Rever a história para retomar o caminho

15 de junho de 2018 § 6 Comentários

Artigo para O Estado de S. Paulo de 12/6/2018

2013 é um marco ambíguo. Entrou para a história como o do “despertar do gigante adormecido” … mas de um despertar para o seu próprio vazio. Já lá vão mais de cinco anos e seguimos perdidos no espaço, incapazes de um discurso articulado; de distinguir causas de efeitos e aliados de inimigos; sabendo, vagamente, balbuciar os nossos “não” mas sem repertório que nos permita esboçar um único “sim” digno de ser abraçado como projeto para a nação. Somos o país que morre de fome por não saber pedir; que não consegue ler o menu das soluções institucionais modernas, arrastado que foi de volta para o limbo pré-republicano mediante o aparelhamento dos meios de difusão de cultura e informação e o aniquilamento das nossas universidades (as ultimas das Américas) como centros de pesquisa pura e busca do conhecimento. O país em cujas escolas cultua-se só o que fracassou, instila-se o ódio ao merecimento e proíbe-se mostrar, do mundo que deu certo, senão o que ele tem de pior.

Não é de hoje. A primeira faculdade chegou aos EUA com os colonos ingleses. E a América Hispânica já tinha 23 em funcionamento quando o Brasil fundou a sua primeira – de medicina porque a corte transplantada em 1808 precisava de médicos. Até então tudo que havia aqui era um colégio de teologia, instituição voltada, portanto, para a negação em nome do dogma e não para a busca do conhecimento.

No país onde a metrópole proibira desde sempre a produção e a importação de papel (e mais recentemente a entrada da informática) a primeira impressora chegou com 358 anos de atraso em relação à invenção de Gutenberg. Mas junto com a “Impressão Régia” (a única admitida) desembarcaram os censores.

Posto numa balança o Brasil e na outra o reino, ha de pesar com grande excesso para mais aquela primeira que esta última; e assim, a maior e mais rica parte não sofrerá ser dominada pela menor”, argumentava um alto funcionário do rei para justificar tão rígido cerco à informação e ao conhecimento. Não se alterou fundamentalmente a situação com a mudança da metrópole colonialista de Lisboa para Brasília. É a ignorância semeada pela censura das soluções que o mundo moderno dá aos problemas que nos afligem, mais que tudo, que garante a nossa permanência no estágio pré-republicano em que nos arrastamos.

A democracia moderna, essencialmente, é um arranjo de sobrevivência pactuado por comunidades isoladas em territórios hostis. Longe do rei e de qualquer socorro de fora elas tiveram, por si mesmas, de fazer e cobrar suas leis, decidir e executar suas decisões e prover sua própria segurança. Foi isso o “Pacto do Mayflower”. Foi isso, com quase um século de adiantamento em relação à versão saxônica, o arranjo das Câmaras Municipais das vilas portuguesas no Brasil. Isoladas umas das outras e do resto do mundo, havia nos seus governos um grau de soberania popular que nem a metrópole nem ninguém antes jamais vivera. Por mais de três séculos, de três em três anos, nossa gente organizou eleições, deu posse a governos, seguiu-lhes as determinações e os governantes entregaram seus cargos aos novos eleitos sem uma única quebra.

Nenhum outro povo na terra teve tão longa vivência de democracia. E até Tiradentes estivemos ao par da ponta mais moderna do pensamento político da época. O Brasil real organizou-se e construiu-se por si mesmo à margem do Brasil oficial, à margem do governo central instalado na praia e voltado para a metrópole antes e depois de 1808. Na informalidade, regido pelo costume, pela lei não escrita e financiado pelo “fiado”.

Só 15% da economia nacional, ao longo de todos os séculos do Brasil colônia, hoje sabe-se graças à econometria aplicada à historiografia a partir de 1970, era contabilizada e registrada nos anais da metrópole. A economia de exportação – e só ela – vivia no figurino casa grande e senzala, o “único que existiu” segundo os nossos historiadores “marxistas”. O outro Brasil, o do mercado interno, o da pequena propriedade, o dos empreendedores que produziam, movimentavam e comercializavam bens e serviços, pesando 85% de tudo que se fazia aqui, viveu na clandestinidade e à margem da lei até o primeiro governo da “república” tomada de assalto pelos ditadores do credo “positivista” que nos assombra até hoje. Foi por mera distração deles que Rui Barbosa teve a oportunidade de baixar, a 17 de janeiro de 1890, os quatro decretos que constituíram a “lei áurea” da iniciativa privada no Brasil. “As companhias ou sociedades anônimas, seja civil ou comercial o seu objetivo, podem estabelecer-se sem autorização do governo” rezava a peça que transformava num direito do cidadão investir sua poupança pessoal num empreendimento reconhecido pela lei … só que não. Prudente de Morais, o terceiro da “republica”, foi o primeiro e talvez o único presidente brasileiro de todos os tempos que conhecia e praticou a teoria por trás dessa expressão. Desde então têm havido mais esforços para fazer regredir que para fazer avançar o Brasil que Rui e ele vislumbraram.

