De Olavo de Carvalho a Vladimir Putin

27 de janeiro de 2022 § 25 Comentários

O artigo de João Pereira Coutinho para a Folha de 4a feira sobre a morte de Olavo de Carvalho, para além de, lá de Portugal, iluminar a escuridão da doença brasileira cuja principal manifestação é a expulsão de qualquer vestígio de inteligência dos estouros das manadas que mugem para a esquerda ou mugem para a direita da casta que mama no Brasil, foi ao essencial como sói acontecer quando quem escreve leu mais linhas de história que as que garatuja por aí.

Ele falava sobre as divisões da direita a mesma velha verdade essencial que vale para as divisões da esquerda: a discussão central da história moderna é a que nasce das duas revoluções contra o absolutismo monárquico – a inglesa e a francesa – e não tem nada a ver com esquerda x direita ou conservadores x progressistas. É, na verdade, única a exclusivamente, “a divisão entre aqueles que aceitam o desafio da individualidade e aqueles que o recusam, procurando abrigo nas ‘tribos’ da nação, da raça, do gênero ou de qualquer outra identidade coletiva”. Com a particularidade de que, no Brasil, essa divisão só começa, da classe governante para fora, no teatro que ela encena para a imprensa, que se deixa docemente constranger a assimilar a farsa, pois por cima da nação, da raça do gênero e do mais, está o férreo “fechado” na intocabilidade do “direito adquirido” de mamar no favelão nacional que a todos eles irmana.

Ler a imprensa brasileira – ou mesmo as redes sociais – com os óculos mágicos do “full disclosure” teria o efeito de um cataclisma. Se ao lado de todos quantos se manifestam nesses palcos viesse a nota explicativa de quais são assalariados do Estado (contando-se o que diz o holerite fake e o que de fato chupa em espécie e privilégios), ou têm “cônjuge, companheiro ou parente em linha reta ou colateral, por consanguinidade ou afinidade, até o terceiro grau” que o seja, como reza a lei antinepotismo, pouco ou nada se precisaria ler para saber como se posicionam em seus artigos e manifestações. 

E sobre o radicalismo com que cada um o faz, vai na proporção direta do tamanho do privilégio auferido que, como demonstrava a matéria da manchete do mesmo jornal (“Desigualdade no setor público cresce e já supera a do privado”) vai na razão inversa da exposição de cada casta dos donos do Estado ao eleitorado. Ganha muito, muito mais supersalários auto-atribuídos quem nunca precisará de um voto, no Judiciário, ganha só um tanto mais quem é eleito indiretamente, no Legislativo, e ganha um pouco menos que estes quem é eleito diretamente, no Executivo. Mas todos ganham muito mais que o resto do Brasil. Daí ser a primeira missão de cada um deles não dar poder ao indivíduo, vulgo eleitor, o que no campo da arquitetura institucional faz-se com o voto distrital puro e os direitos de recall, referendo e iniciativa que resultam na democracia que nenhum deles quer, o único antídoto conhecido contra a corrupção institucionalizada, que é esta que nos rouba à mão armada de lei.

Mas descontadas as particularidades que nos mantêm ainda no feudalismo que aquelas duas revoluções desafiaram, Pereira Coutinho foi ao fulcro. É da vertente inglesa, que desde a “Gloriosa” de 1688 deu ao Parlamento eleito pelo povo o lugar que fora do rei, a “ênfase na autonomia dos indivíduos e na limitação do poder”. É da vertente francesa, pela esquerda, a revolução que decapitou o rei para desaguar num imperador e, pela direita, os intelectuais que exortavam o povo à contra-revolução para restabelecer o absolutismo monárquico, tudo sempre em nome da ”liberté, egalité, fraternité”. 

É esse o “conservadorismo baseado na razão” com que acena o ladino Vladimir Putin aos encurralados pela fúria reacionária dos “anti-indivíduo” às rebeliões das classes médias meritocráticas embaladas pelas “primaveras” da infância da internet. Quanto a Bolsonaro, que Pereira Coutinho deixou prudentemente de lado, não tem a capacidade de estabelecer nuances, como tantos pelo mundo afora que mostraram ao novo czar da Russia o tamanho do espaço que, com a mesma lábia desse vídeo com o qual tenta provar que o ameaçado de invasão na Ucrânia é ele, agora ambiciona preencher.

