Tocqueville e a invasão da Ucrânia
10 de março de 2022 § 4 Comentários

Alexis de Tocqueville foi o primeiro e o mais fino dos analistas da psicologia das instituições. Ele não se limitou a descrever as americanas, inéditas no mundo e com apenas 44 anos de existência na altura daquele 1830 em que perambulou nove meses pelo país tomando notas, e a destacar a diferença formal entre elas e as que o mundo das monarquias absolutistas e dos governos aristocráticos da Europa conheciam. A marca do seu gênio está na perspicácia com que aferiu e projetou para o futuro o que as instituições de cada lado, com seu específico desenho, fariam as pessoas fazer.
Agora, passados quase 200 anos, tudo confirma com espantosa precisão as suas projeções, tanto quanto à evolução daquele que identificou como o maior defeito do novo sistema de governo que Winston Churchill definiria um século mais tarde como “o pior do mundo, excluídos todos os outros” quanto, na reação do mundo à invasão da Ucrânia, na prescrição do remédio que apontou para corrigi-lo.
O Capítulo VII de De la démocratie en Amérique trata Da onipotência da maioria. E inclui um subtítulo para Do poder que a maioria exerce sobre o pensamento na América.

Seguem trechos que traduzo do original:
“As repúblicas democráticas desmaterializam o despotismo (…) O pensamento é um poder invisível e incontrolável que dribla todas as tiranias. Os reis mais poderosos da Europa não podem impedir que pensamentos hostis à sua autoridade circulem pelo Estado afora e mesmo dentro da corte. Na América não é assim: enquanto a maioria mesmo estiver em dúvida pode-se falar a vontade; mas depois que ela se decide, todo mundo se cala. Amigos e inimigos passam a repetir o que ela diz. A razão disso é simples: não ha monarca absolutista, por mais poderoso que seja, que possa ter em suas mãos todos os poderes da sociedade e vencer todas as resistências como pode fazer uma maioria investida do poder de fazer e de executar as leis”.
“Um rei não tem senão o poder material de agir sobre as ações. Ele não consegue atuar sobre as vontades. Já as maiorias estão investidas de uma força que é ao mesmo tempo material e moral, que atua tanto sobre as ações quanto sobre as vontades e é capaz de reprimir ao mesmo tempo o que é feito e a vontade de fazer”.

(…) “Os príncipes, por assim dizer, materializaram a violência; as repúblicas democráticas constrangem intelectualmente as vontades que elas querem submeter. Sob o governo de um só, o déspota, para chegar à alma, tinha de torturar o corpo. Mas a alma, livre desses golpes, podia desprender-se e elevar-se. Dentro das repúblicas democráticas não é assim que a tirania atua: ela deixa de lado o corpo e visa diretamente a alma. O tirano não diz mais ‘pense como eu ou morra’. Hoje ele diz: ‘Você esta livre para pensar diferente de mim. Não tocarei nos seus bens nem na sua vida por isso. Mas a partir desse momento você passa a ser um estranho entre nós. Você continua sendo um cidadão mas seus direitos não lhe garantem mais nada pois, se você não acata as escolhas dos seus concidadãos, cada um deles lhe negará os seus (ainda que permaneçam escritos). Você continuará vagando entre os homens mas perderá o seu direito à humanidade. Se tentar aproximar-se dos seus semelhantes eles fugirão de você como de um ser impuro. Até os que acreditam na sua inocência te abandonarão para não serem banidos também. Vá em paz, eu lhe concedo a vida, mas uma vida pior que a morte’”.
(…)
(Instalada a ditadura da maioria) “nenhum escritor, por mais renomado que seja, pode escapar à obrigação de bajular seus concidadãos. E num ambiente assim, a maioria vive numa permanente adoração de si mesma. Somente os estrangeiros podem fazer certas verdades chegarem aos ouvidos dos americanos”.