Não tivemos uma nobreza hereditária mas a de toga a substituiu com “vantagem” pois até ao “rei” ela submeteu. O direito brasileiro é ainda o do “direito adquirido” à diferença que sustentou o absolutismo monárquico e não o dos Iluministas e da republica sem aspas que consagra a igualdade e criminaliza o privilégio.

E, cada vez mais, é isso que nos mata.

É essa a história que se conta na História da Riqueza no Brasil, livro que consolida uma inspiradora série de trabalhos anteriores de Jorge Caldeira, o libertador da historiografia brasileira. A história é a psicanálise das sociedades, e esta que ele conduz aponta claramente um caminho: o da soberania do povo a partir da base municipal. “A maior e mais rica parte” só se libertará da opressão da outra com a despartidarização das eleições, o voto distrital puro e os direitos de retomada de mandatos (recall) e referendo de leis pervertidas no âmbito dos municípios. Só então poderemos retomar a vocação democrática de que vimos sendo desviados a força.

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Ambições cortesãs e ambições republicanas

6 de junho de 2010 § 2 Comentários

Ambições

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cortesãs e ambições

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republicanas

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Ambição é o que move o bicho homem.  Foi ela que nos empurrou para fora do mundo animal.  E, hoje mais do que nunca, no limite do “apertamento”, sabemos que essa é a nossa benção e a nossa tragédia.

Entre o céu e o inferno; da negação à obsessão; da criminalização ao endeusamento, já se tentou de tudo para lidar com ela.

A esta altura, sabemos que é uma força da natureza tão irremovivel quanto o sexo e a fome e que tudo que é possível fazer é restringir as maneiras admitidas de servi-la.

Parece pouco, mas faz uma grande diferença. É o que foi possível conseguir nos 2500 anos de luta de Atenas até aqui.

Tomemos o caso extremo. As maiores ambições à solta no mundo. Volto ao Grande Jogo do Poder do qual descrevi um lance em detalhe na ultima série de artigos publicados aqui. Existe diferença, ao redor do globo, entre os que disputam o “Velocino de Ouro” do momento, que é o sonhado controle dos grandes vetores das “mídias convergidas”?

Não exatamente. Nem entre eles, nem na natureza da força que os move.

Mas não ha duvida: dos incentivos e constrangimentos de que se cerca essa volúpia nos distintos ambientes políticos e institucionais resultam benefícios significativos ou prejuízos devastadores para a massa dos que assistem de fora a luta dos que só entendem a vida correndo atras de se tornarem gigantes.

Reza o ditado que pau que nasce torto não tem jeito, morre torto.

E, de fato, nesta boca de Terceiro Milênio, assim como para tudo o mais, ha ambições cortesãs e ha ambições republicanas.

Na velha Europa e em seus rebentos latino americanos , a democracia é epidérmica. Não “entrou”. Joga-se, como sempre, o jogo da corte. Seja nas ricas, seja nas pobres, nada se faz sem a anuência do rei. Disso resulta, para as presas e para os predadores desse eco-sistema econômico, uma determinada lista de fatores críticos de sucesso e, como conseqüência, a seleção de um determinado tipo de “animal” como espécie dominante.

No sistema de cortes, ela não será nem a dos inovadores, nem a dos empreendedores, nem a dos mais dispostos ao trabalho. Será a dos que cultivaram com menos escrúpulo as melhores relações políticas.

Na série que precede este artigo examinei de perto o quadro da disputa pelas telecomunicações em Portugal e ex-colônias. Nenhum dos personagens envolvidos foge a esse figurino.

Não é só lá. Os oligarcas russos; Silvio Berlusconi, na Itália; Carlos Slim, no México; ou os nossos Sérgio Andrade e Carlos Jereissati, para ficarmos apenas nas criaturas deste governo, fizeram suas fortunas em negócios que são fruto de concessões do governo, nos quais as conexões políticas  são o fator decisivo de sucesso.

