A guerra de Putin vista da China

13 de abril de 2022 § 4 Comentários

Em entrevista ao New Statesman esta semana Sergey Karaganov, assessor de confiança dos presidentes Boris Yeltsin e Vladimir Putin, assim como do ministro do Exterior deste último, Sergei Lavrov, repetiu o recado: para a Russia esta é “uma guerra existencial”, de modo que se não tivermos “algum tipo de vitória” vai haver “uma escalada” que, sim, pode ser nuclear.

Claro, países nunca deixam de existir, mas para Vladimir Putin e sua camarilha de ladrões essa guerra é, sim, “existencial”. Por que razão não houve ainda nem mesmo uma escalada na guerra convencional mas, ao contrário, uma “revisão dos objetivos” da “operação especial” desastradamente posta em curso em 24 de fevereiro pelo ex-agente da KGB, deixando de lado a vitória a qualquer custo para adotar este “algum tipo de vitória” que “é preciso alcançar” para salvar a face é coisa que seguramente tem a ver, para além da força da reação militar da Ucrânia, sobretudo com o modo pelo qual a China reagiu ao desatino de Putin.

Foi no longo telefonema havido entre Xi Jinping e ele dias depois de iniciada a coisa que se deu o primeiro “pé no breque” que Putin não tem podido mais aliviar desde então…

Com toda a tecnologia que levou à globalização do que já é globalizável – a fina fatia da humanidade que, em todos os países, saltou da economia de sobrevivência para a economia de consumo e fala algum inglês – o resto do vasto mundo ainda é uma constelação de servidões isoladas que se expressam em línguas e alfabetos mutuamente incompreensíveis, sem nenhuma comunicação direta entre si e que, também graças a isso, só têm, umas das outras, a imagem filtrada a que seus mestres lhes derem acesso.

No país que já está onde Lula e a imprensa da privilegiatura brasileira querem chegar só “A Verdade” tem vez, de modo que tudo que aparece e permanece na internet É a posição oficial do governo. Todo o resto ou já morreu ou permanece em segredo bem guardado na mente de cada indivíduo tentando evitar o tiro na nuca.

Assim, um passeio pela internet chinesa oferece a oportunidade de saber o que a China oficial está pensando e levando a China real a pensar sobre a aventura de Putin. E não raro essas análises mostram mais lucidez que as dos “especialistas” amestrados da nossa “imprensa livre”. 

Na plataforma weixin.qq.com está publicado desde 16 de março, sem nunca mais ter sido apagado pela polícia da internet do Partido Comunista Chinês que é de matar Alexandre de Moraes de inveja, um relato dos acontecimentos que precederam a invasão, em que Putin é acusado de ter “manipulado” Xi Jinping ao levá-lo a assinar um acordo com a Russia que o colocou inadvertidamente “na armadilha de uma posição desconfortabilíssima” (an evil-like and unkind position foi a expressão usada na tradução direta do texto do chinês para o inglês) em relação a uma guerra que “viola as regras básicas da civilização”.

Segundo o artigo Putin abordou Xi na abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno ameaçados de boicote pelos Estados Unidos com um tratado envolvendo 15 acordos de cooperação apoiando todas as bandeiras geopolíticas da China, da nacionalidade de Taiwan à iniciativa conjunta com a Organização Mundial de Saúde para traçar a origem do coronavirus para fora daquele país, passando pelo apoio às advertências contra “a intenção da Nato de voltar à guerra fria”. Xi não tinha porque recusar assina-lo embora o artigo lembre que os 15 acordos não acrescentavam novidade alguma pois todas essas iniciativas eram, desde sempre, apoiadas pela Russia. Mas o fato de te-lo assinado “de modo nenhum significa que a China soubesse com antecedência ou apoiasse a invasão da Ucrânia”.