Sim, na ditadura do “politicamente correto” destes tempos de “cancelamentos” da boca do Terceiro Milênio, a maioria (ao menos a dos com voz) vive o auge da “onipotência numérica” que a internet lhe conferiu e Nelson Rodrigues, depois de Tocqueville, anteviu. E, o que é pior, como notou esse outro fino intérprete da alma humana e brasileira, a maior das maiorias é a dos idiotas…
É dessa forma menos barulhenta de opressão inescapável e onipresente que vêm, já se vê, aqueles assassinatos em massa seguidos de suicídios com que ela é rompida esporadicamente pelos enlouquecidos pela exclusão na grande democracia americana, e nós aqui do mundo das aristocracias simplesmente não conseguimos compreender porque, como notou Tocqueville agudamente, somos “livres para desprezar a lei sem desprezar o legislador” já que, entre nós, ao contrário da América, é nele e não nela que reside O Poder. Não têm nada a ver, essas explosões, com a quantidade de armas em circulação, como quer essa gente que a tudo responde que a culpa é “dos outros” e trata de excluir-se daquilo que nós todos somos. É dessa “inescapabilidade” da exclusão, também, que provêm esses extremos das ideologias de gênero e raça que nós, libertinos e miscigenados, incorporamos nestes tempos de cabeças ôcas e livre importação de ideias que vivemos.

Mantenha-se todo mundo preso que os problemas da liberdade desaparecem, é como responde a tudo esse tipo de gente (ainda mais porque é sempre possível conseguir um pouco de liberdade só para si mancomunando-se com o rei ou com o legislador ilegítimo). Tocqueville não desistiu tão fácil. Para ele, sobrevivente de uma família dizimada pelo terror da revolução francesa, estava tão claro quanto está hoje para a Europa sobrevivente do terror soviético que a liberdade individual é a maior conquista da raça em todos os milênios da nossa história de servidão, e só pode realizar-se no regime de igualdade política. É no subtítulo Tirania da maioria que Tocqueville dá a pista que Thoreau seguiria mais adiante. Sim, o homem é o lobo do homem também em matilha, mas “existe uma lei geral que foi adotada não só pela maioria deste ou daquele povo, mas pela maioria de todos os homens: a lei da Justiça … Uma nação é como um júri encarregado de representar a sociedade universal e apoiar a Justiça que é sua lei … Quando, portanto, eu me recuso a obedecer uma lei injusta eu não estou negando à maioria o direito de mandar, eu estou apenas apelando da soberania do povo para a soberania da humanidade”.
A reação planetária à invasão da Ucrânia nestes tempos em que não são mais os governos que mandam no mundo, está aí para demonstrar que a mesma ferramenta que universalizou o pior defeito da democracia – na verdade, a impossibilidade de automatizar a superação daquilo que essencialmente somos de pior como espécie – universalizou também a maior das nossas virtudes, que é essa capacidade inata de formular o conceito de Justiça e reagir às suas violações.
No momento só falta o povo russo aderir para que o vaticínio de Tocqueville se torne precisamente exato.

O mundo de ontem “já era”…
8 de março de 2022 § 11 Comentários

Nem volta ao passado, como pretendia Putin, nem “freio de arrumação” como sugere o ditado. Tudo se parece mais com o violento chacoalhão para frente de uma súbita arrancada da integração da humanidade para um outro patamar de velocidade.
“O modo como cada nação se vê e é vista pelos outros”, disse um observador inglês, “é que é a matéria prima da evolução, um processo lento e gradual onde as camadas se vão assentando uma a uma. Mas a guerra de Putin mudou coisas muito profundas em pouco mais de uma semana”. Yuval Harari vai na mesma direção. “Essa guerra tem o potencial de acabar com a guerra cultural. A humanidade se deu conta, de repente, de que liberdade, autodeterminação ou não, é a única escolha real”.
Depois de anos contemplando e lambendo a própria “decadência”, o Ocidente redescobriu coisas como orgulho e razão de ser. Depois de décadas esmiuçando seus próprios fracassos ele foi posto, de repente, frente a frente com a alternativa concreta para o seu modelo de liberdade e democracia.