Em tudo se assemelham os lances que determinam a criação e o controle do gigante das telecomunicações brasileiro e do gigante das telecomunicações português. Em tudo se parecem os artífices dessa obra de cada lado do Atlântico e de cada lado do balcão governamental. Não houve criação, não houve inovação, não houve qualquer dose de risco envolvida no processo. No que foi necessário ousar foi na disposição de violar ou de manipular a lei. No que foi necessário superar a concorrência, foi na falta de escrúpulo. Aqui como lá, tendo os respectivos governos como sócios, “capitalistas de relacionamentos” notórios apenas se apropriaram de licenças para a facilitação, em regime de monopólio, do uso de  tecnologias desenvolvidas nos Estados Unidos no século passado em vastas extensões dos seus respectivos territórios nacionais. Aqui como lá, eles não disputam clientes; zelam por territórios exclusivos de caça e por sua possível ampliação. Aqui como lá, alimenta-se a expectativa de estender esse poder alem das fronteiras nacionais, aplicando a governos estrangeiros o único expediente “negocial” que funciona para satisfazer as ambições cortesãs.

No universo cortesão, ha um monopólio em cada setor da infra estrutura. E cada monopólio, se não é do governo, é cria de um governo. Com poucas exceções, é fácil traçar a linha direta de filiação entre cada nome da lista dos nossos bilionários e quase bilionários e os ditadores e presidentes que os “fizeram”.

Já no universo republicano, a linha “genealógica” dos bilionários leva diretamente às universidades. É de Stanford? É de Harvard? Sem nenhuma exceção, todos os bilionários da industria de tecnologia da informação, a arena onde se digladiam os maiores egos dos Estados Unidos, podem ser descritos como protótipos dos self made men: Bill Gates (Microsoft), Steve Jobs (Apple), Larry Page e Sergey Brin (Google), Mark Zukerberg (Facebook) têm em comum destacados currículos universitários e horas sem fim de esforço criativo, muitas vezes iniciado em precárias bancadas de obscuras garagens do subúrbio.

Não é só nessa industria. Uma pesquisa recente mostra que um em cada quatro bilionários do pais que se divorciou da Europa feudal sob a máxima “nenhum poder e nenhum dinheiro que não tenha sido fruto do mérito”, partiu do zero, seja qual for o campo de atividade envolvido. Na Alemanha, que tem a melhor marca entre os europeus, um em cada 10 bilionários cabem nessa descrição. No resto do mundo eles são exceções raríssimas…

Se ha algo de fascinante que “a rede do tamanho do mundo” (www), a mais revolucionária das resultantes da meritocracia americana, nos permite acompanhar, é o modo pelo qual os seus candidatos a gigante, tangidos por suas instituições, tratam de alimentar a mesma ganância que os europeus perseguem com a sua mumunha ancestral.

Ha quem pense hoje, depois do iPad na sequência do iPhone, que o jogo de Steve Jobs, longe de ser apenas o de se tornar um dos maiores desenhistas e fabricantes mundiais de gadgets eletrônicos altamente sofisticados e inovadores (coisa que ele também é), é se transformar numa rede de comunicações e de distribuição e venda de notícias, entretenimento e bens culturais de proporções no mínimo googlelianas.

A maior parte do que ele ganha hoje ainda vem das vendas de computadores, iPods, iPhones e iPads. Mas ha sinais claros de que o novo duto de faturamento logo superará o antigo. A ficha caiu com a fulminante caracterização do iPhone como a mais fantástica plataforma de vendas de aplicativos (software) que jamais existiu. Quatro bilhões de downloads já foram feitos e a caixa registradora continua girando em ritmo alucinante. Depois da musica, com o iTunes e o iPod, seria coincidência demais para não ser deliberado. O iPad chegou para confirmar tudo, cobrando uma taxazinha por cada livro, por cada revista, por cada jornal…

O iPad, dizem alguns críticos especializados, é a primeira máquina desenhada com a convergência de mídias em mente. Os computadores, feitos para a gente se debruçar em direção a eles, são muito pouco cômodos como plataformas de entretenimento. E a televisão é péssima para se surfar na web e para se passar e-mails. O iPad, com sua genial e simplérrima capa/bancada, serve para tudo isso e ainda é perfeito para você se afundar numa poltrona ou deitar na cama e ver um filme. E tudo sem que a Apple tenha gasto um tostão enterrando cabos  ou esticando fios. Ela conseguiu, enfim, o que os grandes portais tentaram e não conseguiram e o que as “teles” cortesãs ainda sonham obter.

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Qual foi o erro deles? Eles não fabricavam iPhones e iPads. A Apple produz combinações matadoras de hardware e software. E o resto vem por conseqüência. De qualquer maneira ela é, desde já, a única plataforma online que se provou capaz de cobrar com sucesso por conteúdos digitalizados.

Mas ha quem discorde. E as discussões são apaixonadas.

