Marina e a democracia: uma retratação

4 de setembro de 2014 § 12 Comentários

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Estou devendo desculpas aos leitores do Vespeiro e uma retratação do que disse no artigo anterior a respeito do programa de governo de Marina Silva.

Com compromisso fora de São Paulo marcado para a terça e quarta-feiras passadas passei o fim-de-semana escaneando os jornais em busca de análises do programa de governo da candidata, em especial no que diz respeito à questão que mais preocupa na eleição deste ano que são os mecanismos de “democracia direta” e de “governo de participação social” que podem jogar o Brasil num desvio sem retorno.

Os que o PT quer impor ao Brasil com o Decreto 8243 assinado ha quase quatro meses por Dilma Rousseff, como já tive oportunidade de alertar em vários artigos, revogam o sistema republicano e a democracia representativa (não ha outra possível hoje) no Brasil e o fato de Marina Silva te-lo elogiado diretamente, ainda que retratando-se logo depois, foi o que me endereçou para o engano, que completou-se, na sequência, por ter eu me baseado em resumos do programa então recém publicado para o artigo que, ainda na segunda, deixei programado para publicação na terça.

De volta a São Paulo, entreguei-me a leitura do original do Plano de Ação para Mudar o Brasil, da coligação Unidos pelo Brasil, o programa de governo de Marina Silva, que alterou substancialmente a impressão formada por essas leituras de segunda mão.

COLETIVA DA CANDIDATA DERROTADA MARINA SILVA

O primeiro capítulo, Estado e Democracia de Alta Intensidade, divide-se nos sub-temas “Reforma Política”, “Reforma Administrativa”, “Novo Federalismo” e “Política Externa”.

Para irmos diretamente ao que interessa, encontrei diferenças fundamentais entre a proposta nitidamente antidemocrática, de inspiração bolivariana e francamente desonesta visando antepor ao Congresso Nacional eleito pelo sufrágio universal “movimentos sociais” articulados e escolhidos pelo partido do decreto do PT e as propostas – “sonháticas” ou não vai de cada um avaliar – incluídas no plano de governo de Marina Silva que vai beber nas fontes holandesas e nórdicas da “democracia em rede” que inspiram o Partido Pirata, com versões em diversos países europeus e até no Brasil.

Democratização da democracia pressupõe combinar os movimentos sociais históricos com as mobilizações que surgem por meio das novas tecnologias. (…) As tecnologias da informação e comunicação são, portanto, potenciais aliadas em um processo de mudança. (…) Por meio da democracia digital, podemos radicalizar a transparência e o controle da ação governamental, missão para o curto prazo”, reza o programa de Marina, que fala até na criação de “aplicativos” para promover essa forma de participação.

O objetivo geral desse recurso entretanto, repete-se várias vezes de forma direta ou indireta ao longo do texto, é impor “accountability” aos representantes eleitos, o que o diferencia claramente do projeto do PT, cujo objetivo é exatamente o contrário: acabar com os poucos recursos de responsabilização de representantes e governantes que sobram em pé no Brasil ao fim de 12 anos de desmontagem dos poderes Legislativo e Judiciário. O de Marina é um instrumento de pressão para ser exercida sobre os representantes eleitos; o do PT uma fórmula para substituir os representantes eleitos.

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A fórmula de Marina tem em comum com as que a inspiraram, a imprecisão na definição das regras necessárias para garantir “accountability” aos próprios processos de participação direta na política, no sentido de sua representatividade e legitimidade, o que a deixa exposta a riscos que não passam muito pela lista das preocupações centrais dos eleitores dos países nórdicos ou da Holanda onde os fundamentos básicos da democracia são tidos como garantidos, irremovíveis e não são passíveis de qualquer contestação.

Aqui ainda não é assim. De modo que se mesmo os europeus namoram tentações que é sempre melhor manter fora de alcance porque o poder é o poder e a ocasião faz o ladrão, nós temos multiplicadas razões para mante-los o mais longe possível do alcance dos aventureiros que rondam por aqui e não hesitariam em lançar-lhes mão.

A regra de maioria não é, certamente, perfeita, daí ser uma preocupação central de toda democracia sem aspas garantir os direitos das minorias, mas é a única possível num sistema de democracia representativa, de resto inescapável no contexto de multidões do mundo de hoje. Qualquer outra abre brechas para o autoritarismo e para coisas piores como as que o modelo do PT tem em vista.

A regra de maioria é, enfim, a única que resolve o problema de garantir que todos participem ou possam participar das decisões – de iniciativa popular, via plebiscitos, ou de iniciativa parlamentar, pela ratificação por referendo popular – que só podem ser legitimadas pelo voto universal cruzado com o critério de maioria.

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O programa de Marina fala em “permitir a convocação de plebiscitos e referendos pelo povo e facilitar a iniciativa popular de leis, mediante redução das assinaturas necessárias e da possibilidade de registro de assinaturas eletrônicas”. Esse direito já está incluído na Constituição de 88. A quantidade de assinaturas, desde que numa proporção razoável, não é o principal problema. Já a certificação de “assinaturas eletrônicas” sim, é altamente problemático pelas vulnerabilidades que, de resto, afetam também as nossas “máquinas de votar”, e mais algumas.

