Jornalixo x Jornalismo: a eterna batalha – 4
8 de fevereiro de 2022 § 3 Comentários

Havia menos de 50 jornais nos EUA em 1776 e mais de 250 em 1800. Eram muitos milhares na virada do século 19 para o 20.
Com a decolagem esfuziante dos Estados Unidos nos primeiros ¾ do século passado, depois de derrotado o nacional socialismo, o conceito de democracia foi universalmente adotado, ao menos como sonho. Até as ditaduras do internacional socialismo precisavam vender-se como “democracias excessivas” e incluir no seu figurino institucional elementos que ao menos se parecessem com instituições democráticas.
O jornalismo e sua ”freguesia” resistiram bravamente apesar do persistente mutirão do jornalixo desde Walter Duranty, progressivamente subsidiado pelo trabalho da “intelligentsia orgânica”, que se foi tornando hegemônica nas universidades e nas artes na medida em que ia desaparecendo a memória viva das duas Guerras Mundiais.
Para “justificar” o massacre de cada década – o da China, o de Cuba, os da Europa do Leste, os do Sudeste Asiático, o da Coréia do Norte e da China de Xi Jinping – usou-se primeiro os termos de Gramsci. Mas admitir que onde está bem plantada ela só pode ser destruída por dentro, a partir de uma deliberação da maioria contra si mesmo, e que só uma trapaça pode produzir esse efeito, o resumo da tese do teórico comunista italiano e a definição da essência do jornalixo, homenageia a superioridade moral da democracia que seus inimigos sempre lhe negaram ao longo do século 20.

Depois da internet a luta contra a democracia “burguesa” se foi paulatinamente transformando, de uma disputa entre verdades concorrentes, na destruição do próprio conceito de verdade, o que inclui o reconhecimento da relação indissolúvel entre democracia e verdade.
Mas essa história, como toda a História da Humanidade, pouco tem a ver com racionalidade.
A legislação que restringia o crescimento sem limites das empresas proprietárias de rádios, TVs e jornais nos Estados Unidos foi reforçada em 1975, a data que marca o apogeu da democracia.3, pela Federal Communications Comission, uma agência criada nos anos 1930 não para se preocupar com conteúdos, mas para regular o uso das concessões de frequências de rádio e, mais tarde, também de TV.
Sempre sob ataque e roídas aqui e ali, as regras da FCC de 75 sofrerão o primeiro golpe fatal sob os eflúvios da “bolha” da internet e da ignorância dos legisladores sobre a nova tecnologia e suas implicações, com o Telecomunications Act de Bill Clinton de 1996.

Sob a pressão dos produtos a preço vil do trabalho quase escravo e do roubo de propriedade intelectual dos sobreviventes do socialismo convertidos ao “capitalismo de estado” inundando seus mercados e matando empregos, os legisladores americanos, na mais absoluta dúvida sobre o que fazer, inverteram o ônus da prova contra a acumulação de poder na mídia. O parágrafo 202 determinava que o FCC revisse suas regras a cada dois anos “modificando as que não conseguisse demonstrar serem de interesse público”.
A “razzia” resultante começou pelo setor de rádios. Entre 1996 e 2002 operações de fusão e incorporação envolveram mais de 10 mil emissoras. Ao fim daquele ano, apenas três grandes cadeias já controlavam 80% dos ouvintes e do mercado publicitário.
Sob o silêncio da mídia diretamente interessada no processo, cada nova fusão aprovada na Justiça criava um precedente em favor de regras “mais realistas” para um mundo onde a opção era “crescer ou morrer” para opor monopólios aos monopólios chineses. “A multiplicação dos sites de informação”, diziam, “compensa de longe a quantidade de rádios, jornais e TVs fechados ou fundidos”. Ficava debaixo do tapete o “pormenor” de que esses sites, como até hoje, não produzem nem apuram informação, apenas reproduzem e debatem as que a imprensa profissional levanta ou qualquer aventureiro inventa.

