O MP e o campeonato de desonestidade
19 de outubro de 2021 § 11 Comentários

Vai de vento em popa o campeonato brasileiro de desonestidade na nova fase aberta pela discussão do controle externo do Ministério Público.
Como todas as discussões que se trava sem sair dos limites estreitos da “democracia” sem povo do Brasil, esta é mais uma em que ninguém tem razão. Como todas as outras, da eleição presidencial para baixo, não é senão outro embate de poder entre as facções que se digladiam para ver qual deve ter a primazia de explorar o favelão nacional, que todas zelam unidas para que não possa fazer mais que “assistir bestificado” à proclamação do vencedor de cada contenda.
O ataque, desta vez, vem pelo flanco, com a PEC 5/2021 que reforma o Conselho Nacional do Ministério Público, órgão nascido capenga em 2004. Já então o pretexto era corrigir o excesso de poder conferido pela Constituição de 88 ao Ministério Público, mas sem dar ao novo futuro cabide de empregos poderes reais para fazê-lo. Agora a reforma dessa reforma, como disse Demétrio Magnoli em artigo recente para a Folha, “faz muito e pouco ao mesmo tempo”. Muito dando autorização ao órgão de rever atos de integrantes do MP, uma nítida “vingança” destinada a interromper investigações de corrupção. Pouco ampliando de 14 para 15 o número de assentos no conselho com reserva de quatro indicados pelo Congresso (que antes só indicava dois), numero insuficiente para quebrar a maioria de indicados pelo próprio MP “a ser vigiado”.

Os procuradores intocáveis que, sim, também “utilizaram o poder de investigar e acusar para fazer política”, reagem à ameaça de redução desse poder quase com histeria, o que é compreensível diante do desmonte quase completo das defesas nacionais contra a corrupção que se deu ao longo da manobra em pinça para lavar com aguarrás as fichas sujadas pela Lava Jato, transformar Lula em vítima e Renan Calheiros em paladino do estado democrático de direito. Mas o Congresso, sem duvida nenhuma, também não quer acabar com a classe dos intocáveis, “quer apenas estender esse privilégio aos seus próprios integrantes”. E conta, para isso, com a aliança “fechada” da “imprensa-turba” que deveria ser “a voz do povo” mas, dispensada de todas as regras que fizeram da que havia antes uma instituição da democracia pela cruzada antibolsonarista, hoje escreve editoriais veementes a favor da censura e contra a redução de impostos e emite as sentenças de “antirepublicanismo” que os Alexandres de Moraes se comprazem em executar.
No mundo encantado dessa imprensa está tudo certo com o sistema eleitoral brasileiro e a relação de forças que ele produz entre eleitores e eleitos; o Congresso Nacional realmente representa a sociedade brasileira e, portanto, não deve ter “mera posição figurativa” na corregedoria do MP pois só aquela instituição e nunca o STF ou as bravas excelências e suas CPIs nefandas “lançam acusações judiciais amparadas exclusivamente nas crenças ideológicas” de seus titulares. Para essa imprensa o que define “estado de direito” e “democracia” não é aquilo que Tocqueville descreveu, é o que a C88 da privilegiatura, para a privilegiatura e pela privilegiatura prescreve.

A cobra morde o próprio rabo quando o “lado dos mocinhos”, para resguardar a própria onipotência, também recusa saltar a cerca da antidemocracia. Pois não dá para alegar que Deltan Dallagnol, protestante e formado em Harvard, desconheça qual o fator que distingue essencialmente o promotor publico brasileiro do promotor publico numa democracia.
Nelas, como afirma a C88 “à brinca”, TODO PODER EMANA DO POVO “à vera”. E, para que assim seja, todo governante, todo legislador, todo prestador de justiça e, mais especialmente que os outros, todos os funcionários destacados para fiscalizar o governo, são diretamente eleitos e podem ser diretamente deseleitos, a qualquer momento, pelos eleitores que REPRESENTAM. Sim, porque eles mesmos não “são”, nem “existem” por si, apenas REPRESENTAM uma parcela identificável do eleitorado, a mesma que pode destitui-lo a qualquer momento.
O principal, entre esses funcionários nos Estados Unidos é o promotor geral (attorney general). É ele a principal figura do sistema judiciário de um regime em que cada estado tem a sua constituição, as suas leis e o seu sistema de justiça desde que respeitados os limites gerais com que todos que fazem parte da União EXPRESSAMENTE CONCORDARAM EM ACEITAR, como é da definição do “sistema federativo” sob o qual, diz a C88 que a ninguém pediu para ser aceita, a todos se nos impôs, nós “também vivemos”.

