Jornalixo x jornalismo: a eterna batalha – 2

3 de fevereiro de 2022 § 9 Comentários

No capítulo anterior fomos da “Guerra das Gazettes” (Thomas Jefferson x Alexander Hamilton) à primeira grande remissão por conta de Joseph Pulitzer e Sam McClure, duas das “sequências genéticas” que vão compor para todo o sempre o DNA do jornalismo e do jornalixo, os dois canais – da vertente sã e da vertente doente – da disputa pelo poder nas democracias. 

Vale, no entanto, recuar um passo antes de seguir adiante, para identificar claramente o “gen recessivo” que faz do jornalismo, antes de tudo, para o bem e para o mal, um parteiro de reformas.

Mais de mil e quinhentos anos se tinham passado, rios de lágrimas e de sangue tinham corrido quando a invenção de Gutemberg finalmente permitiu que Lutero desmascarasse o esquema de poder que, apoiado na censura e no controle estrito da informação, se tinha estruturado por cima da Igreja e transformado a mensagem de Cristo num instrumento de terror. O primeiro ramal do tronco bi-partido da semente que ele plantou medraria na Inglaterra com a “Revolução Gloriosa” de 1688 que dá ao Parlamento, eleito pelo povo, o lugar que era do rei. O segundo fincaria raízes na América do Norte.

A imprensa americana nasceu antes da democracia americana. Os Estados Unidos eram apenas um conglomerado de 13 colônias independentes com características genéticas bastante diferentes entre si até que Alexander Hamilton, James Madison e John Jay as convencessem a se unir numa federação apoiada numa Constituição democrática com a publicação de uma série de 85 artigos entre outubro de 1787 e agosto de 1788 no The Independent Journal de Nova York.

Foi a imprensa, portanto, o veículo dos Federalist Papers mediante os quais discutiu-se à exaustão e estabeleceu-se para sempre a receita do primeiro sistema político inteiramente baseado no debate de ideias e no livre consentimento de seus aderentes. Hamilton, autor da maioria dos artigos, escreveu-os dois por semana em intervalos de três dias, sob a pressão dos acontecimentos, enquanto rolava a Convenção de Filadélfia e, portanto, num ritmo essencialmente jornalístico. Mas então ainda não estava em cena a disputa de poder com data marcada que a democracia institui, e que é a mãe do jornalixo…

Feito o parêntese, voltamos a McClure e Pulitzer e à exitosa operação de ressuscitação da jovem democracia americana defeituosa promovida pelo jornalismo deles. Afastado da luta pela cegueira prematura, Pulitzer reserva uma parte de sua fortuna para perpetuar o jornalismo de qualidade em cujas mãos acreditava estar o futuro da democracia. Morre em 1911 e em 1912 é lançada a pedra fundamental da Columbia University Graduate School of Journalism. Só em 1927 dá-se a primeira distribuição do Prêmio Pulitzer em 21 categorias encomendado por ele e até hoje tido como o mais importante da profissão.

Mas “o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. É Walter Duranty, editor e correspondente do NYTimes na Moscou de Joseph Stalin, um dos primeiros e mais festejados ganhadores do Pulitzer (1932), quem vai se tornar o grande paradigma histórico da volta triunfal do jornalixo ao primeiro plano.

A semente do mal, que viera prosperando desde a “Guerra das Gazettes”, é a constatação de que, se o jornalixo não comanda os fatos, ele pode comandar a reação da massa dos eleitores aos fatos. É ele que instiga e alimenta a indignação que se levanta ou a anestesia que se instala na opinião pública. Lênin nunca negou a que veio e como veio. Só o poder lhe interessava. O terror elevado ao estado da arte era, declaradamente, o seu instrumento de ação. Quanto mais sagrado fosse o valor universal violentado e mais gratuita e injustificada a violência praticada contra ele, maior e “mais eficiente” seria o efeito do terror provocado e mais perto estaria a conquista do poder. E diante da indignação que essa violência inevitavelmente provocaria, dizia Vladimir Ilitch com todas as letras, “acuse o atacado daquilo que você é; ponha nele a culpa pelo que você faz”. 

