Onde resiste a democracia americana

22 de setembro de 2020 § 15 Comentários

Têm sempre um grau de consistência maior que a média as análises de Luis Sergio Henriques na página de artigos de O Estado de S. Paulo. Domingo ele falava da relevância que terá fora das fronteiras americanas – especialmente no Brasil de Bolsonaro, “a cópia” – a eleição presidencial de novembro em que Donald Trump – “o original” – disputa a reeleição.

Ainda que assinalando a diferença entre os americanos, “indivíduos livres e acostumados à participação na vida pública” e nós “ibéricos tendentes à arquitetura social barroca, perdido o indivíduo numa totalidade que não domina e frequentemente o esmaga”, vê os sistemas políticos das duas grandes nações desafiados por um problema análogo, com “o abrasileiramento dos EUA e a americanização do Brasil” empurrando ambos para “a morte das democracias”.

Vai bem Luís Henrique quando aponta no “America First” de Trump a síntese da retirada dos EUA das instâncias multilaterais, a começar pela ONU, que não é tanto uma renúncia ao universalismo dos valores liberais trazidos ao mundo pela revolução americana, é mais “a explicitação da incapacidade de direção dos processos globais”. O isolacionismo do qual os Estados Unidos foram arrancados a duras penas no século 20 para defender a Europa de ameaças totalitárias de que eles mesmos sempre estiveram livres – o nazismo e o socialismo – foi sempre uma marca constitutiva do excepcionalismo daquele país.

Até quando registra que esse “déficit de hegemonia” está presente também internamente, com Trump, que rejeita de forma demagogicamente reacionária um processo de globalização que sabe irreversível ao “governar só para os seus” e apontar nas oposições cultural e política inimigos internos que ameaçam o “excepcionalismo” e o “destino manifesto” americanos, Luís Henrique vai bem.

Mas trai o seu próprio “barroquismo” ao deixar subentendido que essa participação na vida pública que existe lá e não existe aqui limita-se a um “costume” e não responde, como de fato responde, aos níveis radicalmente opostos de “empoderamento” (detesto a palavra mas para o caso não há melhor) que as instituições deles concretamente proporcionam e as nossas concretamente negam a sua majestade o povo.

Lá, com recall, iniciativa e referendo, o povo realmente manda no governo e por isso participa. Aqui o governo manda no povo e todas as instâncias de representação são falsas, e portanto o povo não perde tempo fingindo que participa. Não é uma diferença vagamente “cultural”, tudo decorre de uma diferença prática e concretíssima de mecanismos institucionais que onde quer que são instalados, produzem o mesmo efeito na disposição do povo de participar.

Vai sem dizer que, onde e quando pode, o povo “participa” no sentido de favorecer o seu interesse o que invariavelmente significa libertar-se da exploração dos parasitas da privilegiatura com resultados explosivos.

O Brasil tem dos EUA exclusivamente a visão que pinta deles o “gueto cultural” do antigo “Condado de York”. Mas Nova York é o pedaço menos americano e menos democrático da democracia americana, obcecada com a figura de sua majestade o presidente, igualmente a menos representativa de tudo que a revolução americana tem de mais revolucionário.

A União, à qual os estados resistiram até o último minuto na história da formação do país, é a coisa menos americana da democracia americana. A Constituição deles é, na verdade, uma negação da União, que ela reconhece como um mal necessário para manter a inserção do “Novo Mundo” no “Velho” mas que, por isso mesmo, cerca por todos os lados de profiláticos checks and balances. 

A União é, na verdade, tudo que a democracia americana tem de parecido com o resto do mundo. Mas o que a define e distingue de todo o resto é o que está daí para baixo. A democracia que se pratica nos estados e nos municípios, de cujas populações diretamente nascem os “ballot measures” (tudo que eles decidem, tendo a necessidade por única medida, que vai ser decidido no voto), esta sim é totalmente “excepcional” e, quase sempre, desconhecida para o resto do mundo porque é um perigo mortal para os poderes estabelecidos que “patrulham” ferozmente o assunto.