Um dia antes desse artigo aparecer para o público chinês, o embaixador de Pequim nos Estados Unidos, Qin Gang, publicou outro similar no Washington Post, afirmando que dizer que a China sabia das intenções de Putin “é pura desinformação” e que “a posição da China sobre a Ucrânia é objetiva e imparcial, baseada nas regras da ONU de respeito à integridade territorial e à soberania de todos os países, Ucrânia inclusive, que devem ser estritamente observadas”.

Em 5 de abril passado outro artigo assinado por Yu Jianrong, intelectual muito popular nas redes sociais chinesas, afirmava que quanto mais se estender, mais a guerra de Putin será impopular na China. “Agressão é agressão. É moralmente errada e ponto”.

Também este vinha na sequência de outro publicado no WeChat chinês, que analisava as condições objetivas de Putin levar a cabo o seu projeto:

“A Russia quer brincar de União Soviética mas não tem mais a força econômica que isso requer. A Ucrânia, agora vizinha da Nato e servida por modernas capacidades militares, é uma versão aumentada do Afeganistão enquanto a Russia é uma versão diminuída da União Soviética. Esta guerra abriu um buraco nas artérias econômicas da Russia cuja economia já vinha abalada desde 2012. As ameaças nucleares de Putin nunca chegaram a ser feitas no tempo da União Soviética. São um sinal de fraqueza”. 

“No tempo da Guerra Fria o PIB da União Soviética era de pelo menos 50% do dos Estados Unidos. Hoje, com um PIB de 1,7 trilhão de dólares, a Russia é menor que a economia da província de Guangdong. O orçamento da Federação Russa de 330 bilhões de dólares para 2021 é metade do orçamento de 705 bilhões do Pentágono. Para manter a fidelidade da Bielorussia, com menos de 10 milhões de habitantes, Putin injeta de 10 a 20 bilhões de dólares por ano naquele país. Não tem condições de fazer o mesmo com a Ucrânia e seus 44 milhões de habitantes”.

“A Russia não pode vencer essa guerra. Ela custa 8 bilhões de dólares por mês. Os ucranianos destroem todos os dias tanques e aviões de centenas de milhões de dólares com mísseis individuais que custam apenas algumas dezenas de milhares fornecidos pelo resto do mundo e pela Nato. Não existe mais uma União Soviética nem Ocidente contra o Leste, só existe um jogo econômico global complexo. O tempo não é aliado da Russia. Esse é o poder da globalização e a Russia não tem a opção de resistir-lhe”.

A única saída da sinuca em que se meteu é, portanto, a que Xi Jinping indicou a Putin naquele telefonema depois de constatar a reação, “fechada” como nunca, dos Estados Unido e da Europa: alguma que lhe salve a face sem parecer uma derrota total, antes que o massacre de ucranianos se torne definitivamente imperdoável. 

Esta salvaria o mundo de ver o ex-agente da KGB apertar o botão. Mas dificilmente salvará ele próprio do final melancólico a que se condenou, nem o povo russo do rebaixamento a satélite da economia chinesa, a inversão do quadro “primo rico x primo pobre” dos dois gigantes comunistas de ontem, que vai lhe restar depois dessa sangria desatada.

O mundo de ontem “já era”…

8 de março de 2022 § 11 Comentários

Nem volta ao passado, como pretendia Putin, nem “freio de arrumação” como sugere o ditado. Tudo se parece mais com o violento chacoalhão para frente de uma súbita arrancada da integração da humanidade para um outro patamar de velocidade. 

O modo como cada nação se vê e é vista pelos outros”, disse um observador inglês, “é que é a matéria prima da evolução, um processo lento e gradual onde as camadas se vão assentando uma a uma. Mas a guerra de Putin mudou coisas muito profundas em pouco mais de uma semana”. Yuval Harari vai na mesma direção. “Essa guerra tem o potencial de acabar com a guerra cultural. A humanidade se deu conta, de repente, de que liberdade, autodeterminação ou não, é a única escolha real”.

