da imprensa a revisão da Lei de Anistia, que era parte integrante do PNDH, passou “a galope” por cima da Constituição. A desarticulação do Poder Judiciário, completada com a anulação do julgamento do Mensalão e enterrada simbolicamente na semana passada com a rendição do ministro Joaquim Barbosa, a última figura de dentro do Sistema a ter plena consciência da gravidade do que está se passando neste país e a resistir aos golpistas responde pelo apagamento de outros tantos capítulos.

Mas em tudo aquilo que o PNDH tinha de mais letal, visando diretamente o coração de toda democracia que é o princípio do um homem/um voto com cada cidadão elegendo seus representantes por voto secreto dentro de um sistema mundialmente consagrado de aferição da legitimidade desse processo, a atual versão do golpe do PT continua exatamente igual  às anteriores. E, no entanto, desta vez a imprensa resolveu deixar a coisa passar!

Por que? O que foi que mudou de lá para cá?

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Morreram Ruy Mesquita e Roberto Civita, os dois últimos líderes do jornalismo brasileiro conscientes da função institucional da imprensa nas democracias ainda em posição de determinar as atitudes políticas de suas publicações. Com isso ficaram livres, em pleno comando, os administradores de empresas que os sucederam e que, nos intervalos de suas atividades principais, brincam irresponsavelmente algumas horas por dia com a última linha de defesa da democracia brasileira.

Eis porque, embora o decreto golpista de dona Dilma nos tenha sido atirado sobre as cabeças na sequência do Encontro Nacional do PT em que, conferidas as contas de votos comprados e votos ainda soltos por aí, a “presidenta” sentiu-se suficientemente segura para deixar de lado a “média” que vinha fazendo com a legalidade e reintroduziu o “controle da mídia” no programa oficial de um eventual governo Dilma 2 (ou Lula 3) redigido por ninguém menos que o sinistro Marco Aurélio Garcia, desta vez a imprensa resolveu ignorar o fato e deixar rolar!

Tudo isso acontece a um ano de distância das manifestações que o mundo viu como uma auspiciosa promessa de mudança do Brasil e nas vésperas do país mergulhar na letargia da Copa do Mundo seguida das férias de meio de ano que darão ao Congresso Nacional, em meio a uma sucessão sem fim de feriados entre os “fins-de-semana” de quatro dias dos senhores deputados e senadores, um total de 6 dias aptos para debates e votações – 2 no mês de junho e 4 no de julho!

Com a democracia brasileira sangrando, ferida de morte, O Estado de S. Paulo desta segunda-feira providenciou uma sequência para o assunto que justifica nada menos que o pânico. É a segunda matéria que mencionei no início deste artigo, chamada na 1a página ao lado e com o mesmo peso da que dá conta dos possíveis futuros negócios de Alex Atala, dando pista livre ao ministro Gilberto Carvalho para “criticar como hipócrita a oposição aos conselhos” com que o PT quer substituir todo o sistema de pesos e contra-pesos que definem a democracia que dois ou três gatos pingados ousaram esboçar no Congresso Nacional.

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Nessa matéria o Secretário Geral da Presidência da República, figura totalmente subordinada ao próprio presidente, “deita e rola” em cima do “gravador com pernas” que o jornal gentilmente pos à sua disposição, citando até os governos militares como precedentes das virtudes “democráticas” do decreto do PT (e nem essa comparação foi honesta), que é, sem tirar nem por, o de transferir para ele próprio, o Secretário Geral, todas as atribuições que nas democracias de verdade são distribuídas entre os Três Poderes, as bancadas da situação e da oposição, os políticos e os técnicos nas autarquias e empresas públicas em todas as atividades de todos os entes de governo do país, aí incluídos indiretamente estados e municípios.

E tudo isso sem que lhe fosse dirigida uma única e solitária pergunta ou contestação ou feita qualquer análise direta do texto do decreto que concentra literalmente todos os poderes da Republica em tres salas contíguas do Palácio do Planalto: a do Presidente, a da Secretaria Geral da Presidência e a da Casa Civil, conforme você poderá conferir no artigo abaixo deste em que examino, ponto por ponto, o que está escrito na íntegra do decreto que o PT quer nos fazer engolir.

O jornalismo que sobrou não tem repertório para mais que abrir aos próprios golpistas a defesa do golpe e, quando muito pressionados, procurar alguém “contra” para dizer duas ou tres bobagens na coluna do lado na expectativa de livrar, com isso, a publicação da pecha de vendida.

Ainda é tempo de reagir porque sempre é tempo de reagir. E só a imprensa pode fazê-lo. Precisamos, no entanto, de um milagre porque o Brasil está às portas de chegar onde o PT quer colocá-lo apenas e tão somente porque a maior parte da imprensa já chegou lá antes dele.