É esta que é indestrutível. São nesses Estados (e cidades) Unidos que o povo está de fato no poder. E, como todo mundo que um dia “comeu melado”, jamais abrirá mão dele.

A lei é a arma com que se assalta a Nação

24 de setembro de 2019 § 13 Comentários

A deformação do federalismo brasileiro, demonstrou dias atrás nesta página o ex-ministro Jose Serra, não está, como geralmente se pensa, na distribuição do dinheiro da arrecadação. “Em média, a participação de estados e municípios é de 30,9% nos países federados situados em nossa faixa de renda e de 49,5% entre os mais ricos (…)  no Brasil eles se apropriam de 56,4% mas vivem uma crônica hipossuficiência financeira e administrativa”. “Essa descentralização é consequência direta do pacto federativo decorrente da Constituição de 88 que definiu a autonomia como regra”, diz o ex-ministro, que sugere que é nessa autonomia, somada à incompetência dos gestores estaduais e municipais que está o problema, o que remete à “solução” de sempre que seria aumentar a centralização. 

Falso! O problema essencial do Brasil é que a autonomia que a Constituição definiu como regra é a dos representantes, que deveriam ser fiscalizados, em relação aos representados, que deveriam ter plenos poderes para fiscaliza-los tanto mais de perto quanto mais se vai descendo na hierarquia dos entes de governo (união, estados, municípios, distritos eleitorais) sob pena de perda imediata do mandato dos faltosos. Então sim haveria ganhos, e enormes, em pulverizar a distribuição do dinheiro dos impostos. 

Mas blindados os funcionários e representantes eleitos contra qualquer interferência dos seus representados, pulverizar a distribuição do dinheiro entre quase seis mil prefeituras, governos estaduais e respectivos legislativos é apenas e tão somente multiplicar exponencialmente o numero de ralos por onde se irá esvair sem nenhum controle o dinheiro publico.

Todas as desgraças brasileiras têm como causa fundamental esse desenraizamento do País Oficial da única fonte de legitimação do poder numa democracia. Invocar a constituição para encerrar controvérsias em países onde ela é o contrato para impor limites a quem detém o poder pactuado entre iguais e referendado por todos quantos concordaram em ceder parte de sua autonomia individual para fundar o Estado resultante desse contrato, faz todo sentido. 

Mas invocar uma constituição que é produto exclusivo das deliberações de uma casta para reafirmar seus poderes e privilégios e recriar a sociedade feudal, aquela cuja legitimidade dependia exclusivamente do peso do passado, pelo expediente de reduzir esse “passado” a um par de segundos mediante a decretação da intocabilidade do “direito adquirido” apenas por ter sido “adquirido” e a partir do minuto seguinte a que tiver sido “adquirido” é tão somente um ato de força extremo para calar a denúncia dessa falsificação e impor pela força a opressão aos oprimidos.

Fala-se muito hoje na “polarização do debate político” mas a verdade é que não ha debate sobre as questões essenciais no Brasil. Um entendimento mínimo sobre uma agenda comum só pode surgir em torno da definição da regra do jogo, nunca em torno do resultado desejado para o jogo. As constituições dignas do nome são as que limitam-se a definir como operar mudanças e não de onde para onde mudar nem, muito menos ainda, quem vai ganhar e quem vai perder sempre o jogo a cada nova mudança que houver que é estritamente o que faz a nossa “Constituição dos Miseráveis”.

O analista que parte da premissa de que o Brasil é uma democracia condena fatalmente ao erro todas as conclusões subsequentes. Não é! Nunca foi! E a Constituição de 88 é precisamente o documento que consagra esse não ser acima de todos os outros, ao sacramentar a deformação da representação do País Real no País Oficial feita para dar sobrevida à ditadura militar, institucionalizar a desigualdade perante a lei e “petrificar” o privilégio.