Depois de anos contemplando e lambendo a própria “decadência”, o Ocidente redescobriu coisas como orgulho e razão de ser. Depois de décadas esmiuçando seus próprios fracassos ele foi posto, de repente, frente a frente com a alternativa concreta para o seu modelo de liberdade e democracia. 

A determinação da Ucrânia não é a de quem tem dúvidas filosóficas a respeito de teorias conflitantes, é a de quem experimentou na carne viva uma coisa e a outra e prefere morrer lutando a voltar ao passado soviético. Volodymyr Zelensky levanta-se formidável, inspirando seu povo contra Putin e suas bombas atômicas, armado tão somente de uma atitude moral num mundo amoral. Um herói numa era de anti-heróis.

A humanidade estava com saudades disso!

E então foi como um tsunami. Nem uma união de interesses mesquinhos focados na luta pelo dinheiro, nem uma quase ocupação estrangeira resultando na perda de um pouco de soberania por cada um. A União Européia voltou a ser, num átimo, o esforço comum de povos envolvidos em duas guerras monstruosas no espaço de 30 anos, para compartilhar sua soberania em vez de seguir matando por ela. Uma iniciativa com foco na segurança e na paz. Em menos de 10 dias a NATO deixou de ser um anacronismo da guerra fria para voltar, incontestavelmente, a ser o recurso inventado para defender-se de agressões que sempre foi desde que foi criada e continuou sendo enquanto existiu. 

Quem está fora da unanimidade planetária que a resistência da Ucrânia cristalizou? 

Nem a “esquerda”, nem a “direita” civilizadas que, cada vez mais, distanciam-se por milímetros. A anti-humanidade. A anti-democracia, tão somente. A convicta e a disfarçada. As mentiras todas transformaram-se em pó. O que têm os BRICS em comum senão a ausência de democracia? É por isso, aliás, que são só BRICS e não países ricos. Apesar de terem tudo o mais que se requer para sê-lo – extensão territorial, recursos naturais, tamanho de mercado – são imunodeficientes à corrupção sistêmica e à subjugação de suas populações por privilegiaturas, para as quais democracia é o único remédio conhecido.

A Russia sempre foi o campeão dessa modalidade. Um monopólio férreo de poder e riqueza no topo da pirâmide cercado de miséria por todos os lados. Isso nunca mudou, nem sob os czares brancos, nem sob os czares vermelhos, nem sob o czar marrom. 

Muito antes do que seria de se esperar, uma imprensa ocidental que ia numa perigosa ordem unida de volta à justificação da censura, mãe de todas as ditaduras e de todos os horrores, viu esse mesmo discurso surgir na boca do celerado Putin antes que tivéssemos de esperar, em ritmo de evolução, a lenta mudança da maré do poder que invariavelmente confirma, ao longo da História, que essa classe de feitiço volta-se SEMPRE contra o feiticeiro.

O fato veio para confirmar o quanto isso é velho. A fantasia que o Ocidente criou em trono dos czares vermelhos é do Ocidente só. O povo russo nunca a viveu. Exorcizado e devidamente punido e banido o nazismo, nenhuma voz se ergueu contra esta nova Alemanha que envia armas aos ucranianos e dobra o seu orçamento militar para defender-se – e à toda a Europa – do agressor que só pôde continuar sonhando livremente com seu império perdido porque o totalitarismo comunista continua valendo-se de uma chancela moral que nunca mereceu. Porque ainda ha, dentro e fora da Russia, quem considere os stalins heróis e possa cultuá-los impunemente. Porque ainda há, na periferia do Ocidente, quem acredite com alguma razão de ser, que pode eleger-se com esse discurso.

Raça, gênero, polícias do pensamento, a irrefreada ditadura da maioria que Tocqueville previu, e mesmo esse esforço todo para manter a covid mais viva do que está… Quanto disso, quanto da famigerada “guerra cultural” não é filha do tédio? A humanidade é mesmo capaz de viver na plenitude, sem uma ameaça imediata e palpável contra a continuação da sua aventura na Terra que lhe tome o tempo que adora gastar fabricando fantasmas? Estariam as Américas longe demais para aprender a lição que a Europa aprendeu?

