Nossas instituições e sua circunstância

23 de julho de 2019 § 6 Comentários

Artigo para O Estado de S. Paulo de 23/7/2019

No primeiro debate entre os 20 concorrentes à indicação para candidato a presidente pelo Partido Democrata nos EUA o principal “argumento de venda” foi apresentar-se como quem conseguiu o maior numero de contribuições abaixo de US$ 200 e recusou mais doações milionárias. Está aí um exemplo de como a boa regra induz o bom comportamento. Naquele país a única que existe para financiamento de campanhas é que os concorrentes estão obrigados a declarar cada contribuição recebida no prazo de cinco dias. Cabe ao eleitor avaliar se elas o comprometem ou não. Aqui onde preferimos que o estado fiscalize tudo, inclusive a si mesmo, a perspectiva mais palpavel é que na próxima eleição nos seja arrancado mais que o dobro do que nos foi arrancado na última, que cada partido receba seu quinhão segundo o desempenho na eleição anterior e não pelo que tiver feito de bom ou de ruim com o mandato recebido, e que jamais saibamos quem, dentro deles, ficou com quanto desse dinheiro.

As instituições, como as pessoas, são elas e sua circunstância. Não é atoa que a expressão que define a ordem institucional democrática é checks and balances, “freios e contrapesos”. Cada instituição só produz o efeito desejado quando referida a todas as outras. Tomadas isoladamente ou encaixadas num contexto pervertido, elas quase sempre produzem o efeito inverso do que se propõem.

No estado democrático de direito “todo poder emana do povo” e toda lei só se torna lei mediante o seu consentimento explícito. O primeiro direito que condiciona todos os outros é, portanto, o do eleitor livrar-se na hora do representante que só age em prol de si mesmo. E para que isso seja possivel é preciso, primeiro, que o sistema eleitoral permita saber exatamente quem é o representante de quem e que os representados, e não os representantes, tenham a prerrogativa exclusiva de acionar os instrumentos de força criados para constrange-los a lhes ser fiéis. Inverter essa hierarquia é inverter toda a cadeia das lealdades. Nada é “consertável” no Brasil antes que consertemos isso.

São as circunstâncias reais e não a teoria que põem o corte de um lado ou do outro da lâmina de cada instituição. Afirmar como “óbvio” na ordem institucional brasileira onde o estado tem todas as prerrogativas e o cidadão nenhuma, o que é óbvio na ordem institucional americana onde se dá exatamente o contrário é manter o país no beco sem saída dos falsos silogismos em que andamos perdendo sangue, suor e lágrimas ha 519 anos.

Assumir que a decisão monocrática do sr. Toffoli é desinteressada, nada tem a ver com Flávio Bolsonaro e nem tira da porta da cadeia e põe na da rua todos os criminosos com e sem mandato mais periogosos da república é tão falso quanto negar que o sigilo bancário (até dos agentes do estado) é um direito que deve ser protegido em princípio … se todas as outras instituições estiverem estruturadas para manter o estado nas mãos dos cidadãos e não o contrário.

Se, por exemplo, os promotores públicos, aqui como lá, fossem eleitos pelo povo e não nomeados pelos políticos que têm por função fiscalizar e contra cujos poderes têm obrigação de nos defender; se os juizes passassem por eleições periódicas de confirmação; se tivéssemos os direitos à retomada de mandatos e ao referendo do que vem dos legislativos é provavel que não nos ocorresse considerar uma lei específica de abuso de autoridade. Mas sem a ancoragem de tudo à palavra final do eleitor e com todo cargo ou emprego público sacramentado como um “direito adquirido” inalienável, é certo que até a lei de abuso que vier será usada seletivamente, como todas as outras, na defesa de privilégios contra qualquer tentativa de eliminá-los.

