Eu sou da velha guarda
4 de agosto de 2020 § 76 Comentários
1932
Artigo para O Estado de S. Paulo de 4/8/2020
Na quarta-feira, 29, este jornal publicou o editorial “O papel da AGU” em que toma posição a favor da censura e prisão de blogueiros e jornalistas decretada por Alexandre de Moraes. É o “novo normal”. Nestes tempos de “cancelamentos”, constato que de renomados professores de jornalismo aos seus jovens alunos que aparecem nas TVs restam uns poucos que ainda mostram alguma hesitação em endossar a caçada do STF aos colegas ditos “antidemocráticos”.
Como meu sobrenome continua sendo confundido com as opiniões deste jornal pelas quais sou frequentemente cobrado, recordo aos leitores do presente e aos historiadores do futuro que desde a morte de Ruy Mesquita em maio de 2013 nenhuma linha do que O Estado de S. Paulo publica tem orientação direta ou indireta de qualquer membro da familia Mesquita, com exceção dos artigos assinados eventualmente publicados nesta página reservada às que “não refletem as opiniões do jornal”. Estas estão a cargo de uma equipe contratada pelos administradores do Grupo Estado para prestar-lhes o serviço de opinar e escrever editoriais.
1940: a ocupação de O Estado de S. Paulo
Custou-me uma negociação o “eu” desse título. Sei que vai contra todos os cânones da internet, o Templo Sagrado do Ego, mas disciplinei toda a minha vida profissional para não pensar nem escrever na primeira pessoa. Tinha jornais por instituições e, enquanto foi a mim que coube falar por eles, falava pelo 4º Poder da República e, ainda por cima, num órgão que já vinha “falando” havia três gerações antes de eu existir e, portanto, tinha peso político e personalidade próprias de que não me sentia no direito de me apropriar, esforçava-me tão somente por interpretar.
Os tempos são outros mas as questões de princípio permanecem as mesmas.
Os anões morais têm especial predileção pela censura. Veremos como o mundo enfrenta a megalomania do nosso e que outro método de intimidação, com todo o peso do Leviatã brasileiro, usará para manter calados uma menina meio tresloucada que gosta de tatuagens e mais dois ou três blogueiros e jornalistas. Seja como for, é uma briga desproporcional o bastante para dispensar a ajuda da imprensa que, ao disputar para apontar ao inquisidor os meios que essas temíveis “ameaças ao estado democrático de direito” encontram para driblar os cala-bocas impostos, assanha-lhe os piores instintos.
JMF, a caminho do exílio, é o 3º em pé da esquerda para a direita.
Já vi esse filme antes. Júlio de Mesquita Filho, meu avô, foi preso 17 vezes e exilado duas pelo Alexandre de Moraes de seu tempo que também era fascista e também se tornou herói da esquerda brasileira (os radicais sempre foram gêmeos idênticos). E não parou nisso como também não vai parar o de hoje. Em 25 de março de 1940, faltando menos de três meses para Getulio Vargas saudar o desfile das tropas nazistas por baixo do Arco do Triunfo da Étoile, em Paris, como “Uma nova aurora para a humanidade…”, discurso desaparecido dos anais mas do qual havia memória viva em minha casa, este jornal foi invadido por soldados de baioneta calada. Dos dois Mesquitas que na época eram, sim, responsáveis pela opinião d’O Estado, o jornalista, Julio, já estava no segundo exílio, fora do Brasil, e seu irmão, Francisco, que guardava a trincheira, saiu dali para a cadeia.
Eis porque quando iniciei formalmente a carreira de jornalista, nos idos de 1974, os editoriais d’O Estado ainda eram redigidos, entre outros profissionais do texto, por comunistas exilados de Portugal pela ditadura de Salazar e abrigados por Julio de Mesquita Filho, morto cinco anos antes. Eles não se afinavam com nenhuma das nossas ideias nem nós com as deles mas trabalhávamos juntos numa boa. Os portugueses aportando vernáculo ao jornalão e o jornalão, na sua inflexível fé democrática, abrigando os perseguidos políticos, prática que se tornara norma sagrada da empresa desde que seus legítimos donos, ao fim de 15 anos de misérias e perseguições, reouveram o jornal, todos driblando juntos os censores da ditadura seguinte que denunciavam com a publicação de receitas culinárias e versos de Camões no lugar de cada matéria censurada.