Ha sinais controvertidos vindos da Ucrânia. Quem está contendo a violência toda de que Putin é materialmente capaz, além do heroísmo dos ucranianos? A China? Essa “humanidade civil” que, em toda parte, extrapolou os governos e materializa os boicotes e até as tomadas de posição na ONU à revelia deles? Os próprios russos?

Difícil dizer… 

Mas uma coisa é certa. Este mundo de hoje não é mais o mesmo de ontem. Talvez nunca tenha sido e a Ucrânia apenas desenterrou da desinformação o que sempre esteve aí. Mas o certo é que, verdadeiro ou falso, aquele de ontem nós nunca mais voltaremos a ser.

Terão os “millenials”encontrado o seu limite?

28 de fevereiro de 2022 § 9 Comentários

É carnaval, o momento em que a alienação brasileira alcança a temperatura máxima, é verdade. Mas há sinais auspiciosos de que a trombada desse Ocidente urbano amoral e dissoluto das Américas, virgem de ocupações estrangeiras e cevado na frivolidade, com uma realidade do mundo até então desconhecida porque vinha-lhe sendo sistematicamente sonegada, não vai passar em brancas nuvens. 

A cobertura da guerra está amarrada principalmente à aferição passo a passo da reação do mundo à agressão de Putin. Ela é muito mais decisiva para o resultado da aventura em que se meteu o ditador russo que aquilo que se passa no teatro das operações.

O brasileiro que pensava que o mundo era o que lhe entrega a mídia cabocla foi arrancado de repente da nauseabunda “guerra da covid”, das picuinhas tramadas nos antros da privilegiatura de Brasilia e dos delírios de gênero, raça e o resto das importações atiradas por cima do mar-sem-fim do favelão nacional sem voz por essas pequenas ilhas do Brasil vocal doente que falam pela nossa imprensa. E isso teve o efeito de uma janela subitamente aberta num quarto escuro onde o ar andava irrespirável.

A blitzkrieg de Putin é parecida demais com a de Hitler para não despertar no mundo que de fato existe uma torrente de memórias terríveis. Emanuel Macron deve ter despertado alagado em suor algumas vezes nas semanas que a Rússia passou rosnando para a Ucrânia, vendo-se entrar para a história como o novo Pétain. A França, como ha muito não se via, age assombrada pelo fantasma de Vichy. A Inglaterra, pela lembrança de Chamberlain. A Itália pela do desastre do fascismo.

De Berlin para Leste há memória viva do que é estar sob a Stasi, a filial da KGB que o jovem Putin em pessoa montou e instruiu. E nos outros escapados da Cortina de Ferro, é disso para tanto pior que as pessoas se lembram quanto mais próximas estiverem da fronteira russa. As feridas estão abertas. Todo mundo lá sofreu perdas, passou fome e sentiu frio. Todo mundo lá foi humilhado e ofendido. Daí essa reação em uníssono, de solidariedade humana sem registro de um único tênue sinal de hesitação dos vizinhos a Oeste para com a Ucrânia. Daí a resposta dela própria de que o mundo teve a avant première na heróica revolução da Praça Maidan em 2014.

Até a China – a maior beneficiária da presente ordem mundial – absteve-se de alinhar-se a Putin no veto à condenação da invasão pelo Conselho de Segurança da ONU. A primeira oferta de negociação à Ucrânia, embora em termos que o país agredido não aceitou, deu-se depois de uma longa conversa em que Xi Jinping sugeriu a Putin a saída de oferecer à Ucrânia a condição de país neutro.