Na “era Bush” o FCC deixa cair a máscara. Cumprindo um prazo legal convoca, em plena mobilização do país para a Guerra no Iraque, uma votação de seus cinco membros em 2 de junho de 2003 e derruba o embargo à propriedade cruzada de jornais e TVs, extende para 45% o limite de audiência das grandes redes, altera as exigências para a propriedade de múltiplos canais e tipos de TV. E tudo se passa sob exemplar “patrulha do silêncio” conforme medido pelo Project for Excelence in Journalism. As três grandes redes de TV mencionam o assunto pela primeira vez apenas na véspera da votação.
Em 1983 quando escreveu um livro sobre o encolhimento da imprensa independente nos EUA, Ben Bagdikian, reitor da Berkley Graduate School of Journalism, mostrou que os americanos se informavam, naquele momento, com base em notícias produzidas por 50 empresas diferentes. Em 2004, na 7a revisão do livro, sobravam só seis conglomerados gigantes, com faturamento de bilhões, que não eram nem empresas de informação nem empresas de entretenimento. Possuiam TVs, jornais, rádios e editoras; produtoras e distribuidoras de filmes; gravadoras e distribuidoras de musica assim como empresas promotoras de shows; times esportivos e estádios onde se dão os campeonatos que só elas transmitem, e assim por diante…

A crise do modelo de negócio das empresas jornalísticas completou a aniquilação da cultura do jornalismo democrático que se vinha apurando no processo orgânico descrito nesta série entre os praticantes dessa arte e seu público não redutível a manuais de melhores práticas de gestão corporativa. O poder e as prioridades, nessas empresas, passaram das mãos das áreas de jornalismo – de quem se esperava o comportamento de um fiscal do poder público orientado por um sentido fundamentalmente ético – para as áreas administrativas – de quem se exige o comportamento de agentes implacáveis da expansão da riqueza de um grupo de acionistas. E como é impossível, mesmo para jornalistas experimentados, controlar à distância uma redação que lida com uma realidade nova a cada fato e tem de processá-los em questão de horas, para um administrador de empresas, que dessa história toda contada até aqui não sabe nem uma linha e, em geral, tem raiva de quem sabe, isso é absolutamente impossível.
E como é nelas que se decide o jogo do poder nas democracias, mesmo as melhores redações do planeta, com raríssimas exceções, tornaram-se totalmente imunodeficientes ao assédio do jornalixo.

Jornalixo x jornalismo: a eterna batalha – 2
3 de fevereiro de 2022 § 9 Comentários


No capítulo anterior fomos da “Guerra das Gazettes” (Thomas Jefferson x Alexander Hamilton) à primeira grande remissão por conta de Joseph Pulitzer e Sam McClure, duas das “sequências genéticas” que vão compor para todo o sempre o DNA do jornalismo e do jornalixo, os dois canais – da vertente sã e da vertente doente – da disputa pelo poder nas democracias.
Vale, no entanto, recuar um passo antes de seguir adiante, para identificar claramente o “gen recessivo” que faz do jornalismo, antes de tudo, para o bem e para o mal, um parteiro de reformas.
Mais de mil e quinhentos anos se tinham passado, rios de lágrimas e de sangue tinham corrido quando a invenção de Gutemberg finalmente permitiu que Lutero desmascarasse o esquema de poder que, apoiado na censura e no controle estrito da informação, se tinha estruturado por cima da Igreja e transformado a mensagem de Cristo num instrumento de terror. O primeiro ramal do tronco bi-partido da semente que ele plantou medraria na Inglaterra com a “Revolução Gloriosa” de 1688 que dá ao Parlamento, eleito pelo povo, o lugar que era do rei. O segundo fincaria raízes na América do Norte.

A imprensa americana nasceu antes da democracia americana. Os Estados Unidos eram apenas um conglomerado de 13 colônias independentes com características genéticas bastante diferentes entre si até que Alexander Hamilton, James Madison e John Jay as convencessem a se unir numa federação apoiada numa Constituição democrática com a publicação de uma série de 85 artigos entre outubro de 1787 e agosto de 1788 no The Independent Journal de Nova York.
Foi a imprensa, portanto, o veículo dos Federalist Papers mediante os quais discutiu-se à exaustão e estabeleceu-se para sempre a receita do primeiro sistema político inteiramente baseado no debate de ideias e no livre consentimento de seus aderentes. Hamilton, autor da maioria dos artigos, escreveu-os dois por semana em intervalos de três dias, sob a pressão dos acontecimentos, enquanto rolava a Convenção de Filadélfia e, portanto, num ritmo essencialmente jornalístico. Mas então ainda não estava em cena a disputa de poder com data marcada que a democracia institui, e que é a mãe do jornalixo…