Foi o jornalixo protegido pela marca do NYTimes, e não Lênin, que transformou essa receita sinistra na “salvação moral” da humanidade. Corrompido por Stalin, que “fez-lhe o nome” dando-lhe entrevistas exclusivas em momentos cruciais (e certamente não apenas isso), Duranty transformou-se no protótipo do Fausto, “dono” incontestável do assunto mais quente do jornalismo de seu tempo, e foi cortejado e festejado no mundo inteiro por isso.

Segundo ele, “tudo era cor-de-rosa na revolução russa”. “Ia às mil maravilhas a Nova Política Econômica” (NEP). “Moscou era uma festa”. “Stalin era amado pelo povo”… 

Mas nenhum jornalista estrangeiro, senão ele, podia sair da capital. Até que em 1934 Gareth Jones, viajando incógnito, registra o horror da fome na Ucrânia. Stalin estava resolvendo dois problemas matando de fome, pelo confisco de toda comida existente, a população que resistira à sua revolução (e até hoje ainda não se livrou da Russia), e escondendo da população de Moscou, inundada com essa mesma comida, a debacle da economia soviética. 

Aproximadamente 4 milhões de ucranianos foram deliberada e sistematicamente assassinados pela fome para sustentar a mentira socialista. Foram os primeiros de uma vasta montanha de cadáveres…

Expulso da Russia, também Gareth Jones foi assassinado um ano depois, aos 29 anos, quando fazia uma reportagem na Mongólia. Jurado de morte, os “guias” que contratara estavam a soldo da polícia política soviética…

O NYTimes, diante do escândalo da publicação das matérias de Jones no Ocidente, tirou Duranty de Moscou mas logo o devolveu para lá. Foi ele quem “cobriu”, com as lentes cor-de-rosa de sempre, os famosos “processos-farsa” (1936-38), sempre justificando-os, com que Stalin assassinou todos os seus companheiros revolucionários. 

Duranty morreu em paz em 1957 na Florida, aos 73 anos, e seu Prêmio Pulitzer, apesar de repetidos movimentos para que fosse revogado, nunca o foi, nem o NYTimes, em resposta a “investigações” sobre seu desempenho exigidas a partir dos anos 90 (pós queda do muro), “descobriu” qualquer coisa de muito grave sobre ele e todas as mentiras que escreveu e dormem em seus arquivos.

O socialismo real nunca pretendeu ser diferente do modelo que Lênin lhe conferiu. Da versão maoista dos anos 50-60, passando pelas “repúblicas democráticas” da Cortina de Ferro, pela cubana dos paredón, pela vietnamita dos boat people, pela cambodjana que matou 1/4 de população do país, pela coreana dos Kim até chegar à ciber-ditadura de Xi Jinping, todas impõem-se pela violência e pelo terror; todas afirmam sem meias palavras que o poder totalitário do partido único, extensão do chefe único, está acima de tudo e de todos, sob pena de morte. Foi sempre o modelo de jornalixo relançado pelo até hoje premiado Walter Duranty e refinado ao estado da arte por Antonio Gramsci, que fez dele o que nunca foi, ensejando que continuasse matando como mata até hoje “em nome do bem da humanidade”.

Agora mesmo, em plena fervura planetária da patacoada das fake news nascida e criada pelo jornalixo, um docudrama muito bem feito – na Polônia, jamais em Hollywood, é claro – contando essa história está ofertado na Netflix. Mas vem sob o título genérico “À sombra de Stalin”, um “filme sobre questões sociais”, e escondido sob a legenda que se lê abaixo que não menciona o NYTimes, o nome do seu tristemente famoso agente stalinista ou a palpitante questão das fake news.

Ou seja, quase 100 anos depois dos acontecimentos, o jornalixo é uma instituição cada vez mais firme, mais forte e, como se verá no capítulo de amanhã, mais generalizada!

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