O Google trabalha focado no princípio das plataformas abertas e dos “conteúdos contribuídos” (feitos por contribuições espontâneas dos próprios usuários, cedidas ou roubadas) . Ao contrario de Jobs, que produz softs apenas para as suas máquinas, o Google aposta em programas abertos que podem ser usados em qualquer máquina. O seu sistema para telefones inteligentes, o Android (28% do mercado nos EUA), por exemplo, já ultrapassou as vendas do sistema OS do iPhone ( com 21% de share contra 36% do sistema usado no BlackBerry, ainda o campeão).Mas a Google vende apenas um soft que “motoriza” qualquer aparelho de qualquer fabricante enquanto o iPhone, com seu programa fechado é, por enquanto, uma plataforma imbatível de venda de aplicativos.

Sim, mas o soft do Google é aberto e vai ter desenvolvimentos num ritmo e numa extensão que só os mutirões são capazes de produzir enquanto as máquinas, como o iPhone ou o iPad, vão virar commodities reproduzidas ao redor do mundo, como aconteceu com os PCs no passado.

Mas, que ninguém se engane, o olho grande do Google foca o mesmo objetivo de controle monopolísticos de mercados atribuído a Jobs, mas pelo caminho da reprodução virtual das cidades, das ruas e das lojas que vai sendo acoplado ao seu sistema de mapas interativos, dando a cada comerciante e a cada consumidor ao redor do mundo a condição da ubiqüidade.

E o Windows? O Windows, ainda o rei dos escritórios, parece ter perdido definitivamente  a corrida dos telefones inteligentes. Mas esse jogo ainda não acabou…

Por aí vai a discussão.

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Se e quando resultar dessa disputa prejuízo alto demais para a platéia, pode-se sempre recorrer à força de um Estado que não participa diretamente do jogo, no qual a dependência do representante em relação ao representado é real, para aplainar as arestas. O fenômeno de concentração excessiva de um insumo de uso obrigatório como as telecomunicações numa economia moderna, como este que estamos assistindo hoje por aqui, aconteceu nos Estados Unidos ha perto de 40 anos atras. Em 1974 o Departamento de Justiça abriu um processo contra a AT&T por “práticas anti concorrenciais”. Julgada em 1982, a empresa foi forçada a abdicar de seus 22 monopólios regionais, finalmente consolidados em 7 Baby Bells regionais independentes, concorrendo entre si.

A diferença mais notável entre esses dois mundos é que o Estado fica fora da disputa das ambições republicanas – idênticas às cortesãs na sua natureza e, provavelmente, também nas suas inconfessáveis intenções ultimas – e intervém para moderá-las quando isso se faz necessário. Até esse momento, porém, o jogo é jogado dentro de regras claras e estáveis o bastante para o publico admiti-las como tal. E é isso que explica porque, lá, o jogo é acompanhado com um nível de vibração da platéia que aqui só se vê nos estádios. Há torcidas para PC e para Mac como aqui há torcidas para Corinthians e para São Paulo.

Já no mundo das ambições cortesãs, quando os contendores mostram a cara, sempre suja, é nas páginas policiais dos jornais. E é isso que alimenta o descrédito e o nojo da opinião publica contra uma disputa que, entre nós, é invariavelmente viciada.

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Fecha-se assim o círculo vicioso. O tanto que, lá, a vitória consagra, aqui a vitória compromete. É, quase sempre, um atestado de desonestidade. E é isso que arma a mão do Estado para “melar” a partida sempre que lhe convier. O publico, que é sempre o grande lesado no jogo das ambições cortesãs, estará sempre pronto a aplaudir quem se apresentar como  “xerife da ética” e vier “para acabar com a bandalheira” …  por excelência o discurso dos que vêm lá de baixo loucos para entrar nela.

Para as torcidas de lá, sempre sobram os iPhones, os iPads e as redes do tamanho do mundo com tudo que elas puxam a reboque como subproduto da perseguição de ambições individuais pelo caminho do mérito. É preciso inovar e inventar para ganhar esse jogo.

Entre nós, a inovação atrapalha. Ameaça as fronteiras de territórios privativos de caça ha muito estabelecidas. Os tempos mudaram e já não estamos mais queimando os inovadores em fogueiras monumentais em praças publicas. Hoje as cortes se contentam com o linchamento moral e a sabotagem  econômica dos críticos e dos inovadores.

E disso tudo resulta que enquanto “eles”, cheios de duvidas, perscrutam os confins do universo, recriam a vida com o DNA artificial e padecem as dores de serem humanos pairando acima da miséria material, nós perambulamos por este vale de lágrimas cheios de certezas, mergulhados na pobreza e  tomando “broncas” de chefes de quadrilhas que se aprazem em cagar regras para o mundo, a quem pagamos as tarifas e os impostos mais altos do planeta.

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(Depois desta, saio para uma semana de Amazônia, que ninguém é de ferro. Até…)

Um caso trágico de erro de diagnóstico

7 de abril de 2010 § 9 Comentários

O Brasil é um caso trágico de erro de diagnóstico.