Feito o parêntese, voltamos a McClure e Pulitzer e à exitosa operação de ressuscitação da jovem democracia americana defeituosa promovida pelo jornalismo deles. Afastado da luta pela cegueira prematura, Pulitzer reserva uma parte de sua fortuna para perpetuar o jornalismo de qualidade em cujas mãos acreditava estar o futuro da democracia. Morre em 1911 e em 1912 é lançada a pedra fundamental da Columbia University Graduate School of Journalism. Só em 1927 dá-se a primeira distribuição do Prêmio Pulitzer em 21 categorias encomendado por ele e até hoje tido como o mais importante da profissão.
Mas “o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. É Walter Duranty, editor e correspondente do NYTimes na Moscou de Joseph Stalin, um dos primeiros e mais festejados ganhadores do Pulitzer (1932), quem vai se tornar o grande paradigma histórico da volta triunfal do jornalixo ao primeiro plano.
A semente do mal, que viera prosperando desde a “Guerra das Gazettes”, é a constatação de que, se o jornalixo não comanda os fatos, ele pode comandar a reação da massa dos eleitores aos fatos. É ele que instiga e alimenta a indignação que se levanta ou a anestesia que se instala na opinião pública. Lênin nunca negou a que veio e como veio. Só o poder lhe interessava. O terror elevado ao estado da arte era, declaradamente, o seu instrumento de ação. Quanto mais sagrado fosse o valor universal violentado e mais gratuita e injustificada a violência praticada contra ele, maior e “mais eficiente” seria o efeito do terror provocado e mais perto estaria a conquista do poder. E diante da indignação que essa violência inevitavelmente provocaria, dizia Vladimir Ilitch com todas as letras, “acuse o atacado daquilo que você é; ponha nele a culpa pelo que você faz”.

Foi o jornalixo protegido pela marca do NYTimes, e não Lênin, que transformou essa receita sinistra na “salvação moral” da humanidade. Corrompido por Stalin, que “fez-lhe o nome” dando-lhe entrevistas exclusivas em momentos cruciais (e certamente não apenas isso), Duranty transformou-se no protótipo do Fausto, “dono” incontestável do assunto mais quente do jornalismo de seu tempo, e foi cortejado e festejado no mundo inteiro por isso.
Segundo ele, “tudo era cor-de-rosa na revolução russa”. “Ia às mil maravilhas a Nova Política Econômica” (NEP). “Moscou era uma festa”. “Stalin era amado pelo povo”…
Mas nenhum jornalista estrangeiro, senão ele, podia sair da capital. Até que em 1934 Gareth Jones, viajando incógnito, registra o horror da fome na Ucrânia. Stalin estava resolvendo dois problemas matando de fome, pelo confisco de toda comida existente, a população que resistira à sua revolução (e até hoje ainda não se livrou da Russia), e escondendo da população de Moscou, inundada com essa mesma comida, a debacle da economia soviética.

Aproximadamente 4 milhões de ucranianos foram deliberada e sistematicamente assassinados pela fome para sustentar a mentira socialista. Foram os primeiros de uma vasta montanha de cadáveres…
Expulso da Russia, também Gareth Jones foi assassinado um ano depois, aos 29 anos, quando fazia uma reportagem na Mongólia. Jurado de morte, os “guias” que contratara estavam a soldo da polícia política soviética…
O NYTimes, diante do escândalo da publicação das matérias de Jones no Ocidente, tirou Duranty de Moscou mas logo o devolveu para lá. Foi ele quem “cobriu”, com as lentes cor-de-rosa de sempre, os famosos “processos-farsa” (1936-38), sempre justificando-os, com que Stalin assassinou todos os seus companheiros revolucionários.
Duranty morreu em paz em 1957 na Florida, aos 73 anos, e seu Prêmio Pulitzer, apesar de repetidos movimentos para que fosse revogado, nunca o foi, nem o NYTimes, em resposta a “investigações” sobre seu desempenho exigidas a partir dos anos 90 (pós queda do muro), “descobriu” qualquer coisa de muito grave sobre ele e todas as mentiras que escreveu e dormem em seus arquivos.

