Onde resiste a democracia americana

22 de setembro de 2020 § 15 Comentários

Têm sempre um grau de consistência maior que a média as análises de Luis Sergio Henriques na página de artigos de O Estado de S. Paulo. Domingo ele falava da relevância que terá fora das fronteiras americanas – especialmente no Brasil de Bolsonaro, “a cópia” – a eleição presidencial de novembro em que Donald Trump – “o original” – disputa a reeleição.

Ainda que assinalando a diferença entre os americanos, “indivíduos livres e acostumados à participação na vida pública” e nós “ibéricos tendentes à arquitetura social barroca, perdido o indivíduo numa totalidade que não domina e frequentemente o esmaga”, vê os sistemas políticos das duas grandes nações desafiados por um problema análogo, com “o abrasileiramento dos EUA e a americanização do Brasil” empurrando ambos para “a morte das democracias”.

Vai bem Luís Henrique quando aponta no “America First” de Trump a síntese da retirada dos EUA das instâncias multilaterais, a começar pela ONU, que não é tanto uma renúncia ao universalismo dos valores liberais trazidos ao mundo pela revolução americana, é mais “a explicitação da incapacidade de direção dos processos globais”. O isolacionismo do qual os Estados Unidos foram arrancados a duras penas no século 20 para defender a Europa de ameaças totalitárias de que eles mesmos sempre estiveram livres – o nazismo e o socialismo – foi sempre uma marca constitutiva do excepcionalismo daquele país.

Até quando registra que esse “déficit de hegemonia” está presente também internamente, com Trump, que rejeita de forma demagogicamente reacionária um processo de globalização que sabe irreversível ao “governar só para os seus” e apontar nas oposições cultural e política inimigos internos que ameaçam o “excepcionalismo” e o “destino manifesto” americanos, Luís Henrique vai bem.

Mas trai o seu próprio “barroquismo” ao deixar subentendido que essa participação na vida pública que existe lá e não existe aqui limita-se a um “costume” e não responde, como de fato responde, aos níveis radicalmente opostos de “empoderamento” (detesto a palavra mas para o caso não há melhor) que as instituições deles concretamente proporcionam e as nossas concretamente negam a sua majestade o povo.

Lá, com recall, iniciativa e referendo, o povo realmente manda no governo e por isso participa. Aqui o governo manda no povo e todas as instâncias de representação são falsas, e portanto o povo não perde tempo fingindo que participa. Não é uma diferença vagamente “cultural”, tudo decorre de uma diferença prática e concretíssima de mecanismos institucionais que onde quer que são instalados, produzem o mesmo efeito na disposição do povo de participar.

Vai sem dizer que, onde e quando pode, o povo “participa” no sentido de favorecer o seu interesse o que invariavelmente significa libertar-se da exploração dos parasitas da privilegiatura com resultados explosivos.

O Brasil tem dos EUA exclusivamente a visão que pinta deles o “gueto cultural” do antigo “Condado de York”. Mas Nova York é o pedaço menos americano e menos democrático da democracia americana, obcecada com a figura de sua majestade o presidente, igualmente a menos representativa de tudo que a revolução americana tem de mais revolucionário.

A União, à qual os estados resistiram até o último minuto na história da formação do país, é a coisa menos americana da democracia americana. A Constituição deles é, na verdade, uma negação da União, que ela reconhece como um mal necessário para manter a inserção do “Novo Mundo” no “Velho” mas que, por isso mesmo, cerca por todos os lados de profiláticos checks and balances. 

A União é, na verdade, tudo que a democracia americana tem de parecido com o resto do mundo. Mas o que a define e distingue de todo o resto é o que está daí para baixo. A democracia que se pratica nos estados e nos municípios, de cujas populações diretamente nascem os “ballot measures” (tudo que eles decidem, tendo a necessidade por única medida, que vai ser decidido no voto), esta sim é totalmente “excepcional” e, quase sempre, desconhecida para o resto do mundo porque é um perigo mortal para os poderes estabelecidos que “patrulham” ferozmente o assunto.

É esta que é indestrutível. São nesses Estados (e cidades) Unidos que o povo está de fato no poder. E, como todo mundo que um dia “comeu melado”, jamais abrirá mão dele.

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