1974: censura denunciada
Antes disso, vira esconder em meu quarto de adolescente, na casa de meu pai, jornalistas perseguidos pelo regime militar (editorialistas entre eles). E, já como jornalista “militante”, envolvi-me pessoalmente em articulações para tirar outros da cadeia ou para contrabandear para fora do país meninas doidinhas com a cabeça a prêmio por dar passos além do limite nas suas ações de oposição ao regime, frequentemente com o concurso de uma OAB que, naquele tempo – vejam vocês! – trabalhava para soltar e não para prender perseguidos políticos.
Assim, ainda que seja mais raro a cada dia eu ter certezas, esta, sem nenhum heroísmo, mantenho intacta. A História já me absolveu. Não há exceções. As tiranias se instalam quando o Estado consegue deter pela força o livre fluxo das idéias. As tiranias desmoronam quando a informação volta a circular. Continuo tendo horror à censura. E certeza absoluta da sua malignidade. Fosse por mim este jornal estaria como sempre: contratando os jornalistas “cancelados” e dando guarida a todo e qualquer perseguido político.
Bolsonaro e a maldição da meia sola
27 de agosto de 2019 § 18 Comentários
Artigo para O Estado de S. Paulo de 27/8/2019
As piores doenças crônicas do Brasil têm o peronismo no seu DNA. A socialização da teta insuficiente, cuidadosamente dimensionada para que não cesse nunca a dependência do agraciado, é a versão benigna da doença universal do populismo. A cêpa peronista é a maligna. Rói darwinianamente, de geração em geração, a moral das nações onde se instala.
A corrupção das elites pelo acesso ao privilégio através da riqueza, mesmo a conquistada por mérito, é um processo natural que, em última instância, promove a mobilidade social e a renovação das sociedades. Mas o peronismo, que Getulio Vargas instilou nas veias do Brasil, corrompe a sociedade a partir da base. A Republica Sindicalista (“Trabalhista” na versão macunaímica), criminaliza o ato de empregar e estatiza a progressão na escala social, o que é veneno bastante para deixar qualquer economia paraplégica. Mas em paralelo instala, onipresente nos céus da nação, a mensagem deletéria que tem o potencial de salgar para todo o sempre a terra arrasada: “Traia, minta, falseie que o governo garante”.
Graças à prosperidade da indústria nacional de achaque aos empregadores o Brasil tem hoje mais “escolas de direito” e produz mais “advogados” de botequim por ano que todo o resto do mundo somado. Nelas não é preciso ler um livro de direito sequer para, ao fim do percurso, ganhar a prerrogativa de cabalar trabalhadores (em dificuldade ou não é fator que se vai tornando irrelevante na medida em que o caráter aviltado passa a ser padrão) para dividir com eles um dinheiro tão fácil quanto certo de ser arrancado às vítimas por tribunais que não são de justiça, são “de classe”.
O resultado é a geléia argentina que só se diferencia da do Brasil pela longevidade e por vir com letra de tango e não de samba.
A doença, como todas as que matam seus hospedeiros, só se esgota no seu próprio paroxismo. Mortos todos os empregos, passadas quatro gerações aqui, cinco lá, com o país tentando desesperadamente livrar-se da herança maldita, não é na massa dos desempregados e subempregados vivendo sob a lei do cão no favelão nacional que se instala a resistência. É nessa horda de caçadores de cúmplices para achaques e nos “sindicatos” e “partidos políticos” estatizados que exploram o monopólio do comércio de privilégios para fazer corporações selecionadas por sua força eleitoral saltar sem fazer força para os diferentes degraus da classe média não meritocrática, ou para guindar seus patronos à nobreza da privilegiatura que vão instalando em metástese em todos os orgão vitais de governança do país.
A fase terminal dá-se com a infestação da imprensa, o aparelho imunológico das sociedades democráticas. Isolados pela língua que deu eficiência redobrada ao patrulhamento ideológico, já vamos para a 3a geração dos produtos do modelo gramsciano de censura imposta pela ameaça de assassinato midiático, exílio social e asfixia econômica dos “hereges”. A imprensa é a voz da classe média e a classe média que sobra é, cada dia mais, a classe média de teta. A meritocrática está ameaçada de extinção pela progressiva supressão do meio ambiente capaz de sustenta-la.
Na semana retrasada festejou-se como “uma vitória” a “confirmação” da MP da Liberdade Econômica pelo Congresso. A lista dos itens desbastados dela – todos os que apontavam na direção da meritocracia e da redução do espaço para o achaque ao trabalho e ao empreendedorismo, assim como ocorreu com os dispositivos revolucionários (desconstitucionalização dos privilégios e regime de contribuição) da reforma da previdência – testemunham a precisão e o zelo religioso com que a guarda pretoriana do status quo afasta de nós qualquer chance de alforria real. Sem maiores aprofundamentos, no entanto, a imprensa chama candidamente de “polêmicos” os itens amputados, num quase endosso à sua evicção, e a MP que sobra segue festejada como o que já não é.