A determinação da Ucrânia não é a de quem tem dúvidas filosóficas a respeito de teorias conflitantes, é a de quem experimentou na carne viva uma coisa e a outra e prefere morrer lutando a voltar ao passado soviético. Volodymyr Zelensky levanta-se formidável, inspirando seu povo contra Putin e suas bombas atômicas, armado tão somente de uma atitude moral num mundo amoral. Um herói numa era de anti-heróis.
A humanidade estava com saudades disso!
E então foi como um tsunami. Nem uma união de interesses mesquinhos focados na luta pelo dinheiro, nem uma quase ocupação estrangeira resultando na perda de um pouco de soberania por cada um. A União Européia voltou a ser, num átimo, o esforço comum de povos envolvidos em duas guerras monstruosas no espaço de 30 anos, para compartilhar sua soberania em vez de seguir matando por ela. Uma iniciativa com foco na segurança e na paz. Em menos de 10 dias a NATO deixou de ser um anacronismo da guerra fria para voltar, incontestavelmente, a ser o recurso inventado para defender-se de agressões que sempre foi desde que foi criada e continuou sendo enquanto existiu.

Quem está fora da unanimidade planetária que a resistência da Ucrânia cristalizou?
Nem a “esquerda”, nem a “direita” civilizadas que, cada vez mais, distanciam-se por milímetros. A anti-humanidade. A anti-democracia, tão somente. A convicta e a disfarçada. As mentiras todas transformaram-se em pó. O que têm os BRICS em comum senão a ausência de democracia? É por isso, aliás, que são só BRICS e não países ricos. Apesar de terem tudo o mais que se requer para sê-lo – extensão territorial, recursos naturais, tamanho de mercado – são imunodeficientes à corrupção sistêmica e à subjugação de suas populações por privilegiaturas, para as quais democracia é o único remédio conhecido.
A Russia sempre foi o campeão dessa modalidade. Um monopólio férreo de poder e riqueza no topo da pirâmide cercado de miséria por todos os lados. Isso nunca mudou, nem sob os czares brancos, nem sob os czares vermelhos, nem sob o czar marrom.

Muito antes do que seria de se esperar, uma imprensa ocidental que ia numa perigosa ordem unida de volta à justificação da censura, mãe de todas as ditaduras e de todos os horrores, viu esse mesmo discurso surgir na boca do celerado Putin antes que tivéssemos de esperar, em ritmo de evolução, a lenta mudança da maré do poder que invariavelmente confirma, ao longo da História, que essa classe de feitiço volta-se SEMPRE contra o feiticeiro.
O fato veio para confirmar o quanto isso é velho. A fantasia que o Ocidente criou em trono dos czares vermelhos é do Ocidente só. O povo russo nunca a viveu. Exorcizado e devidamente punido e banido o nazismo, nenhuma voz se ergueu contra esta nova Alemanha que envia armas aos ucranianos e dobra o seu orçamento militar para defender-se – e à toda a Europa – do agressor que só pôde continuar sonhando livremente com seu império perdido porque o totalitarismo comunista continua valendo-se de uma chancela moral que nunca mereceu. Porque ainda ha, dentro e fora da Russia, quem considere os stalins heróis e possa cultuá-los impunemente. Porque ainda há, na periferia do Ocidente, quem acredite com alguma razão de ser, que pode eleger-se com esse discurso.

Raça, gênero, polícias do pensamento, a irrefreada ditadura da maioria que Tocqueville previu, e mesmo esse esforço todo para manter a covid mais viva do que está… Quanto disso, quanto da famigerada “guerra cultural” não é filha do tédio? A humanidade é mesmo capaz de viver na plenitude, sem uma ameaça imediata e palpável contra a continuação da sua aventura na Terra que lhe tome o tempo que adora gastar fabricando fantasmas? Estariam as Américas longe demais para aprender a lição que a Europa aprendeu?
Ha sinais controvertidos vindos da Ucrânia. Quem está contendo a violência toda de que Putin é materialmente capaz, além do heroísmo dos ucranianos? A China? Essa “humanidade civil” que, em toda parte, extrapolou os governos e materializa os boicotes e até as tomadas de posição na ONU à revelia deles? Os próprios russos?
Difícil dizer…
Mas uma coisa é certa. Este mundo de hoje não é mais o mesmo de ontem. Talvez nunca tenha sido e a Ucrânia apenas desenterrou da desinformação o que sempre esteve aí. Mas o certo é que, verdadeiro ou falso, aquele de ontem nós nunca mais voltaremos a ser.