O trabalho jornalístico que não parte desta que é a nossa realidade, esta sim pra lá de óbvia, já começa falso. A justificativa do instituto do sigilo da fonte, por exemplo, é sacrificar a transparência da informação em nome do valor mais alto do aperfeiçoamento da democracia, a primeira e inegociável razão de existir da imprensa democrática. Mas publicar como se fosse produto de jornalismo investigativo os grampos e dossiês que as partes que disputam o poder livres de qualquer compromisso exigível pelos eleitores atiram umas contra as outras e manter anônima a fonte, quando não é um ato de cumplicidade é um convite para o aparelhamento do jornalismo.

A virtude sempre precisou de incentivos. A boa regra para estes tempos em que o crime especializou-se em usar em vez de fugir da imprensa e da lei, seria a do full disclosure ou “transparência absoluta” nas redações. O jornalista que exige que servidores em atividade, como Deltan Dallagnol, sejam obrigados a relatar as palestras que fazem indicando quem pagou por elas e quanto além das atividades conflituosas de suas esposas e parentes próximos, não terá nenhuma dificuldade de entender a importância do full disclosure, não só das peças de “jornalismo de acesso” onde saber de onde vêm os tiros contribui muito mais para o aperfeiçoamento da democracia que o apedrejamento do alvo visado, mas até de contemplar a criação de uma versão doméstica da lei anti-nepotismo.

Não ha conflito obrigatório no fato de jornalistas com conjuges, companheiros ou parentes em linha reta, colateral ou por afinidade até o terceiro grau assalariados ou detentores de privilégios concedidos pelo estado participarem da cobertura da guerra do Brasil plebeu contra a privilegiatura. Mas a obrigação de declara-lo sob o hiperlink de cada assinatura certamente os incentivaria a ser mais equilibrados no direcionamento das suas investigações além de ter um efeito fulminante contra a instrumentalização anônima da arma da imprensa.

Os destinos do jornalismo e da democracia sempre estiveram amarrados. O choque de transparência, para além de distingui-lo definitivamente da luta pelo poder e da guerra suja da internet teria para a qualidade do jornalismo e da democracia brasileiros um efeito restaurador.

Democracia direta: a verdadeira e a “fake”

12 de março de 2019 § 6 Comentários

Artigo para O Estado de S. Paulo de 12/3/2019

A capacidade de adaptação às mudanças sempre foi o fator decisivo de sobrevivência das espécies. Nas sociedades humanas também. A velocidade de resposta das instituições à mudança é o fator decisivo de sucesso.

Os Estados Unidos só viraram o que são hoje porque ao longo de todo o século 20 tiveram um quase monopólio da flexibilidade institucional que a vida como ela é requer. O resto dos países europeus, dos quais o Brasil é um prolongamento, não nasceram democráticos como eles. Foram obrigados a se ir democratizando, de confronto em confronto, pelos oprimidos do absolutismo que conheciam do novo sistema inventado na América e os encantava pelos efeitos que produzia pouco mais que ecos.

Foi esse desconhecimento que permitiu que tantos adotassem da democracia o discurso mas mantivessem do absolutismo a essência. Os portugueses foram os mestres dessa arte. No “sistema corporativo” que inventaram, a “cabeça” (antes o Imperador e depois da Republica o Judiciário, o poder não eleito que herdou as prerrogativas dele) reserva a cada parte do “corpo” o “direito especial” que houver por bem lhe outorgar.

Esse “especial” e o poder de distribui-los ao seu bel  prazer, a exata negação da essência da democracia cuja base é a igualdade de direitos, é o que nos mantém, a eles no poder, e a nós na servidão semi-feudal de que nunca saímos. Da “direita” ou da “esquerda”, com ou sem “revoluções”, eles vêm sempre dos 5% da população que recheiam as corporações que controlam o estado, as estatais e o poder de se auto-atribuir privilégios.

O círculo não foi rompido com o advento do governo Bolsonaro. O que ele representa é um movimento de subversão da hierarquia interna do “sistema” obtido com o recurso às redes sociais num momento em que a crise do estado levou o antigo caminho das urnas a um desmonte parcial. O governo eleito vem do “baixo clero”, sim, mas da mesma “nobreza” de detentores de privilégios em que o país continua dividido desde que foi arrancado de sua “americanidade” pela invasão do Rio de Janeiro pela corte portuguesa em 1808.