É impossível definir exatamente quanto é por covardia, quanto por “superação orgânica do senso comum” e “absorção do discurso ideológico hegemônico” (Gramsci) e quanto é pela ignorância consequente do sucesso da censura às alternativas possíveis mas o fato é que, na imprensa ou fora dela, ninguém mais no Brasil, nem mesmo seus “inimigos declarados”, diz sobre “O Sistema” a verdade inteira ou propõe qualquer coisa para substituí-lo. 230 anos depois da Bastilha e com o país literalmente se dissolvendo ninguém levanta-se para exigir “Privilégio Zero Já” ou plantar no horizonte, ainda que só como bandeira, a meta de devolver do funcionalismo para a função, vá lá, que seja a terça parte dos 45% do PIB que hoje os palácios surrupiam ao favelão nacional sem dar nada em troca.
Num mundo que demanda Margareth Thatcher’s tudo que o filtro de seleção negativa permite chegar “lá” são Macri’s e Macron’s cuja derrota configura-se antes da luta começar pela timidez entre covarde e cúmplice das “reformas” que encomendam.
A conspiração gramsciana, que vai longe em toda a América inclusive a do Norte, é uma aposta na covardia humana, uma das mais formidáveis forças da natureza. Só a do instinto de sobrevivência é maior que ela. O que estamos começando a assistir no Brasil e seu entorno é o duelo final entre as duas. E começou mal: o México derrapa na direção da volta ao populismo, a Argentina parece ter fixado o rumo da Venezuela, o resto da América Latina não bolivariana igualmente balança. E o que faz todos eles voltarem recorrentemente à estaca zero é a maldição da meia-sola…
Não ha como darmo-nos o luxo de hesitações porque a alternativa é o compromisso juramentado com o desastre. Mas a pergunta que todos quantos têm pena do Brasil têm a obrigação de se fazer é até onde poderá chegar este Jair Bolsonaro “toffolizado” que, como todos eles, “elegeu-se vendendo mudanças radicais mas age como se não as quizesse” se em vez de babar ôvo incondicional e acriticamente para ele, não passarem a cobra-lo e empurra-lo com toda a força que a gravidade extrema da situação exige na direção daquilo que ele dizia ser.
Mais sobre Getúlio e o nazismo
11 de julho de 2019 § 2 Comentários
Um texto de janeiro de 2014 onde dou um testemunho direto de outras memórias vivas da simpatia de Getulio Vargas por Adolf Hitler.
https://vespeiro.com/2014/01/10/lira-neto-gramsci-e-os-mesquita/
A ressurreição da política
16 de julho de 2016 § 29 Comentários
Artigo para O Estado de S. Paulo de 16/7/2016
Lula matou a política; Eduardo Cunha tratava de enterrá-la. Um era a exata contrapartida do outro e a remoção do último, na sequência da quase remoção do primeiro, completa a reversão do desvio mortal em que o Brasil entrou. Está reaberto o caminho para a volta da política sem a qual não se vai a lugar nenhum.
Essas mudanças são como as manobras dos grandes navios. O acionamento dos comandos não vence imediatamente a inércia. Está aí, ainda, o cirquinho “silogístico” de escárnio à inteligência nacional do PT sob a batuta de Jose Eduardo Cardoso, Gleisi Hoffmann e cia., par perfeito do “regimentismo” bandalho de Eduardo Cunha; está aí, ainda, aquele STF que solta e arrebenta legalizando para si mesmo, em plena Lava-Jato, o duto das “palestras” para partes nos litígios que julga, como as de Lula à Odebrecht, e garantia de segredo para o valor do mimo recebido. Mas tudo isso, depois da votação de quinta-feira, deslocou-se para mais perto da porta do passado.
Entrou ar. E onde entra ar qualquer infecção volta a ter chance de cura. Ha outro STF dentro daquele STF; ha outra política dentro dessa em que o lulismo transformou a nossa. O Brasil que não se alinha ao crime volta a ter no que se agarrar e isso faz muita diferença.
Sem ilusões, porém.