A colonização apoiada exclusivamente no “latifúndio escravocrata exportador”, a definição em cima da qual se estruturou tudo que se pensou sobre o país no ultimo século, é uma falsificação que não encontra confirmação nos fatos, como Jorge Caleira demonstra com abundancia de provas no seu História do Brasil com Empreendedores. Essa formula é uma redução grosseira e distorcida de uma realidade muito mais rica, complexa e matizada, que tem origem num movimento reacionário deliberadamente arquitetado para nos colocar à margem do curso geral da História (veja, abaixo, artigos anteriores sobre o livro).

Comprada e cristalizada pelo marxismo de almanaque que mesmerizou a inteligentsia brasileira no século 20 e tomou de assalto nossas escolas, esta definição que os registros históricos não confirmam foi imposta a varias gerações de brasileiros como uma “verdade” intocável, o que fez com que produzisse o efeito deletério desejado pelos seus criadores.

Perdemos um século discutindo apaixonadamente o assessório, completamente cegos ao principal. O Brasil passou quase cem anos tomando remédios pesados para uma doença inexistente. Foi uma criança normal tratada como excepcional. E acabou por convencer-se tão profundamente de sua excepcionalidade; por acreditar tão completamente que tudo que serve e funciona para todos os outros povos do mundo não serve nem funciona para o “povinho” que “deus pôs neste paraíso” que esta partindo para a terceira eleição deste Terceiro Milênio ainda cheio dos traumas desse engano e mergulhado nessa mesma confusão.

Na raiz desse fenômeno está um desvio cultural bem mais profundo. Nós, latinos, somos apaixonados por respostas. Temo-las para tudo e, quase sempre, de antemão. O modo de pensar de inspiração jesuíta de que quase todos somos vítimas, na maioria inocentes, não parte de perguntas nem visa aquisição de saber. É um sistema defensivo que foi criado para sustentar a qualquer custo uma “verdade revelada” que estava ameaçada, entre outras coisas, pelo nascimento da ciência moderna. Uma técnica de argumentação que, por vício de origem, foge da verificação empírica e da confirmação das teorias pelos fatos literalmente como o diabo da cruz.

Estamos sempre prontos a comprar um novo dogma. Não gostamos de procurar a verdade, adoramos “ganhar discussões”. Construir ou destruir argumentos, não importa em torno de que.

Temos uma tendência incoercível para adotar a versão e desprezar o fato.

É isto que explica a forma de trabalhar da imprensa brasileira que se acha plenamente justificada quando apresenta uma versão “contra” e uma versão “a favor”, mas não perde tempo remexendo os fatos por si mesma para estabelecer o que, afinal, não está nem alem nem aquém dessas versões.

Basta ler um jornal e me deparar com a falta de precisão que é a marca de todos eles; com o crescente descaso para com a apuração das “informações” que neles se veicula; com o vício, que contamina a todos, de se limitar a passar adiante o que lhes declaram “fontes” interessadas em vez de confrontar essas versões com os fatos; basta esse gesto cotidiano para que o livro de Caldeira me volte à cabeça.

A chocante diferença que estabelece um elo de ligação entre esse historiador do passado e os historiadores do presente da imprensa é de método: de um lado, a hegemonia da versão; do outro o sistemático confronto delas com os fatos.

O livro de Caldeira está para a história da economia brasileira como as 95 teses de Lutero estão para os falsos dogmas inventados pela igreja medieval por cima dos quais erigiu-se um sistema espúrio de poder. O primeiro “protestante” das mentiras da igreja proclamou o direito de cada um de recusar versões e ir diretamente às fontes do conhecimento e, portanto, a capacidade de ler como instrumento de libertação individual e a educação de todos como um dever do Estado. Seu ato, ao publicar sua denuncia na porta da igreja de Wittemberg, é o ponto de partida não só da ciência mas também da democracia e do jornalismo modernos.

Caldeira mostra uma preocupação com os fatos que é rigorosamente “protestante”. Seu objetivo não é apenas recuperar registros históricos para por as coisas no seu devido lugar mas, também, denunciar a extensão do dano psicológico causado pela assimilação de uma mentira secular, coisa que ele faz registrando, a cada passo, a espantosa ausência de estudos brasileiros sobre as nossas mais particulares particularidades, a maioria das quais, quando chegou a ser estudada antes, foi por estrangeiros ou por brasileiros trabalhando em universidades estrangeiras, longe da “patrulha” que “faz a cabeça” de nossos estudantes (essa que sazonalmente assalta o Palácio dos Bandeirantes) e zela até hoje pela supremacia da versão sobre o fato.