Tiradentes foi o último episódio realmente revolucionário do Brasil. Sendo a unica revolução real da humanidade a que decorre da “iluminação” proporcionada pela conquista da autonomia na busca da verdade que só a educação promove, a manutenção da sombra da ignorância é, como sempre foi, a arma essencial do status quo. Com o recrudescimento da censura, depois do enforcamento do alferes, a toda referência que não fosse européia que a Republica não conseguiu romper, quem sonha com mudanças no Brasil sonha com os efeitos de um processo cuja mecânica o país inteiro desconhece quase absolutamente, e que é fruto de uma tecnologia de construção de instituições cheias de sofisticadas sutilezas. É nisso que reside a nossa maior dificuldade. O que se pode reformar, para colher lá na frente esta ou aquela mudança real de rumo de uma sociedade, são as instituições. Mas muito maior que a dificuldade de saber como conseguir abrir a porta a mudanças tem sido a de formular quais mudanças, exatamente, é preciso fazer para colher a democratização que todos desejam.

A História tem seus caprichos. Bolsonaro não é a revolução mas chega no momento em que ela se tornou inevitavel. Uma vez no poder, deu-se conta, por meio de um eficiente trabalho intensivo de informação de sua equipe econômica, da urgência e da gravidade terminal da crise da previdência. Conduzido por ela, vai bater na barreira de sempre. O medo de cair no vácuo venezuelano levou a uma supervalorização da constituição antes da definição da sucessão pelas redes sociais. Mas o fato é que, na ausência do “direito divino”, ela foi transformada no congelador de privilégios da hora. E tem sido brandida como antes brandia-se a heresia para impedir avanços.

A verdade é a unica arma capaz de romper essa barreira. A reforma de Paulo Guedes, por mais próxima que chegue da profundidade com que foi desenhada, apenas abrirá a porta a um processo de ajustes permanentes em que o Brasil terá de se engajar daqui por diante, dadas as mudanças na duração da vida, nas relações de trabalho, nos costumes, em tudo, enfim, que até aqui descrevia a condição humana. A previdência, assim como tudo o mais na ordem institucional brasileira e mundial passa a ser um processo em permanente evolução que vai requerer retoques em velocidade alucinantemente crescente. Se nunca fez sentido enfiar privilégios previdenciários na constituição, portanto, agora faz menos ainda. Desconstitucionalizar a previdência é, portanto, um objetivo absolutamente prioritário.

A forma como a vida nacional já vem sendo decidida atraves das redes, contornando instituições esclerosadas, proporciona uma sensação de alívio neste primeiro momento de “vingança” dos “sem voz”, mas não passa de uma reprodução perigosamente tosca do que os suíços vêm praticando ha 729 anos e os americanos de lá importaram ha cerca de 120. Como toda ferramenta esse expediente serve, porém, a quem quer que recorra a ele, para o bem ou para o mal. O que tira desse sistema o seu potencial venenoso é a construção de um modelo confiavel de representação do país real no país oficial. Não ha mal nenhum em que o povo encurte os caminhos das suas relações com o governo desde que seja para REFORÇAR a representação aumentando o poder de cada representado sobre O SEU representante. Isso só se consegue com eleições distritais puras. Desde que se saiba exatamente qual representante representa cada conjunto de brasileiros, não ha mal nenhum, muito ao contrário, em que a relação entre eles seja a mais direta possivel, para fazer ou desfazer leis, para encurtar ou encompridar mandatos. Mas se esse encurtamento partir do governo, o resultado é opressão.

Nesse sentido, os Bolsonaro vêm “acertando no errado”, o que lhes tem rendido  poder, aquela coisa que corrompe sempre e corrompe absolutamente quando é absoluto. Por isso é bom não esquecer jamais. Não existe democracia sem representação.

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23 de janeiro de 2017 § 8 Comentários

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29 de janeiro de 2013 § Deixe um comentário

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