O saldo da Revolução de Maidan, sobre a qual a Netflix oferece o empolgante documentário Winter of Fire de especial interesse nestes dias, àparte a derrubada de Viktor Ianucovytch, o títere que Putin cooptara para governar a Ucrânia ao fim de 93 dias de uma resistência heróica, foi inscrever na constituição ucraniana a OBRIGAÇÃO de qualquer governo futuro de promover o ingresso do país na União Européia e na OTAN, como forma de garantir-se contra agressões como a que está acontecendo hoje, mais um dos fatos pouco sabidos neste Brasil tomado pela “censura estrutural”. Não foi a OTAN que avançou em direção à fronteira russa como insistem em afirmar com Putin os autoritários e os antidemocráticos de todas as colorações do Brasil, foram os fugidos do socialismo real que “invadiram” a OTAN em busca de proteção contra o que foram obrigados a tragar a ferro e fogo pela Russia soviética.

Ha, portanto, uma probabilidade real até de que essa guerra acabe por precipitar a decisão da própria Rússia de aderir, finalmente, à civilização europeia como boa parte dela sempre sonhou fazer mas nunca pôde. Ou um movimento interno contra Putin porá um fim a ela, ou Putin mergulhará definitivamente na barbárie, arriscando levar-nos todos juntos à breca, se não se chegar à solução intermediária com que a China sugere que ele salve a face.

Com tudo isso foi murchando no ar a louvação do “grande enxadrista da geopolítica” que ia ensinar àquelas democracias decadentes que não têm o poder de lançar uma guerra contra uma população indefesa só porque seus líderes, que para tudo têm de pedir licença ao povo, acordaram um dia de mau humor. Diante dos atos de gallantry dos ucranianos e da recepção que seus luminosos brios tiveram em toda parte, ela foi sendo substituída por solidariedade e colocando, de edição em edição, num progressivo mal estar aquelas “análises” do jornalismo contaminado apontando para uma rendição sem luta num mundo que se ia conformando com a abjeção e a covardia como a irrevogável definição da humanidade.

No Brasil o primeiro efeito imediato desse fenômeno foi o reposicionamento da falsa fronteira direita x esquerda para a verdadeira democráticos x autoritários (e antidemocráticos) de direita e de esquerda. Bolsonaro e os “antibolsonaristas” acordaram no colo uns dos outros falando exatamente a mesma língua. Os apenas autoritários passaram, então, a tartamudear desculpas até travestirem-se em “anti-Putins desde criancinha”. E os antidemocráticos de cada “lado” se foram escondendo num mutismo cúmplice. Todos têm em comum o seu horror à idéia do povo mandando na “zelites”.

Ainda que não haja caso de reversão desses processos de decadência históricos sem que suas consequências cheguem a arder na pele, cabe lembrar que considerada a humanidade como um todo elas ja arderam na pele de muito mais gente do que não. E mesmo nas sociedades mais decadentes porque menos atingidas das Américas e dessa Europa que vai no arrasto da maior delas, temos assistido a fenômenos endógenos de “invasões de bárbaros”. 

Seria possível, de repente, que esse tipo de “invasão” se tornasse suficiente nessa nova realidade em que as guerras totais – e com elas as invasões estrangeiras – implicam o fim do mundo? Se um pequeno choque de realidade bastou para rebaixar Vladimir Putin de novo ”líder genial dos povos” para o assassino covarde que ele realmente é, porque coisa semelhante não poderia fazer o mesmo pelo Brasil com os 3 patetas do TSE e seu criador?

O que mata a democracia é a “sua torcida”

24 de fevereiro de 2022 § 4 Comentários

Imaginemos que os Estados Unidos, depois de anexar militarmente a Baja California, estacionassem 190 mil soldados, com os tanques, os lançadores de mísseis e o mais da parafernália do costume na fronteira do México, e declarasse, apenas porque Joe Biden sozinho decidiu que o momento é bom para tanto, que não reconhece a soberania do governo mexicano sobre os estados de Sonora e Chihuahua e, se calhar, sobre o resto do México inteiro. 

Qual seria a reação do mundo? E a dos próprios americanos?