O “Brasil vocal”, que inclui da política à imprensa, divide-se hoje, com as raríssimas exceções que confirmam a regra, entre a bandidocracia que assume a autoria de toda e qualquer ignomínia e os caronas da bandidocracia que, por sua vez, dividem-se entre os com vergonha e os sem vergonha do papel a que se têm prestado; entre os que apenas murmuram diante das ignomínias contra as quais suas consciências lhes pedem que gritem, e os que nem a isso chegam. 

Contam-se nos dedos os que vão à raiz do problema. A verdade nua e crua é que dispensada da obrigatoriedade de legitimação pelo povo a cada nova alteração significativa, como é imperativo que aconteça nas democracias, a lei no Brasil está reduzida à condição de arma com que a privilegiatura assalta a Nação. O paroxismo da subversão. A tentativa do momento, aliás, é de criar mais uma para determinar, entre outras aberrações, que se alguma das “excelências” for flagrada roubando-nos também por fora da lei, os roubados é que passarão a pagar pela defesa do ladrão. 

Com que amplitude a Nação vem sendo assaltada com o recurso a leis sem nenhum resquício de legitimidade é algo de que nos presta contas eloquentes o orçamento federal: do 1 trilhão e 480 bilhões de reais que a União nos arranca todo ano em impostos sobram apenas 19 bi para investir no Brasil. Todo o resto vai para pagar os salários, as aposentadorias e as mordomias da opulenta corte do funcionalismo federal que conta pouco mais de dois milhões de indivíduos e os caronas da privilegiatura que ela coopta para não ser incomodada.

É impossível que o Brasil funcione orientado para a justiça enquanto o problema da ilegitimidade das nossas leis não for encarado de frente. A solução passa obrigatoriamente pela arrumação da questão da representação. É preciso criar, primeiro, um modelo de eleição que permita saber exatamente “quem representa quem” (voto distrital puro) e, em seguida, determinar com que instrumentos devem contar os representados para fazer respeitar sua vontade pelos seus representantes (recall, referendo, inciativa, controle das carreiras jurídicas). Só então teremos entrado no território da democracia no interior do qual aloja-se o território da justiça. Não dá para chegar ao segundo sem passar pelo primeiro.

A falta que a política faz

16 de abril de 2019 § 20 Comentários

Artigo para O Estado de S. Paulo de 16/9/2019

Além das seguidas capitulações espontâneas do presidente o que mais tem comprometido a reforma da previdência é a “embriaguez da onipotência numérica” vivida pela família Bolsonaro. Trata-se de uma confusão que decorre do encantamento com a contagem de numeros absolutos revelados pelo súbito destampar de panelas ha muito forçadamente lacradas operado pelo aprendizado no uso das redes sociais, que tem levado a trágicos erros de avaliação política pelo mundo afora, da Primavera Árabe em diante.

Depois do salto proporcionado pela ânsia do Brasil de livrar-se da venezuelização que elegeu Bolsonaro, as pesquisas indicam uma volta da opinião pública ao leito da normalidade. Cada vez mais as manifestações de radicalismo só repercutem no gueto da direita incondicional que não precisa ser conquistada pois já é e nunca deixará de ser dele assim como os 30% da esquerda incondicional foram do PT e são hoje dos seus sucedâneos. Para tudo mais elas só prejudicam. Como chegar a 308 deputados (partindo dos atuais 190) mais 49 senadores que a reforma requer carimbando qualquer conversa com eles como “prova” de corrupção?

A próxima parada, diz Paulo Guedes, é o Novo Pacto Federativo que reservará 70% do dinheiro dos impostos para estados e municípios e 30% para a União. A distribuição do dinheiro dos impostos em consonância com a quantidade de assistidos por cada ente de governo, entretanto, é produto, onde ocorre, de um arranjo político revolucionário e não o contrário. Na repartição do que quer que seja a parte do leão fica com quem detem o poder. É uma lei da natureza. Logo, para inverter a distribuição do dinheiro é preciso antes por o povo no poder.