O lugar vago a que Putin se candidata

26 de janeiro de 2022 § 11 Comentários

Não é de hoje a decepção dos fugidos do totalitarismo com a constatação da negação, pelo Ocidente que seus reformadores admiravam, dos fundamentos da sua própria cultura humanística.

Desde a Queda do Muro, já lá vão 33 anos, eles vêm constatando, com a reiterada surpresa de quem viveu acordado o pesadelo com que os outros estão apenas sonhando, que as trajetórias desses dois lados do mundo andam invertidas, com cada lado caminhando para o lugar que o outro ocupava.

Agora o movimento de “roque”, como no xadrez, está completo. Na visão do ex-chefe da polícia política soviética e presidente eterno da Russia, Vladimir Putin, “neste momento em que o mundo atravessa uma fase de disrrupção estrutural, a importância de um conservadorismo baseado na razão é cada vez mais urgentemente necessário, precisamente porque os riscos e perigos vêm se multiplicando tanto quanto a fragilidade de tudo à nossa volta”(…) 

“Todo poder, se quiser ser grande, tem de apoiar-se num conjunto de ideias que apontem para o futuro. E quando essa ideia se perde, o poder deixa de ser grande ou simplesmente se desintegra. Isso aconteceu com Roma e com a Espanha do século 17. Aconteceu também com a União Soviética quando a idéia do comunismo que a sustentava se perdeu. Ela era falsa, mas estava lá. Isso aconteceu com as potências europeias que ficaram cansadas e abandonaram suas ideias em favor de um pan-europeísmo que ainda os empurrou para frente por um tempo mas também se está esfarelando”.

Vladimir Putin candidata-se ao lugar vago.

Ele acredita que se for capaz de delinear uma ideologia conservadora consistente a Russia pode transformar-se num modelo e num polo de atração não só para os países da antiga União Soviética que têm eleito governos conservadores, como a Hungria e a Polônia, mas até para as forças conservadoras da Europa e dos próprios Estados Unidos.

O liberalismo progressista (que é como a esquerda americana chama a si mesmo) apoia proibições na sua estrutura ideológica. Não está aberto às instituições e políticas que não se alinhem com os seus instintos. Cada vez mais restringe o espaço de manobra dessas correntes, estejam onde estiverem, dos direitos dos pais ao conceito de soberania. É abertamente hostil até mesmo a princípios fundamentais do liberalismo tais como a liberdade de expressão. Tem se voltado até mesmo contra a vontade expressa dos eleitores em eleições e referendos”.

Ironicamente o mundo está prestes a entrar, portanto, numa nova Guerra Fria com papéis invertidos com o Ocidente carregando a bandeira do liberal-progressismo-comunista e a Russia a do conservadorismo.

O Clube de Discussões Valdai é um thinktank criado pelo próprio Putin em 2004, que patrocina anualmente o Forum Econômico Internacional de S. Petersburgo em Vladivostok. 

Seguem, abaixo, extratos do seu discurso na edição de outubro de 2021:

(…) a crise que estamos enfrentando é conceitual e até, mais que isso, civilizatória. Uma crise dos princípios que regem a própria existência humana na Terra (…) vivemos num estado de permanente inconstância, de imprevisibilidade, uma infindável transição (…) enfrentamos mudanças sistemáticas vindas de todas as direções – da cada vez mais complicada condição geofísica do planeta até às mais paradoxais interpretações do que é ser humano e quais as razões de nossa existência”…

“As mudanças climáticas e a degradação ambiental são tão obvias que mesmo as pessoas mais desatentas não podem mais ignorá-las. Alguma coisa tem de ser feita (…) e qualquer desavença geopolítica, científica ou técnica perde o sentido num quadro em que os vencedores não terão água para beber ou ar para respirar (…) nós temos de rever as prioridades de todos os estados”.