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Democracia brasileira é enterrada como indigente

30 de maio de 2014 § 15 Comentários

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Conforme foi tantas vezes antecipado aqui no Vespeiro que corríamos o risco de que viesse a acontecer, a democracia brasileira morreu no dia 23 de maio próximo passado e quase ninguém percebeu.

Poderá eventualmente reviver com tratamento de choques e injeções de adrenalina constitucional no coração que parou de bater mas a decisão de aplicar ou não esse tratamento está, agora, nas mãos do doutor Ricardo Lewandowski e do que mais sobrou dentro do Supremo Tribunal Federal depois da saída do ministro Joaquim Barbosa que, muito provavelmente, está relacionada a esse episódio.

Sem nenhuma “participação social”, sem perguntar nada a ninguém na sua solitária decisão, a presidente Dilma assinou naquela data o decreto 8.243 (íntegra aqui), editado pelo Diário Oficial da última segunda-feira, 26, que institui a “Política Nacional de Participação Social” que determina que, doravante, “todos os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta estejam obrigados a usar a participação social para a execução das suas políticas”, expediente, explica o Diretor de Participação Social da Secretaria Geral da Presidência, Pedro Pontual, que vai “transformar os instrumentos criados para este fim em um método de governo, oficializando suas relações com os novos setores organizados e as redes sociais”.

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De ministérios a agências reguladoras, portanto, tudo estará submetido, doravante, a esses “novos setores organizados”. E essa “relação oficial” com eles se dará mediante convocações dirigidas aos “nove conselhos” que a augusta presidenta houve por bem criar cujas “rotinas de trabalho (não remunerado) e métodos de escolha de integrantes serão definidos por portarias editadas pela Secretaria Geral da Presidência da Republica” (ministro Gilberto Carvalho).

Serão os seguintes os nove “conselhos”, decreta sua augusta majestade:

1) conselho de políticas públicas; 2) comissão de políticas públicas (sic); 3) conferência nacional (sic); 4) ouvidoria pública federal; 5) mesa de diálogo (sic); 6) fórum interconselhos (sic); 7) audiência pública; 8) consulta pública e 9) ambiente virtual de participação social.

O decreto não explica o que será feito do Poder Legislativo eleito por todos nós para cumprir exatamente essa função, nem tampouco do Poder Judiciário e seus órgãos auxiliares tais como tribunais de contas e agências setoriais mas, mantida essa aberração como está é fácil inferir. A lógica da coisa, mesmo vazada na linguagem quase sempre incompreensível de dona Dilma e seus auxiliares, é absolutamente transparente e auto-evidente.

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Para os leitores mais jovens recomenda-se que vão ao dicionário procurar o significado do termo “soviete” para compreender melhor o que está se passando.

Mas apesar do tamanho dessa monstruosidade jurídica, dos atentados à Constituição que ela carrega e da assinatura por baixo de tudo a confirmar que a coisa é pra valer, nenhum jornal registrou o acontecimento na primeira página e nenhuma televisão sequer mencionou o assunto.

O Estado de S. Paulo publicou uma matéria dando as informações acima na 4a feira, dia 28 de maio, no último canto da última página que dedica ao noticiário político nacional. Sua manchete, naquele dia foi “Ato vira confronto: Dilma diz que não terá ‘baderna’ na Copa”. Nenhuma das outras 12 “chamadas de 1a página” do jornal foi considerada para este assunto de somenos importância. Na 5a, 29, O Estado abriu sua seção de editoriais com uma peça contundente que dava a real dimensão do que está em curso. “Mudança de regime por decreto” era o título que comprova que ainda são jornalistas os responsáveis pela página 3 daquele matutino, página esta que é independente do resto do jornal que, já naquele dia seguinte à explosão da “bomba” que ele retratara no dia anterior como um “traque”, tinha esquecido completamente o assunto.

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A Folha de S. Paulo segue sem registrar o fato. O Globo, ainda que com atraso, teve a dignidade de noticia-lo hoje com chamada na 1a página, alertado, provavelmente, pelo editorial do Estado. Foi, portanto, uma “barriga” e não coisa pior. O espaço eletrônico de Veja que, para além da página das Notas e Informações do Estado mantem num dos seus cantos o último espaço jornalístico “de propriedade” de jornalistas de verdade depois que os manuais de redação foram substituídos pelos manuais de “melhores práticas de governança corporativa” em todas as redações do Brasil, também vem “bombando” o assunto na solitária coluna de Reinaldo Azevedo.

Nos jornais das televisões foi o do costume: nada. Continuam todos, como quer o PT, assim como no resto do espaço dos jornais de papel, discutindo apaixonadamente, em páginas e mais páginas e minutos sem fim, o tema crucial para este Brasil do Terceiro Milênio do “golpe contra a democracia”… de 1964.

O de 2014 não lhes diz respeito. Se depender deles ninguém reclamará o corpo; a democracia brasileira será enterrada como indigente.

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As ilustrações homenageiam capa de Fernando Mitre para o Jornal da Tarde sinalizando a rejeição das “Diretas Já

 

 

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