O federalismo foi o arranjo institucional que deu consequência prática a essa inversão. A fórmula que criou governos dentro de governos, cada um deles soberano na sua esfera de atuacão mas dividido em tres poderes encarregados de filtrar as decisões uns dos outros foi, pela primeira vez na história da humanidade, uma teoria criada para ser posta imediatamente em prática estritamente dentro da característica pragmática da cultura anglo-saxônica. Não para “criar uma nova humanidade”, à latina, mas para resolver um problema específico: como montar um esquema funcional para transferir o poder do monarca absolutista humano para o conjunto da população, também humana, e evitar o retorno à condição anterior de opressão, agora por uma maioria. Esse o ponto a que chegou a Democracia 3.0, modelo século 18, que nós nunca alcançamos. E não foi suficiente. Ele teve de evoluir, no século 20, para a Democracia 4.0 que pos o indivíduo reinando soberano sobre todas as outras soberanias ao reforçar dramaticamente os poderes dos eleitores antes e depois do momento das eleições, com os direitos de cassar mandatos a qualquer momento, dar a última palavra sobre as leis que se dispõem a obedecer e submeter até os juizes, periodicamente, à confirmação do seu beneplácito.  Por o carro adiante dos bois com um eleitorado inteiramente desarmado e legalmente proibido de defender-se contra a violência legislativa e regulatória dos donos do poder (como nos querem até em relação à própria vida os radicais desarmamentistas) só levará a uma multiplicação desastrosa dos focos de corrupção.

A maior dificuldade para arrumar o Brasil não está no confronto entre visões divergentes, está em formular uma visão divergente de fato, coisa que não poderá ser aprendida na práxis política corrente que, pela direita e pela esquerda, vive da distribuição de pequenos privilégios. Vai requerer um longo mergulho no estudo da teoria política, assunto hoje anatemizado como sintoma de propensão à corrupção, e da história da evolucão da democracia pois em todos os países os problemas foram os mesmos que enfrentamos e muitos conseguiram supera-los. Não é preciso reinventar a roda. A questão é como fazer isso num país que socializou o pequeno privilégio numa extensão inédita no mundo e onde todos amam o seu, cujas escolas ou estão destruidas, ou estão censuradas pelo aparelhamento ideológico, o que nos leva ao outro grande foco de ruidos dos primeiros 100 dias do governo Bolsonaro.

Nas democracias de DNA saxônico vigora um princípio que explica a resiliência delas e tem tudo a ver com federalismo. O controle da educação deve ficar o mais longe possivel de quem já tem o controle da força armada, explicitamente como elemento básico de prevenção contra a sede insaciável de mais poder que todo poder tem.

De fato não faz nenhum sentido, senão como instrumento de perpetuação no poder, que num país continental cheio de itaócas e de megalópoles plantadas em realidades culturais, geográficas e de vocação econômica radicalmente diversas umas das outras, um único órgão centralizado, como o MEC, imponha o mesmo currículo e os mesmos métodos pedagógicos para todo mundo em todos os níveis de educação. Por isso, naquelas democracias, o controle das escolas públicas não fica sequer na mão do poder municipal, fica a cargo da menor unidade do sistema, os conselhos (school boards) eleitos por cada bairro entre os pais dos alunos que frequentarão aquela escola. Com sete membros com mandatos de quatro anos desencontrados, metade eleita a cada dois anos, são esses boards que contratam os diretores de cada escola pública e aprovam (ou não) os seus orçamentos e os seus programas pedagógicos.

Um conjunto de “distritos escolares”, o primeiro elo do sistema de eleições distritais puras, único que cria uma identificação perfeita entre os representantes eleitos e cada um dos seus representados permitindo o controle direto legítimo e seguro de uns sobre os outros, constituirá um distrito eleitoral municipal. Uma soma destes fará um distrito estadual, um conjunto dos quais dará um dos distritos federais que elegerão os deputados do Congresso Nacional.

A política, o patinho feio de todo o drama brasileiro, não pode, portanto, ser o último fator a ser considerado. Se for para curar o país, terá de ser o primeiro.