O attorney general existe nos 50 estados americanos e é diretamente eleito em 43 para um máximo de quatro mandatos de dois anos cada com variações para menos entre os estados. São, ao mesmo tempo, o mais graduado funcionário do sistema de imposição da lei (law enforcement), encarregado de decidir as principais ênfases das políticas de segurança pública e, como “advogados do povo”, de dar a decisão final sobre quem pode ou não ser processado por violá-la.
Mesmo lá, onde o congresso realmente representa o povo que escolhe dos candidatos a candidatos aos candidatos eleitos especificamente por cada cidadão, o attorney general é diretamente eleito pelo povo e pode ser deseleito por ele a qualquer momento.
Não é, portanto, apenas a transitoriedade dos mandatos que os diferenciam dos nossos – os promotores brasileiros entram no MP por concurso para lá permanecerem a vida inteira detendo esse poder “que corrompe sempre e corrompe absolutamente quando é absoluto” – é principalmente o “patrão” a que eles diretamente respondem que dispensa o papo furado que vimos assistindo ha séculos sobre quem deve mandar em quem dentro dos limites blindados do Sistema, a discussão recorrente para definir apenas e tão somente quem vai ter o poder de “livrar a cara” de quem viola a lei.

Procurando no lugar errado
27 de outubro de 2017 § 37 Comentários
Artigo para O Estado de S. Paulo de 27/10/2017
A capa de anteontem, 25/10, deste jornal é uma síntese perfeita do drama brasileiro. Sob a manchete “Itália faz alerta para a Lava Jato” uma foto ocupando 80% da largura da primeira página por metade de sua altura mostrava Gherardo Colombo e Piercamillo Davigo, respectivamente promotor e juiz envolvidos na “Mãos Limpas”, a operação de combate à corrupção que, encerrada ha 25 anos, tinha chacoalhado a Itália pelos 13 anos anteriores, e Deltan Dallagnol e Sérgio Moro, promotor e juiz à frente da nossa Lava Jato, em campo ja ha 4 anos.
A primeira frase da reportagem que resumia o que se apurou no evento que reuniu os quatro na sede do jornal, era “A corrupção na Itália, 25 anos depois, voltou ao mesmo nível de antes das investigações”. E seguia o texto relatando que os protagonistas da operação brasileira estão cientes de que ela não basta para salvar o país e cobram “a aprovação de reformas políticas, estruturais e de educação” para chegarmos a resultados concretos no campo do combate à corrupção.
Mas aí começa o problema. Que reformas, exatamente?
Por baixo de cada personagem na foto havia uma frase destacada. Gherardo Colombo dizia que “Não é que faltavam provas, é que o sistema de corrupção era muito forte a ponto de proteger-se”. Relacionando Brasil e Itália, Piercamillo Davigo registrava que: “Todos sabem que quem faz as listas eleitorais controla os partidos. Ha filiações compradas”. Deltan Dallagnol emendava que “O Parlamento continua legislando em causa própria; ministros do STF soltam e ressoltam presos”. A Sérgio Moro, mais pé-no-chão, atribuiam um “Claro que como cidadão ha tensão sobre a eleição se aproximando, mas eu vou seguir fazendo o meu trabalho”.
A frase que primeiro chamou minha atenção foi a de Piercamillo. E dentro dela, aquele “todos sabem”. Quando a “Mãos Limpas” chegou ao esgotamento pelo cansaço da plateia com a falta de resultados concretos ja faziam quase 80 anos que a primeira grande operação de sucesso de uma nação unida contra a corrupção tinha terminado nos Estados Unidos. E a primeira bandeira dela, na longínqua virada do século 19 para o século 20, foi precisamente a da adoção da reforma sem a qual “todos sabiam” já àquela altura que nenhuma outra poderia chegar a bom termo no campo da política: a despartidarização das eleições municipais de modo a abrir o sistema à irrigação permanente de sangue novo e a instituição de eleições primárias diretas em todas as demais para tomar dos velhos caciques corruptos o controle da porta de entrada na política.