O importante é que a lei aprovada por esse meio seja debatida em campanhas contra e a favor igualmente financiadas pelo Estado nos meios de comunicação de massa, e que fique garantido que todos poderão votar a sua aprovação ou rejeição (e não só os “movimentos sociais” escolhdios pelo partido). E mais importante ainda, seria garantir que o que ela decidisse não pudesse ser emendado e regulamentado pelo Congresso até a inversão da vontade expressa da população, fonte original da legitimidade de qualquer lei, como continua podendo acontecer aqui, fato de que é prova e exemplo o Estatuto do Desarmamento que, mesmo rejeitado nas urnas, foi imposto à população por um Congresso que não respeita a vontade popular.

O projeto de Marina não propõe esses aperfeiçoamentos e apenas chove no molhado repropondo o que já está vigente desde 88.

O complemento negativo a esse instumento descrito no primeiro capítulo vem no sexto e ultimo “Eixo”, batizado “Cidadania e Identidades”, que derrama um longo e confuso palavrório a respeito das “minorias” de sempre, que devem ter tratamento especial ou porque são credoras de “dívidas históricas” ou, simplesmente, porque estão na moda.

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O capítulo é bastante impreciso mas sugere que os membros de tais grupos, que como lembrei no artigo anterior a este do Vespeiro, votam como todos os brasileiros, devam ter poderes que os demais brasileiros não têm para multiplicar sua representação.

O projeto não chega, entretanto, a formular nada de muito preciso nesse sentido o que põe a coisa na gaveta dos discursos de campanha bons para enganchar certos ouvintes mas vazios de maior significado.

Ha, finalmente, até uma proposta de impacto talvez maior do que suspeitam os formuladores do plano, dada a discrição com que a incluiram no conjunto, que é a de “permitir candidaturas avulsas aos cargos proporcionais mediante o atendimento a requisitos a definir”.

Essa medida é fundamental para quebrar o domínio dos caciques dos partidos sem o aval dos quais ninguém pode entrar na política brasileira hoje. Eles são os porteiros do filtro de seleção negativa que garante a “pureza” do DNA corrupto da nossa política, e abrir uma porta lateral é o unico meio de quebrar-lhes a hegemonia e permitir a entrada de ar fresco no sistema. Essa medida generalizada para o nível municipal onde as eleições passaram a ser apartidárias nos Estados Unidos, foi fundamental para reduzir a corrupção e renovar a política naquele país. Deixou de ser obrigatório compor-se com velhas marafonas para ingressar no sistema.

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Resumindo, então: os mecanismos de “participação popular” propostos no programa de Marina Silva não parecem ter o mesmo DNA antidemocrático dos propostos pelo PT, embora se aventurem em terreno perigoso se não incluirem todas as definições necessárias para garantir a participação de todos os brasileiros neles e, assim, garantir sua legitimidade e mudar-lhes o sinal de negativo em positivo.

A forma consagrada de se conseguir tudo isso, além de um bom grau de saudável particularização de problemas que não são iguais para todos os brasileiros, e muito mais daí por diante como já se explicou incontáveis vezes aqui no Vespeiro, é instituir o voto distrital com recall depois de reconstituir o sistema federativo, proposta que consta com algum detalhe e demonstrações de empenho no programa de Marina.

Para esgotar a crítica a esse primeiro “Eixo”, cabe registrar algumas palavras sobre os demais sub-temas incluídos nele.

Em “Reforma Administrativa”, vai-se pelo diagnóstico correto com a descrição das consequências da ausência de meritocracia no sistema, mas “amarela-se” na hora das propostas concretas para esse contingente tão poderoso e numéricamente muito mais significativo do que deveria ser numa economia saudável, que é o universo do funcionalismo. Fica-se no mesmo “choque de gestão” de Aécio que o projeto começa por criticar como insuficiente e na proposição de metas a serem cumpridas, propostas que mudam alguma coisa se o governante de plantão tiver vocação para Sísifo, mas que são semi-inócuas num contexto de indemissibilidade dos funcionários públicos. É o que é possível fazer no mundo real. Mas neste capítulo o programa de Marina acaba por fazer concessões vergonhosas sugerindo que o proprio funcionalismo continue decidindo “democraticamente” (para quem cara-pálida?) o seu próprio destino, ou seja, como e quando entrarão em nossos bolsos.

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Em “Novo Federalismo” ha um diagnóstico correto e uma ou duas medidas iniciais concretas descritas com numeros. Mas de qualquer maneira ele ajuda a corroborar a impressão de que não ha um viés antidemocrático no conjunto.

Finalmente em “Política Externa”, de longe a peça mais consistente, objetiva, assertiva e bem escrita do documento, faz-se uma crítica contundente à ideologização e ao aparelhamento da política externa do PT para um projeto de poder e não para o interesse geral da Nação, e um minucioso roteiro para voltar a colocar a política externa a serviço do desenvolvimento nacional e de volta no figurino da tradição diplomática brasileira, um patrimônio nacional que o do PT foi o primeiro governo em nossa história a violentar frontal e brutalmente.

Também esse capítulo combina com o tom filo-democrático do cojunto.

Tudo isso considerado, retrato-me do artigo anterior. A proposição “Com o PT a certeza da venezuelização, com Marina livramo-nos desse pesadelo” continua sendo verdadeira, se tomarmos pelo valor de face o que está escrito no programa da candidata.

Marina Silva

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