Terão os “millenials”encontrado o seu limite?
28 de fevereiro de 2022 § 9 Comentários

É carnaval, o momento em que a alienação brasileira alcança a temperatura máxima, é verdade. Mas há sinais auspiciosos de que a trombada desse Ocidente urbano amoral e dissoluto das Américas, virgem de ocupações estrangeiras e cevado na frivolidade, com uma realidade do mundo até então desconhecida porque vinha-lhe sendo sistematicamente sonegada, não vai passar em brancas nuvens.
A cobertura da guerra está amarrada principalmente à aferição passo a passo da reação do mundo à agressão de Putin. Ela é muito mais decisiva para o resultado da aventura em que se meteu o ditador russo que aquilo que se passa no teatro das operações.
O brasileiro que pensava que o mundo era o que lhe entrega a mídia cabocla foi arrancado de repente da nauseabunda “guerra da covid”, das picuinhas tramadas nos antros da privilegiatura de Brasilia e dos delírios de gênero, raça e o resto das importações atiradas por cima do mar-sem-fim do favelão nacional sem voz por essas pequenas ilhas do Brasil vocal doente que falam pela nossa imprensa. E isso teve o efeito de uma janela subitamente aberta num quarto escuro onde o ar andava irrespirável.

A blitzkrieg de Putin é parecida demais com a de Hitler para não despertar no mundo que de fato existe uma torrente de memórias terríveis. Emanuel Macron deve ter despertado alagado em suor algumas vezes nas semanas que a Rússia passou rosnando para a Ucrânia, vendo-se entrar para a história como o novo Pétain. A França, como ha muito não se via, age assombrada pelo fantasma de Vichy. A Inglaterra, pela lembrança de Chamberlain. A Itália pela do desastre do fascismo.
De Berlin para Leste há memória viva do que é estar sob a Stasi, a filial da KGB que o jovem Putin em pessoa montou e instruiu. E nos outros escapados da Cortina de Ferro, é disso para tanto pior que as pessoas se lembram quanto mais próximas estiverem da fronteira russa. As feridas estão abertas. Todo mundo lá sofreu perdas, passou fome e sentiu frio. Todo mundo lá foi humilhado e ofendido. Daí essa reação em uníssono, de solidariedade humana sem registro de um único tênue sinal de hesitação dos vizinhos a Oeste para com a Ucrânia. Daí a resposta dela própria de que o mundo teve a avant première na heróica revolução da Praça Maidan em 2014.
Até a China – a maior beneficiária da presente ordem mundial – absteve-se de alinhar-se a Putin no veto à condenação da invasão pelo Conselho de Segurança da ONU. A primeira oferta de negociação à Ucrânia, embora em termos que o país agredido não aceitou, deu-se depois de uma longa conversa em que Xi Jinping sugeriu a Putin a saída de oferecer à Ucrânia a condição de país neutro.

O saldo da Revolução de Maidan, sobre a qual a Netflix oferece o empolgante documentário Winter of Fire de especial interesse nestes dias, àparte a derrubada de Viktor Ianucovytch, o títere que Putin cooptara para governar a Ucrânia ao fim de 93 dias de uma resistência heróica, foi inscrever na constituição ucraniana a OBRIGAÇÃO de qualquer governo futuro de promover o ingresso do país na União Européia e na OTAN, como forma de garantir-se contra agressões como a que está acontecendo hoje, mais um dos fatos pouco sabidos neste Brasil tomado pela “censura estrutural”. Não foi a OTAN que avançou em direção à fronteira russa como insistem em afirmar com Putin os autoritários e os antidemocráticos de todas as colorações do Brasil, foram os fugidos do socialismo real que “invadiram” a OTAN em busca de proteção contra o que foram obrigados a tragar a ferro e fogo pela Russia soviética.
Ha, portanto, uma probabilidade real até de que essa guerra acabe por precipitar a decisão da própria Rússia de aderir, finalmente, à civilização europeia como boa parte dela sempre sonhou fazer mas nunca pôde. Ou um movimento interno contra Putin porá um fim a ela, ou Putin mergulhará definitivamente na barbárie, arriscando levar-nos todos juntos à breca, se não se chegar à solução intermediária com que a China sugere que ele salve a face.
Com tudo isso foi murchando no ar a louvação do “grande enxadrista da geopolítica” que ia ensinar àquelas democracias decadentes que não têm o poder de lançar uma guerra contra uma população indefesa só porque seus líderes, que para tudo têm de pedir licença ao povo, acordaram um dia de mau humor. Diante dos atos de gallantry dos ucranianos e da recepção que seus luminosos brios tiveram em toda parte, ela foi sendo substituída por solidariedade e colocando, de edição em edição, num progressivo mal estar aquelas “análises” do jornalismo contaminado apontando para uma rendição sem luta num mundo que se ia conformando com a abjeção e a covardia como a irrevogável definição da humanidade.