Dá pra imaginar a chuva de pedras da imprensa nacional e estrangeira? As meninas bonitas das redes americanas e mundiais de TV deslocando-se em fúria para esses territórios para mostrar, em matérias pungentes, as crianças e os bebezinhos marcados para morrer? Entrevistando incessantemente, dos “especialistas” do costume aos atores de Hollywood, quem denunciasse a dimensão do genocídio planejado? As marchas planeta afora de furibundos queimadores de bandeiras ianques? Os milhares de matérias de arquivo mostrando as barbaridades “gratuitas” todas perpetradas pelos americanos em “guerras que não eram deles” (menos a do Hitler, claro)?

Agora imagine isso na Russia do envenenador de opositores com plutônio. Seria possível algo parecido?

Ha 400 anos, quase 100 dos quais depois do fim de todos os outros impérios coloniais da História Moderna, a Russia barbariza incessantemente os mesmos vizinhos que “desinvadiu” ontem na debacle soviética. Seja “para ter acesso a mares quentes”, seja pela desculpa que for, invade, massacra, escraviza, mata deliberadamente de fome (na Ucrânia mesmo), perpetra “limpezas étnicas”, esmaga “nacionalismos”, proíbe o ensino de línguas a filhos de pais que não têm outra, fuzila religiosos em porões, aterroriza e mata até que não reste na terra alheia que cobiça senão uma “maioria russa separatista”.

Como se a humanidade não tivesse aprendido nada desde que sistematizou o domínio da História, faz a mesma coisa com seus próprios nacionais. Esmaga a ferro e fogo qualquer sinal de resistência ao “César” (czar) da hora. Não ha barbaridade nos dicionários ou nos anais da tragédia humana que não tenham praticado, primordialmente contra a sua própria gente enquanto a cepa dominante foi o comunismo soviético, ou continuem praticando hoje, já sob a variante do “capitalismo de cumplicidade” depois que se assumiu como “estado bandido”, com todos os povos, culturas ou religiões que encostem ou não em suas fronteiras.

Vladimir Putin pode dizer que é ele que tem medo de ser invadido por essa Ucrânia que mantem cercada depois de tê-la invadido ainda ontem em pleno Terceiro Milênio pela mesma razão que Lula pode afirmar que assassino é quem reage a uma tentativa de assassinato: não tanto porque conta com o silêncio obsequioso de uma população interna que controla pelo terror, mas porque já conta como plenamente instalada fora da Russia a “Sociedade da Informação Adequada” que, em nome de seu único “eleitor”, Edson Fachin acaba de prometer solenemente instalar no Brasil em ritmo ”fortíssimo”. Porque tem como certa a “torcida externa” dos intelectuais e da parcela podre da imprensa que só são ainda livres para aplaudir declarações como essa graças ao sangue derramado por americanos para libertá-los da opressão nazista ou da opressão da própria Russia comunista e que, certo como que o sol nascerá amanhã, dirá que nada mais é que “alta sabedoria” de um “estadista” especialmente ladino qualquer forma de expressão da covardia e da brutalidade dele contra quem não pode se defender delas sozinho.

Putin pode invadir, oprimir e matar porque conta com essas “avaliações realistas” de uma elite ocidental que dirá que a Ucrânia nunca foi dos ucranianos, assim como tudo o mais que existe entre a Ucrânia e Berlim (ou além), que os mísseis russos não matam nem queimam criancinhas já que isso não aparece na televisão, e que resistir às suas agressões contra outros seres humanos que querem “buscar sua felicidade” como bem entenderem é prova conclusiva de falta de “refinamento geopolítico”, quando não “uma agressão” ao agressor…

Etienne de La Boétie é o autor da proposição tristemente imortal de que a existência dos tiranos depende essencialmente dessa vontade de tantos da nossa espécie de serem tiranizados. O nosso Nelson Rodrigues deu uma versão mais individualizada, teatral e freudiana à resiliência desse horror da multidão dos anões morais à grandeza dos raros que lhes põem sombras na alma: “Porque me odeias“, perguntava o seu personagem, “se eu nunca te ajudei, nunca fiz nada por você“?