Seu estudo sobre as “relações contratuais” entre homens livres, a esmagadora maioria dos habitantes do Brasil colônia, que resultaram na construção do país que conhecemos à margem da história oficial, explica de forma insofismável de onde vem a criatividade e o senso de improvisação que, desde sempre, foi a marca característica deste povo empreendedor e a alavanca do encantamento que ele provoca em todos quantos chegam a conhecer as condições da esburacada pista em que nos cabe correr a corrida global, e os modos e meios que inventamos para saltar os formidáveis obstáculos que ha nela.

Foi sempre assim. O Brasil foi construído escondido do Estado. Não é por acaso que o drible é a nossa especialidade. E as ferramentas usadas nessa obra, que Caldeira descreve com precisão e sabor, estão aí até hoje: o “resgate”, nas trocas com índios culturalmente propensos a alianças com estrangeiros; a “armação” das corridas ao sertão, dividindo riscos e lucros; o “fiado”, que não foi só adiantamento de mercadorias, foi também “capital” para a sua produção e reprodução; a “quarta”, que transformava “proletários” em empresários nos sertões das sesmarias. Tudo isso vai surgindo dos fatos e documentos que Caldeira alinha e pode ser reconhecido por cada um de nós nas suas versões atuais que continuam em pleno funcionamento no Brasil moderno.

O fascínio de seu livro esta em fugir da história oficial para nos contar a história do povo brasileiro e de sua obra. O declínio da imprensa, mais que por qualquer outro motivo, está em insistir em fazer o contrário: refestelar-se na história oficial e amplificar acriticamente a guerra de versões a serviço da luta pelo poder.

Quando a imprensa passar a usar a arma dos fatos com o mesmo propósito e a mesma acuidade com que Caldeira usou, é provável que o Brasil finalmente se livre das suas falsas igrejas.

Variações sobre o tema da “inclusão digital”

21 de setembro de 2009 § Deixe um comentário

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Foi só eu registrar que um dos segredos do sucesso do Lula é nunca ter dado entrevistas contando sempre que vão publicar tudo que diz em seus discursos diários sem perguntas nem contestações, e ele deu uma pra ninguém botar defeito ao Valor na semana passada.

Menos mal. Antes tarde do que nunca!

Lula é um sujeito inteligente. Muito inteligente. Os problemas dele são a vaidade e a esperteza (no mau sentido). Confia tanto na própria intuição que não sobra lugar para o senso crítico. E nem sempre usa a inteligência que deus lhe deu para o bem…

Sobre futuro, ele falou em duas coisas ao Valor. Primeiro na sempre presente (no discurso de qualquer político hoje) “inclusão digital”.

Espero que não seja no meu!

Entre os muitos neologismos que a esquerda “papaizão” despeja diariamente na praça e a imprensa imediatamente compra, esse é dos mais infelizes. A idéia é que o papaizão vai dar internet pra vocês todos de graça, pódexá. Mas soa mesmo é como exame de próstata…

Enfim, vamos ao que interessa. O outro item da pauta futura também me pôs uma pulgona atras da orelha. Vem aí uma “Consolidação das Leis Sociais” inspirada na Consolidação das Leis do Trabalho do Getulio Vargas.

Um perigo!

Quase tudo que Lula chama de ação social não passa de assistencialismo.

Já pensou tudo isso que está aí, todo o socorro de emergência prestado às muitas clientelas espalhadas país afora para este especial momento da vida nacional, congelado para todo o sempre! Pense no estrago que a petrificação da CLT fez e continua fazendo no Brasil. Hoje, 70 anos depois, estamos comemorando a marca de 34,5% da força de trabalho registrada, os outros 65,5% continuam pagando pelo excesso de “conquistas” dadas pelo Getulio aos demais. Pense em tudo que tivemos de rebolar nos últimos 70 anos pra não perdermos definitivamente o trem da História em função do aumento do custo da mão de obra sem a contrapartida do reforço do mercado interno porque não é o salário, é o imposto sobre o trabalho que é alto. Pense nos sindicatos pelegos, na estabilidade no emprego que fazia o sujeito mudar de cara no dia em que fazia 10 anos de casa, na industria da judicialização das relações do trabalho e … comece a rezar.

O que será que vai entrar na CLS? Bolsa-família para todo o sempre? Uma regra pétrea para os aumentos de salário que ignore a realidade cambiante da economia? Proteção e cesta básica para invasores forever? O que mais?

E os custos, senhor presidente?