O socialismo real nunca pretendeu ser diferente do modelo que Lênin lhe conferiu. Da versão maoista dos anos 50-60, passando pelas “repúblicas democráticas” da Cortina de Ferro, pela cubana dos paredón, pela vietnamita dos boat people, pela cambodjana que matou 1/4 de população do país, pela coreana dos Kim até chegar à ciber-ditadura de Xi Jinping, todas impõem-se pela violência e pelo terror; todas afirmam sem meias palavras que o poder totalitário do partido único, extensão do chefe único, está acima de tudo e de todos, sob pena de morte. Foi sempre o modelo de jornalixo relançado pelo até hoje premiado Walter Duranty e refinado ao estado da arte por Antonio Gramsci, que fez dele o que nunca foi, ensejando que continuasse matando como mata até hoje “em nome do bem da humanidade”.
Agora mesmo, em plena fervura planetária da patacoada das fake news nascida e criada pelo jornalixo, um docudrama muito bem feito – na Polônia, jamais em Hollywood, é claro – contando essa história está ofertado na Netflix. Mas vem sob o título genérico “À sombra de Stalin”, um “filme sobre questões sociais”, e escondido sob a legenda que se lê abaixo que não menciona o NYTimes, o nome do seu tristemente famoso agente stalinista ou a palpitante questão das fake news.
Ou seja, quase 100 anos depois dos acontecimentos, o jornalixo é uma instituição cada vez mais firme, mais forte e, como se verá no capítulo de amanhã, mais generalizada!

Jornalixo x jornalismo: a eterna batalha – 1
2 de fevereiro de 2022 § 16 Comentários

Não é exatamente de glórias a história da imprensa na democracia.
Está longe de ser exata a afirmação de que o homem é um animal racional. A razão particulariza e isola e, antes de ser racional a nossa espécie é gregária. O terror atávico do bicho homem é o da solidão. Na esmagadora maioria dos casos adota esta ou aquela postura diante dos fatos não porque, ele com sua consciência, se tenha resolvido por ela, mas para ter a aprovação da tribo à qual quer continuar pertencendo. E para provar que pertence, a História confirma, não ha limite: troca Jesus por Barrabás , prega o seu salvador numa cruz, adere ao linchamento do irmão, denuncia o próprio pai ao carrasco e, com tanta determinação que, ao longo das eras, com sinistra regularidade, se tem despenhado atras de “líderes” nos mais negros precipícios, como aquelas manadas africanas.
O jornalixo põe-se em campo com a primeira disputa de poder da democracia moderna. Precede o jornalismo instituição em quase 100 anos. É tão mais presente e dominante no cenário da comédia humana quanto a mentira sobre a verdade. A intriga, as falsas acusações, os linchamentos morais, os assassinatos de personagem, a disseminação do terror … o apelo à emoção com o propósito deliberado de expulsar das disputas de poder a razão e os fatos, sempre foram a sua linguagem.


A constituição americana é o resultado do milagre histórico da momentânea superação do ego. O poder não estava em causa. George Washington era o líder inconteste destinado a ser o primeiro presidente. A inspiração do gênio de Alexander Hamilton, de extrair da jovem confraria dos “fundadores” os compromissos do segredo e do anonimato sobre as discussões que seriam travadas na sala da Convenção Constitucional da Filadélfia – tudo que de lá saísse seria apresentado como obra de todos, sem revelar jamais o teor das dissensões havidas – permitiu a criação do primeiro regime político da História deliberadamente produzido pela razão com o propósito específico de dar a cada ser humano o direito inalienável de “buscar a felicidade” como melhor lhe aprouvesse, e não como resultado indireto das vaidades, do sangue derramado e dos ódios gerados na luta pelo poder numa revolução.
Mas a guerra das Gazettes, na imediata sequência, que o Alexander Hamilton, de Ron Chernow, reconstitui em todas as suas sórdidas e atualíssimas minúcias, é o retorno triunfante da força da natureza…
Hamilton, que cometera o imperdoável pecado de ser o preferido de George Washington (que fez dele o artífice das primeiras instituições da nova república) usava a intermitente Gazette of the United States, espécie de precursor do Diário Oficial, para explicar suas ações ao público. Do ciúme que isso provocava em Thomas Jefferson, levando James Madison de arrasto, todos ministros do mesmo governo, nasceu The National Gazette, tocada pelo venenoso mercenário da pena Philip Freneau que o autor da Declaração de Independência fora buscar na França para, com a mão que escrevia o que ele ditava, destruir – nem mais, nem menos que destruir – o personagem que, lá nos seus medos, aparecia-lhe como uma ameaça ao sonho de ser presidente.