No Brasil o primeiro efeito imediato desse fenômeno foi o reposicionamento da falsa fronteira direita x esquerda para a verdadeira democráticos x autoritários (e antidemocráticos) de direita e de esquerda. Bolsonaro e os “antibolsonaristas” acordaram no colo uns dos outros falando exatamente a mesma língua. Os apenas autoritários passaram, então, a tartamudear desculpas até travestirem-se em “anti-Putins desde criancinha”. E os antidemocráticos de cada “lado” se foram escondendo num mutismo cúmplice. Todos têm em comum o seu horror à idéia do povo mandando na “zelites”.
Ainda que não haja caso de reversão desses processos de decadência históricos sem que suas consequências cheguem a arder na pele, cabe lembrar que considerada a humanidade como um todo elas ja arderam na pele de muito mais gente do que não. E mesmo nas sociedades mais decadentes porque menos atingidas das Américas e dessa Europa que vai no arrasto da maior delas, temos assistido a fenômenos endógenos de “invasões de bárbaros”.
Seria possível, de repente, que esse tipo de “invasão” se tornasse suficiente nessa nova realidade em que as guerras totais – e com elas as invasões estrangeiras – implicam o fim do mundo? Se um pequeno choque de realidade bastou para rebaixar Vladimir Putin de novo ”líder genial dos povos” para o assassino covarde que ele realmente é, porque coisa semelhante não poderia fazer o mesmo pelo Brasil com os 3 patetas do TSE e seu criador?