(…) o modelo atual de capitalismo não oferece solução para o crescimento da desigualdade (…) em toda a parte, mesmo nos países mais ricos a distribuição desigual da renda está exacerbando as diferenças (…) os países mais atrasados sentem essa diferença agudamente e estão perdendo a esperança de se aproximar dos mais adiantados. E a desesperança engendra as agressões e empurra as pessoas para os extremos” (…) 

“O fato de sociedades inteiras e gente jovem em diversos países ter reagido agressivamente às medidas de combate ao coronavirus mostrou que a pandemia foi só um pretexto: as causas dessa irritabilidade toda são muito mais profundas, e por isso a pandemia transformou-se em mais um fator de divisão em vez de levar à união”.

Mas a pandemia também mostrou claramente que a ordem internacional ainda gira em torno dos estados nacionais (…) as super plataformas digitais não conseguiram usurpar a politica e as funções do Estado (…) pesadas multas começam a ser-lhes impostas e as medidas anti-monopólio estão no forno (…) somente estados soberanos podem responder efetivamente aos desafios do tempo e às demandas dos cidadãos (…) quando as crises verdadeiras se desencadeiam só um valor universal fica de pé, a vida humana. E cada Estado decide, com base em suas habilidades, suas condições, sua cultura e suas tradições, qual a melhor maneira de protege-la”.

O Estado e a sociedade nunca deve responder com radicalismo ou com a destruição de sistemas tradicionais às mudanças de qualidade na tecnologia ou no meio ambiente. É muito mais fácil destruir do que criar. Nós, aqui na Russia, sabemos amargamente disso. Os exemplos da nossa historia nos autorizam a afirmar que as revoluções não são um meio para resolver crises; elas só as agravam. Nenhuma revolução vale o dano que produz nas capacidades humanas”.

Os advogados do auto-proclamado ‘progresso social’ acreditam que estão empurrando a humanidade para um nível de conscientização novo e melhor. Não ha nada de novo nisso. A Russia já esteve lá. Depois da revolução de 1917 os bolchevistas também diziam que iam mudar todos os comportamentos e costumes, a própria noção de moralidade e os fundamentos de uma sociedade saudável. A destruição de valores solidamente estabelecidos e das relações entre as pessoas até o limite da completa destruição da família, o encorajamento para que as pessoas denunciassem seus entes queridos, tudo isso foi saudado como progresso e amplamente festejado mundo afora” (…) 

Olhando o que está acontecendo no Ocidente fico embasbacado de ver de volta as práticas que eu espero que nós tenhamos abandonado para sempre num passado distante. A luta pela igualdade e contra a discriminação transformou-se numa forma agressiva de dogmatismo que beira o absurdo (…) Manifestar-se contra o racismo é uma causa nobre e necessária mas essa nova ‘cultura de cancelamento’ transformou-se numa discriminação reversa que não é mais que racismo pelo avesso. A ênfase obsessiva na raça está dividindo cada vez mais as pessoas (…) o contrário do sonho de Martin Luther King”

O debate em torno dos direitos do homem e da mulher, então, transformou-se numa perfeita fantasmagoria (…) e crianças pequenas, sendo ensinadas à revelia de seus pais, que meninos podem se transformar em meninas e vice-versa sem problema nenhum (…) Com o mundo de disrrupção em disrrupção a importância de um conservadorismo racional é fundamental (…) confiar em tradições testadas pelo tempo, um alinhamento preciso das prioridades, relacionar as necessidades com as possibilidades, estabelecer metas prudentes e, principalmente, rejeitar o extremismo como método (…) Para nós, russos, estes não são postulados especulativos mas lições da nossa trágica história. O custo de experiências sociais doentiamente concebidas é impossível de ser pago. Essas ações não destroem apenas bens materiais mas principalmente os fundamentos espirituais da existência humana, deixando atras de si um naufrágio moral onde nada pode ser reconstruído por muito, muito tempo”.

É claro que ninguém tem receitas prontas. Mas eu me arrisco a dizer que nosso país tem uma vantagem (…) nossa sociedade desenvolveu uma imunidade de rebanho ao extremismo que pavimenta o caminho para a reconstrução depois do cataclismo socioeconômico (…) O nosso é um conservadorismo otimista, que é o que mais importa. Nós acreditamos que o desenvolvimento estável e continuado é possível. Tudo depende estritamente dos nossos próprios esforços”.

Obrigado por sua paciência”.

Para a íntegra do discurso, vá a https://www.memri.org/reports/russias-new-conservative-ideology-counter-liberalism

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