Os custos? Ora, “os empresários têm tanta obrigação de ser brasileiros e nacionalistas quanto eu”…

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É aí que aquela inteligência toda se volta contra o seu dono. O Lula não é dos livros. Aprendeu tudo por experiência. É fino na intuição. E um mestre na arte de transpor para outras as lições que tira da observação de uma determinada situação. O problema é que, justamente, falta-lhe completamente a experiência de ter de fazer dinheiro com trabalho, pagar contas no fim do mês, resgatar papagaios e outras pequenezas que costumam afligir o comum dos mortais. Nunca lhe ocorreu que empresário não tem compadre rico, caixa de campanha, não arrecada imposto, não emite dinheiro, não tem banco estatal. Vai daí que, ao longo da entrevista inteira, duas páginas de jornal com letrinha pequena, essa confusão permeia cada pensamento de sua excelência: ele cobra do setor privado a mesma, digamos, largueza, com que está acostumado a tratar o Estado.

Conta pra quê?

Uma pena! Porque tem vários pensamentos expressos ali que fazem todo sentido, se o presidente conseguisse separar o que é função das empresas e o que é função do Estado e balizar os seus anseios pelos dados práticos da realidade.

Mas não. Ele mistura tudo.

“A gente não devia ficar preocupado em saber quanto o Estado gasta. Deveria ficar preocupado em saber se o Estado está cumprindo com suas funções de bem tratar a população”. Não vamos entrar no mérito dessa questão – olhar ou não para a realidade do caixa – em plena safra das bondades distribuidas durante o momento mais agudo da crise. Nem precisa. Lula é o primeiro a saber (e repete nesta entrevista) que “inflação sob controle é condição básica para o resto dar certo”.

Agora, vá um infeliz tratar o caixa de uma empresa assim…

vale

O braço de ferro dele com a Vale é o retrato dessa confusão. Todo o discurso sobre a necessidade de vender produtos indutrializados de preferência a commodities é óbvio e indiscutível. Mas porque sua excelência acha que uma mineradora tem de virar uma siderúrgica? Qual a lógica desse raciocínio? O Estado, que ele concorda que “deve ser o indutor e o fiscalizador e não o gerenciador e o administrador”, deve exigir da mineradora que se desdobre em siderúrgica, ou deveria tratar de reduzir o gap das nossas siderurgicas para as estrangeiras de modo a torná-las mais competitivas e, assim, tornar economicamente viável que outras empresas especializadas em siderurgia e não em mineração, processem aqui os minérios extraídos pelas mineradoras? Não estaria no fato de mineração ser menos taxado que siderurgia no Brasil a explicação para o minério ser processado lá fora, inclusive pelas siderurgicas brasileiras que tiveram de emigrar para o exterior em busca de impostos mais baixos para poderem se manter globalmente competitivas? Baixar esses impostos não se aplica como uma luva ao tal “papel indutor” que o Estado deveria ter?

Tão óbvio!

Sim, tão óbvio que essa insistente dissintonia entre a notória inteligência presidencial e as afirmações que faz acabam deixando a gente na duvida sobre se ele realmente confunde as “condições objetivas” do Estado e da iniciativa privada de lidar com problemas concretos ou só finge que faz essa confusão porque o que quer mesmo da iniciativa privada é dar-lhe … uma “inclusão digital”.

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Ha muito mais coisas no ar que os aviões do Sarkozy

16 de setembro de 2009 § 1 comentário

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O homem decolou!

Acaba de decretar o monopólio da empáfia!

Empáfia, agora, só com ele…

Outro dia disse, à sério, que Deus não escolheu atôa o momento que escolheu para “a gente” descobrir o pré-sal. A gente quem, cara pálida? Os acionistas todos que financiaram a descoberta e pra quem ele a Dilma deram uma banana na hora da colheita? Ou sua excelência estava se referindo só a si mesmo mais o altíssimo em pessoa?

Depois veio aquele “Compro o que quiser, quando eu quiser” e o mundo que se arda, começando pelos pilotos da FAB.

Faz tempo que eu venho dizendo pra quem me conhece que há muito mais coisas no ar que os aviões do Sarkozy. É só ir juntando as peças…

frei_bettoNem o PT existe mais. A esquerda honesta caiu fora, tapando o nariz. A intelectualidade debandou. São sempre os primeiros “companheiros de rota” que dançam, chutados pra escanteio. Andam por aí cabisbaixos, rangendo os dentes e engolindo o mal que ajudaram a fazer.  A esquerda católica tambem marinacaiu fora, com medo de ir pro inferno. Gente decente não cabe mais no PT. Os próprios “quadros”, os profissionais da política do partido, ou afundaram na lama, ou são tratados como soldadinhos que devem ouvir e obedecer, e que tomam “pito” em publico quando ousam levantar qualquer das suas antigas bandeiras.

Sobrou a máfia sindical, que sempre viveu nos porões do partido e servia para fazer o trabalho sujo. É a turma do por baixo do pano. Do tiro e da porretada. Do grampo e das batidas policiais.

É a turma do “aparelhamento”.

Aparelharam primeiro o mais importante: os fundos de pensão. Foram totalmente ocupados pelos comandos do dr. Gushiken.