O outro lado do “outro lado”
18 de abril de 2015 § 73 Comentários
Artigo para O Estado de S. Paulo de 18/4/2015
O PT apoia sua estratégia de controle hegemônico do Brasil na reafirmação sistemática de mentiras essencialmente porque isso funciona. É uma técnica especialmente desenvolvida, testada e aprovada. O dano colateral do uso dessa arma é virtualmente irreversível, mas o poder é sexy o bastante para contar sempre com quem esteja disposto a matar e morrer por ele.
Na quarta-feira, 15, este jornal publicou extensa reportagem do Guardian sobre o assunto no mínimo angustiante.
Hoje todo mundo já nasce com os recursos de manipulação de imagens nas mãos e vive a maior parte da vida em mundos virtuais, de modo que a primeira coisa de que estamos treinados a desconfiar é daquilo que nossos olhos vêm. Mas não foi sempre assim. A humanidade custou a recuperar-se do advento do registro cinematográfico. A edição de imagens destruiu a última barreira sólida que havia entre o nosso equipamento cognitivo e a realidade exterior. “Eu vi com meus próprios olhos” já foi o argumento que encerrava qualquer controvérsia. Hoje não existem mais certezas. Tudo pode ser nada.
Os totalitarismos e os genocídios do século 20 não teriam sido possíveis sem as falsas emoções e “realidades” que era possível plantar como reais antes que a humanidade aprendesse a redefinir o valor do que seus olhos viam e seus ouvidos ouviam.
Na ponta contrária, desenvolver essas técnicas em ciências transformou-se numa credencial obrigatória de acesso ao poder e num imperativo de sobrevivência para os Estados nacionais. Enquanto os dois lados tinham objetivos diferentes a atingir, tratava-se de antecipar as reações do adversário algumas jogadas adiante e induzi-lo a erro ou a reações previsíveis por meio de informações falsas.
Mas os tempos ingênuos da “desinformação” ficaram para trás. Agora, na era do poder para nada; na era do poder pelo poder, não se trata mais de convencer, ainda que pela mentira. O que conta é conquistar e manter o poder, seja como for, não “para isto” ou “para aquilo” mas apenas para tê-lo, apenas para desfrutá-lo.
O Guardian descreve, então, como o celerado Putin, ex-KGB e agora czar de todas as Rússias, retomou a obra de onde a tinham deixado os soviéticos para adaptá-la à nova realidade das armas tão destrutivas que não podem mais ser usadas, em que as tiranias se impõem e se mantêm como se tudo não passasse de uma disputa entre advogados desonestos que se confrontam nos fóruns e tribunais internacionais, na qual o objetivo é manter-se sempre nas intersecções da regra e “destruir a ideia mesmo de prova” capaz de caracterizar uma determinada ação como estando em conflito com alguma delas, num universo em que nada é moralmente superior a nada, não ha mais fatos, só versões, e onde a realidade “pode ser constantemente recriada”.
Como é que se faz isso?
A “Pequena Enciclopédia e Guia de Referências sobre Operações de Informação e Guerra Psicológica”, compilada a partir do momento, em 1999, em que o marechal Igor Sergeev, então ministro da Defesa, admitiu que a Rússia não tinha mais condição de competir militarmente com o Ocidente e era preciso partir para “métodos alternativos” para levar as guerras para a “psicosfera” onde as armas são outras, explica didaticamente o caminho.
“Trata-se menos de métodos de persuasão e mais de influenciar as relações sociais … de desenvolver uma álgebra da consciência … As armas de informação funcionam como uma radiação invisível que atua contra alvos que sequer ficam sabendo que estão sendo atingidos e, assim, não acionam seus mecanismos de autodefesa”.
Aproveitando o momento vulnerável da imprensa americana que, no nível historicamente mais baixo de sua credibilidade por ter embarcado na mentira das armas químicas de Saddan Hussein sem checar suficientemente fontes alternativas, tentava redimir-se obrigando-se a dar um “outro lado” a toda e qualquer história que publicasse, Putin sentiu que estava na mão a oportunidade de levar a sua “guerra da psicosfera” para um patamar mais elevado.
Criou então a RT, uma espécie de BBC russa de televisão transmitida para diversos países, a começar pelos próprios Estados Unidos, chefiada por Margarita Simonyan, cujo mantra é “Não existem reportagens objetivas. E se elas não existem, todas as versões são igualmente verdadeiras”. Na velocidade da internet (Putin também paga um exército de blogueiros para inundar a rede de “provas” e “versões” do seu interesse para todo e qualquer fato que surge na imprensa mundial, de modo a tornar impossível apurá-los e desmenti-los a todos), os russos passam a testar a fidelidade dos jornalistas americanos à nova regra. “Especialistas” são convocados a todo momento às bancadas da RT para dar versões estapafúrdias de todo e qualquer acontecimento, que os jornalistas nunca desafiam, apenas reproduzem sob o onipresente título/álibi: “O outro lado”. Assim nascem histórias bizarras que chegam a correr mundo como a de que o Ebola foi criado pela CIA para destruir populações de países pobres; a derrubada do avião da Malaysian Airlines pelos invasores russos da Ucrânia foi um erro dos americanos que pensavam estar atacando o jato particular de Putin, e por aí afora.
Um mercado tinha sido criado. Bastava aos russos atender a demanda por “outros lados”. “Se a objetividade é mesmo impossível e todas as versões, por mais bizarras que sejam, merecem ser apresentadas numa base de igualdade, então nenhum órgão de imprensa é mais confiável que os outros”, é a conclusão dos auxiliares de Putin.
O projeto evolui, assim, para “uma espécie de sabotagem linguística da infraestrutura da razão: se a mera possibilidade de uma argumentação racional for soterrada num nevoeiro de incertezas, não ha mais espaço para o debate e o público acabará desistindo de saber quem tem razão”, efeito que, notam os estatísticos, “já é mensurável na Europa onde as pesquisas registram um nítido desgaste da identidade coletiva e uma sensação geral de perda de controle”.
Qualquer semelhança com o Brasil do PT não é mera coincidência.
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