É esse, enfim, o grande paradoxo da democracia: as elites que, na segurança de que desfrutam sem tê-la conquistado, se podem dar o luxo de exibir impunemente a sua corrupção moral – as que têm e as que não têm dinheiros a salvo em terras de ninguém; as assumidamente apátridas ou as supostamente patrióticas marcando a fronteira entre os comportamentos dolosos e os comportamentos apenas idiotas – imploram diariamente pela institucionalização do tiro na nuca e da injeção de plutônio que merecem. Mas mesmo assim – paciência! – é preciso lutar por elas. Não dá pra ter democracia só para a minoria que, na hora do “vamo vê”, faz concretamente por merece-la.

Putin “é louco” mas não rasga dinheiro*

22 de fevereiro de 2022 § 2 Comentários

A reunião de Munique para avaliar Putin x Ucrânia no fim-de-semana mostrou uma Europa mais unida do que nunca, desde que me lembro lá dos tempos da Guerra Fria até hoje, na promessa de sanções pesadas contra uma invasão.

Tão unida que Putin entendeu e já descarta liminarmente uma invasão maciça. Fala agora apenas em reforçar a posse do que já tomou da Ucrânia na invasão de 2014. 

Não é mais só o firme apoio da Alemanha que entrou no radar mas até uma inédita posição não mais automaticamente anti-americana, como sempre, da França (nunca de jure mas sempre de facto, como é da finesse da diplomacia gaulêsa)! Nem mesmo o pacto Molotov-Ribentrop recém reeditado pela China amarrando-se à Russia para o caso de agressões da Nato (aquelas que nunca, jamais, aconteceram) estende-se para esse caso da Ucrânia, conforme deixou claro o chanceler chinês em Munique. Não interessa a ninguém, especialmente ao maior vendedor de bugigangas do mundo, reeditar uma Guerra Fria que venha a abalar o fluxo do comércio mundial que sustenta uma China cheia de bolhas espoucando na economia interna.

Com tudo isso até o sonho de derrubar o governo Zelensky, que Putin acalentava (uma “invasão” sem invasão) parece já ter caído por terra.

A Europa claramente entende que deixar Putin invadir impunemente a Ucrânia num mundo em que os americanos não se dispõem mais a deixarem-se matar tão facilmente para consertar os erros dos outros é contratar de volta aquela Rússia que, na última vez, só foi detida na Porta de Brandemburgo em Berlim.

Nem o racionamento de gás, que Biden tirou do horizonte conseguindo um compromisso com os árabes antes de peitar definitivamente Putin, fez a Europa tremer. Na visão hiper-realista do velhinho a Alemanha “fechando” com ele, o resto era lucro. E Munique parece ter confirmado isso.

Tudo indica, portanto, que Biden, que certamente aprendeu a lição recebida no Afeganistão, é quem desponta surpreendentemente como “o grande enxadrista” do jogo geopolítico mundial, o que criou um problema para a torcida anti-americana século 20 que ainda bate bumbo firme e forte na periferia do mundo para não perder mais uma oportunidade de jogar pedra nos ianques, mesmo sob o risco de “solidarizar-se” com a valentia daquele nobre envenenador de opositores com plutônio tanto quanto ninguém menos que Jair Bolsonaro (nada, é claro, que não esteja destinado a se tornar fake news punível pelo STF ao ser lembrado, dentro de mais algumas semanas, mas que por enquanto é fato, daqueles que confirmam o quanto velhos hábitos demoram para morrer)…

De Putin tudo se pode esperar, é claro, mas os sinais crescentes são de que ele é mais um daqueles “loucos” que não rasgam dinheiro.

* Artigo escrito e programado para publicação antes do anúncio da entrada das tropas de Putin na Ucrânia

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