E quando o Estado é o dono do capital, nada pode enfrentá-lo.

Como os cupins roendo em silêncio por debaixo da casca, foram comprando o suficiente, em cada grande grupo econômico do país, pra plantar a sua gente  dentro dos conselhos e ir aprendendo a manejar os controles. Nas privatizações, deitaram e rolaram. Não ficaram fora de nenhuma. E não pararam por aí. Hoje as poucas empresas “made in Brazil” com chance de serem globais  que não estão sob o controle direto ou indireto das Previs da vida, estão debaixo de porrada.

A campanha de solapamento, que até então rolava só por baixo do pano, mostrou a cara pela primeira vez com a Vale. No auge das consolidações mundo afora, a empresa foi proibida de fazer as compras que plotou. Daí por diante, todo dia é um tranco publico no diretor “colocado pelo Bradesco”.

Investiu?! Porque investiu?!

Não investiu?! Porque não investiu?!

Contratou?! E quem mandou?!

Demitiu?! E quem permitiu?!

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A Sadia, privada, comprar a Perdigão, da Previ!?! Nã-nã-ni-nã-não! Os negociadores foram chamados na chincha e informados, pelo próprio, que não se faz um negócio desse porte sem a benção do dr. Gushiken. Neste Brasil do PT competência ofende e o dinheiro privado tem de pedir licença pra crescer e se  multiplicar!

Com dinheiro publico é o contrário. Circula pra lá e pra cá sem que ninguém peça licença aos donos.

A Perdigão comprar a Sadia? Beleza!  Não precisa pedir licença…

Aliás, a JBS que está aí nos jornais de hoje comemorando que se tornou a maior do mundo em processamento de proteína animal que se cuide. A palavra “maior” faz o Lula e o Gushiken começarem a salivar imediatamente. Como maior? Quem foi que deixou? Como ousam passar na frente da “nossa” BRFoods?!

E esses bancos, porque se juntaram? Como ousaram crescer mais que o BB sem autorização?!

Nada disso!

Cerca!

E toca comprar, não importa o quê, não importa por quanto, que nada pode ser maior que “o meu” Estado…

E veja lá, se você der certo com o seu próprio dinheiro e o seu próprio esforço, tome grampo! Tome ameaça!

É grande? É a maior do mundo? Um empresário brazuca dando show de bola mundo afora? Pois a figurazinha trêfega enfiada no Cade para fazer dele um instrumento de chantagem está se lixando: “São todos uns trombadinhas que qualquer hora eu mando prender”. E tome 400 milhões de multa…

A entidade que deveria garantir a concorrência e evitar os monopólios foi a grande articuladora do tubarão gigante da telefonia criado com dinheiro “nosso”, a fundo perdido, para dois “empresários laranjas”…

E, de repente, não mais que de repente, a Vale “está à venda”…

O Bradesco vende sua parte? E porque não vender um player global onde a governança não vale mais nada?

E esse empresário que quer ser “o homem mais rico do mundo” e tira dinheiro de letras (sempre a mesma)? É só coincidência ele aparecer como o possível comprador dos 30% do Bradesco na Vale na mesma semana em que se apresentou como o patrono e anfitrião da festa de premiação do Lula em NY?

Mais um companheiro de rota?

empafia

Pois agora o zum-zum já é outro: tem o banco “tucano” (Itaú, puro sangue privado), e tem o banco PT (o Bradesco, banco “sem dono”), que, de repente, pode ser engolido pelo Banco do Brasil, que quer abrir filiais lá fora porque, pra ser do tamanho do Lula só o que tem aqui dentro não basta…

E, por cima de tudo, veio o pré-sal. E aí o homem começou a falar direto com Deus!

Vem aí o nosso Reich de Mil Anos!

E é bom que os nossos empresários, que estão caladinhos e sorrindo enquanto o braseiro aviva só porque estão ganhando uns trocos, abram o olho: o churrasco são vocês mesmos! E não se enganem. Se o Lula não tem tempo de pensar nessa conspiração de tanto pensar em si mesmo, essa turminha do aparelhamento geral, que vem trabalhando no escuro muito antes do PT chegar lá, tem. E é ela que vai ficar na Terra quando sua majestade subir ao Olimpo.

E que ajam rápido.

De onde já chegamos hoje será uma pedreira voltar, mesmo que o Lula perca a eleição. Se alguém de fora cair por cima deste Brasil aparelhado, vai comer o pão que o diabo amassou pra conseguir dar um passo com a máfia que hoje atravanca a máquina.

Mas o mais provável, é que ele não perca a eleição. E se o Lula é só um lulista que não acredita em nada senão em si mesmo, a Dilma é uma true believer

lulidilma

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