E haja lixo!
Nenhum grau de ignomínia foi banido do arsenal. A campanha foi sistemática e corrosiva. Falava em conspiração com a Inglaterra para a volta da monarquia, insinuava corrupção de que nunca houve o mais tênue sinal, invadia intimidades, intrigava esposas contra maridos. Um “depoimento” de uma amante fortuita que, em conluio com seu rufião, chantageava Hamilton, foi o tiro mais baixo. E como sempre acontece, o factóide vira fato. Ganha vida própria.
Hamilton resiste à “fritura” até que sente-se na obrigação de responder aos ataques. Tenta faze-lo num tom superior mas, encurralado, acaba descendo àquele mesmo em que vinham os ataques sucessivos. Instala-se um rio de fel em que ele vai aos poucos se afundando. E no fim, deixa-se matar num duelo/suicídio, desencantado com o regime que ajudara a criar, o mais genial e autenticamente self made dos iniciadores da terceira jornada da democracia na Terra.
O jornalismo demoraria quase 100 anos (e cinco milhões de mortos depois numa guerra civil) para mostrar a cara. Viria como remédio para salvar de si mesma uma democracia que nascera defeituosa. Joseph Pulitzer (1847-1911), reza a lenda, teria chegado a nado aos Estados Unidos. Mal falava inglês quando se atirou do navio que o trouxe da Hungria para alistar-se como mercenário no exército da União na Guerra Civil. Emprega-se, depois da guerra, no St. Louis Dispatch e, mais adiante, como correspondente em Washington do New York Sun. Torna-se dono do jornal de St. Louis e já é uma figura de destaque quando casa-se com uma mulher da elite social da cidade. Aos 36 compra o New York World e o relança como The World, que faz decolar dos 15 mil para mais de 600 mil exemplares, a maior tiragem de seu tempo.


Como Steve Jobs, mais tarde, é o primeiro a entender que “a apresentação é tudo”. É ele que inventa o jornal de títulos e manchetes garrafais. E é também o primeiro que põe seu time na rua, fazendo reportagens sobre a vida dos imigrantes, a violência policial e a corrupção que os explorava. Não sei em que momento a consciência da função institucional do seu métier se sobrepõe ao talento do empreendedor. São necessárias as duas pernas para dar cada passo. Pulitzer ensaia e erra. Descamba frequentemente para o sensacionalismo na concorrência com William Randolph Hearst que copia parte de sua receita. Cria páginas de esporte, seções para mulheres, espaço para humor, aborda crimes e desastres. Inventa o jornalismo de serviço…
Mas faz também o que ninguém ainda tinha feito na página de opinião. E em muito alto nível. Não é mais a tribuna de um dos “lados” da luta pelo poder. Proclama-se um defensor dos sem-voz; abraça decididamente a causa da democracia. É o primeiro a ver o jornalismo como um serviço público e um parteiro de reformas. Embarca totalmente na luta pelas bandeiras da Progressive Era. “Poder para o povo“; a virada antitruste; recall, referendo e iniciativa como ferramentas para quebrar a resistência do establishment…
É ele quem cria o modelo do jornalismo democrático. Aos 43 anos, cego, abandona as redações. E vaticina: “Nossa república e sua imprensa vão florescer ou decair juntas … Uma imprensa cínica, demagógica e mercenária vai produzir, com o tempo, um povo igual a ela. O poder de determinar o futuro de nossa república estará nas mãos dos jornalistas das gerações futuras”.

Ele e Sam McClure, seu contemporâneo, fundador da revista McClure’s e “inventor” do jornalismo investigativo, de grandes reportagens apuradas em profundidade e com força para desafiar com a arma da verdade robber barons do calibre de John Rockefeller, dos donos das ferrovias, de J. P. Morgan e o mais que, em conluio com as máquinas partidárias corruptas, vinha estrangulando a democracia com o garrote dos monopólios, compõem as duas frentes do jornalismo moderno e dão a pauta moral dos Estados Unidos de seu tempo.
McClure, mais um curador, que um inventor, não tinha o tino empresarial de Pulitzer. Mas era um gênio para encontrar talentos e formar equipes. Todos os melhores escritores de seu tempo dos dois lados do Atlântico – Mark Twain, Conan Doyle, Rudyard Kipling, Robert Louis Stevenson, Bram Stocker, J. Fenimore Cooper e tantos outros – lançaram-se pelas páginas da McClure’s. E seus repórteres muckrakers (“revolvedores da merda”) como Ida Tarbel, Ray Stannard Baker, Lincoln Steffens e outros, trabalhando frequentemente afinados com o presidente reformista Theodore Roosevelt, fizeram os Estados Unidos da gilded age tremer nas bases.
Os dois elevam o jornalismo a instituição da Republica. Mostram ao país, entre outros feitos, os remédios da democracia direta suíça que resgataram a democracia americana e lançaram os Estados Unidos modernos.
Mas desde o nascimento, essa faca tem dois gumes. E o primeiro é o que corta mais fundo, como se verá no capítulo de amanhã.

Você precisa fazer login para comentar.