Ha uma dimensão percebida dos nossos vícios, e outra que já é cultura e nos move por baixo do nível da consciência. Para a primeira tornam-se mais favoráveis as perspectivas. Antes de mais nada porque não ha alternativa para o caminho certo. É agir ou morrer. E logo. Rodrigo Maia tem formação econômica. Sabe que a alternativa fácil não dobra a esquina. É o homem certo no lugar certo para reger esse debate. Michel Temer, que se apruma com essa vitória, também passa a poder, mais que antes, agir certo em vez de apenas falar certo. Assim alterado o clima, o comando da Comissão de Impeachment bem pode, também, passar a olhar antes para o Brasil que se esvai manietado e a resistir com alguma galhardia às manobras espúrias que vem engolindo sem engasgar pois até para o STF será mais complicado, agora, dançar fora da nova batida do bumbo. Se o Brasil deixar claro que é o que quer todo mundo se afina, ao menos no discurso. Ou não foi assim que o país inteiro virou “Lava-Jato desde criancinha” e a votação de quinta-feira deu no que deu?
A outra dimensão é que é mais difícil de lidar. O lulismo foi a chegada do primeiro produto P.O. (“puro de origem”) do peleguismo getulista ao posto mais alto da Nação. Ao fim de quase 80 anos de uso contínuo dessa droga de tão potente efeito necrosante não ha brasileiro que, direta ou indiretamente, não tenha sido mutilado por ela. A maioria de nós – o próprio Lula notoriamente – sequer tem consciência de como foi afetado. Simplesmente não sabe como é viver de outro jeito.
É juntar três ou quatro amigos, fundar um “sindicato” que o Estado se encarregará de impor a um dos lotes do condomínio nacional do trabalho onde não se entra sem alvará e fincar na veia o cateter do imposto sindical. Para o resto da vida, tudo que ha a fazer depois disso é não permitir que algum aventureiro o arranque do seu braço, o que é fácil de garantir desde que as “eleições” se deem por “aclamação”, sempre arrancável pela intimidação, seja pela negação de trabalho, seja pela violência física. Daí para a política. É essa a escola.
Para esmagar resistências ao longo do caminho; para garantir esse “Eu sou, mas quem não é?” em que tudo se dissolve sempre no debate político nacional desde o “Mensalão”, acrescentou-se à receita a socialização da corrupção por essa “justiça trabalhista” que sustenta a legião de profissionais do achaque encarregada de moer a consciência da Nação soprando diuturnamente, de ouvido em ouvido, o mantra sinistro: “Minta, traia, falseie que o governo garante”…
E lá se foi o Brasil dessensibilizando-se até admitir que o método fosse estendido a todos os níveis do seu sistema representativo – partidos políticos, associações de classe, ONGs, etc. – e parecesse nada mais que lógico e natural impô-lo, afinal, como o regime político mesmo da Nação à força de decretos presidenciais e remendos judicantes sob a égide do “excesso de democracia” à venezuelana.
É essa a feição “moderna” que assumiu o absolutismo monárquico à brasileira que a Republica nunca superou depois que entregou intactos os poderes do Imperador sem mandato aos novos imperadores com mandato. O abacaxi que Michel Temer e o Congresso de Rodrigo Maia têm de descascar é velho como o Brasil de d. João VI e os miasmas que dele emanam são fortes o bastante para levar até o “dream team”, em questão de semanas, a passar das juras de amor eterno ao controle dos gastos públicos ao namoro com mais um porre de impostos, só que sorvido aos “golinhos”. É que por baixo das diferenças manifestas nos extremos mais distorcidos do “Sistema” derrotados quinta-feira, eles continuam sendo, antes e acima de tudo, “A Côrte”; uma casta para a qual ha leis especiais, tribunais especiais, regimes de trabalho, salários e aposentadorias especiais e até juros bancários especiais extensíveis a quem quer que um de seus “excelentes” pares houver por bem resgatar deste vale de lágrimas. E, de cunhas a grazziotins, “A Côrte” reage sempre com unanimidade monolítica quando o que está em jogo é montar nas nossas costas para aliviar as próprias.
É disso que se trata mais uma vez agora. Tornar as suas prerrogativas um pouco menos “especiais” para que, explorados e exploradores, sigamos todos com os narizes 1 cm acima da linha d’água é o melhor que, em sã consciência, pode-se esperar desses brasileiros dispensados de viver no Brasil que eles próprios criam. Mais, só quando o Brasil se der conta de que é ele quem manda e adotar finalmente a democracia, obrigando-os a viver no mesmo país em que vivemos nós, sujeitos às mesmas leis, aos mesmos ventos e às mesmas tempestades. Aí sim, eles tratarão de consertá-lo.
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