Daí saltei para a frase de Gherardo, da qual a de Deltan é praticamente um complemento. As duas são meras constatações de uma realidade que nos agride em plena face de forma cada vez mais violenta diariamente. Mas nenhuma aponta o que interessa que é de onde vem, essencialmente, essa força que permite aos políticos “proteger-se” e “legislar em causa própria” e aos juizes “soltar e ressoltar presos” impunemente. Foi essa a segunda bandeira da reforma americana. É de velho como ela que se sabe que essa força decorre, antes de mais nada, da intocabilidade de seus mandatos, problema que remediou-se pra lá de satisfatoriamente dando-se poder aos eleitores para retoma-los a qualquer momento com o “recall” e livrar-se dos juizes que “soltam e ressoltam presos” desconfirmando-os na primeira ação imprópria com a instituição de eleições diretas para a confirmação ou não de juizes em suas funções (“retention election”) a cada quatro anos. A receita se tem mostrado infalível para agilizar a prestação de justiça e fazer esses servidores calçarem as sandálias da humildade e esquecerem para sempre o hábito de se auto-atribuirem privilégios como convém às democracias. Quanto aos promotores, assim como todo funcionário envolvido com prestação de serviços diretos ao público ou, sobretudo, com fiscalização do sistema e com segurança tais como xerifes e até policiais em um grande numero de cidades e estados americanos, esses só chegam ao cargo por eleição direta. Um santo remédio para coibir abuso de poder e violência policial e para incentivar a aplicação da firmeza necessária contra o crime.
Não sei quanto aos italianos, mas Deltan Dallagnol e Sérgio Moro, ambos ex-alunos de Harvard, certamente conhecem essas soluções e já ouviram pelo menos alguma coisa sobre a história da sua implantação. E, no entanto, quando chega a hora de propor remédios para o Brasil, ficam só no mais do mesmo, com dezenas de medidas que reforçam os seus próprios poderes quando o argumento indiscutivel do resultado, que eles chegaram pessoalmente a viver e experimentar, diz claramente que a resposta não está em reforçar os poderes estabelecidos, já pra lá de excessivos no Brasil mas, ao contrário, em fragiliza-los para aumentar os do eleitor.
O problema que matou a “Mani Puliti” como poderá matar a Lava Jato é, portanto, o pouco que ela se propôs ser face ao muito que poderia e deveria ter desencadeado.
Cabe, finalmente, examinar a posição do próprio jornal nessa discussão. Ainda que se destaque pelo esforço para não se submeter à “patrulha” que zurra e escoiceia ante qualquer esboço de argumento crítico racional, com o que ameaça matar não só a Lava Jato mas todo o ensaio brasileiro de democracia, também O Estado não ultrapassa o limite que a latinidade daqui ou de além mar se impôs.
O brasileiro não sabe o que são primárias diretas, “recall”, “retention election” de juizes, federalismo, referendo e iniciativa legislativas não golpistas. Nunca viu uma cédula de uma eleição americana com as dezenas de decisões que se submete diretamente ao eleitorado na carona de cada eleição. Não sabe o que é o sistema de City Manager e porque esse é o modelo de gestão municipal que se generalizou no país que, por dispor desses instrumentos, tornou-se o mais próspero, o mais inovador e o mais livre que a humanidade já juntou sob uma única bandeira.
A imprensa brasileira só se permite difundir, quando não festejar, aquilo que fracassou.
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