Não foi por acaso que a ditadura de Getulio Vargas começou com a queima cerimonial, ao estilo nazi, das bandeiras dos estados brasileiros.

Rever a história para retomar o caminho

15 de junho de 2018 § 5 Comentários

Artigo para O Estado de S. Paulo de 12/6/2018

2013 é um marco ambíguo. Entrou para a história como o do “despertar do gigante adormecido” … mas de um despertar para o seu próprio vazio. Já lá vão mais de cinco anos e seguimos perdidos no espaço, incapazes de um discurso articulado; de distinguir causas de efeitos e aliados de inimigos; sabendo, vagamente, balbuciar os nossos “não” mas sem repertório que nos permita esboçar um único “sim” digno de ser abraçado como projeto para a nação. Somos o país que morre de fome por não saber pedir; que não consegue ler o menu das soluções institucionais modernas, arrastado que foi de volta para o limbo pré-republicano mediante o aparelhamento dos meios de difusão de cultura e informação e o aniquilamento das nossas universidades (as ultimas das Américas) como centros de pesquisa pura e busca do conhecimento. O país em cujas escolas cultua-se só o que fracassou, instila-se o ódio ao merecimento e proíbe-se mostrar, do mundo que deu certo, senão o que ele tem de pior.

Não é de hoje. A primeira faculdade chegou aos EUA com os colonos ingleses. E a América Hispânica já tinha 23 em funcionamento quando o Brasil fundou a sua primeira – de medicina porque a corte transplantada em 1808 precisava de médicos. Até então tudo que havia aqui era um colégio de teologia, instituição voltada, portanto, para a negação em nome do dogma e não para a busca do conhecimento.

No país onde a metrópole proibira desde sempre a produção e a importação de papel (e mais recentemente a entrada da informática) a primeira impressora chegou com 358 anos de atraso em relação à invenção de Gutenberg. Mas junto com a “Impressão Régia” (a única admitida) desembarcaram os censores.

Posto numa balança o Brasil e na outra o reino, ha de pesar com grande excesso para mais aquela primeira que esta última; e assim, a maior e mais rica parte não sofrerá ser dominada pela menor”, argumentava um alto funcionário do rei para justificar tão rígido cerco à informação e ao conhecimento. Não se alterou fundamentalmente a situação com a mudança da metrópole colonialista de Lisboa para Brasília. É a ignorância semeada pela censura das soluções que o mundo moderno dá aos problemas que nos afligem, mais que tudo, que garante a nossa permanência no estágio pré-republicano em que nos arrastamos.

A democracia moderna, essencialmente, é um arranjo de sobrevivência pactuado por comunidades isoladas em territórios hostis. Longe do rei e de qualquer socorro de fora elas tiveram, por si mesmas, de fazer e cobrar suas leis, decidir e executar suas decisões e prover sua própria segurança. Foi isso o “Pacto do Mayflower”. Foi isso, com quase um século de adiantamento em relação à versão saxônica, o arranjo das Câmaras Municipais das vilas portuguesas no Brasil. Isoladas umas das outras e do resto do mundo, havia nos seus governos um grau de soberania popular que nem a metrópole nem ninguém antes jamais vivera. Por mais de três séculos, de três em três anos, nossa gente organizou eleições, deu posse a governos, seguiu-lhes as determinações e os governantes entregaram seus cargos aos novos eleitos sem uma única quebra.

Nenhum outro povo na terra teve tão longa vivência de democracia. E até Tiradentes estivemos ao par da ponta mais moderna do pensamento político da época. O Brasil real organizou-se e construiu-se por si mesmo à margem do Brasil oficial, à margem do governo central instalado na praia e voltado para a metrópole antes e depois de 1808. Na informalidade, regido pelo costume, pela lei não escrita e financiado pelo “fiado”.

Só 15% da economia nacional, ao longo de todos os séculos do Brasil colônia, hoje sabe-se graças à econometria aplicada à historiografia a partir de 1970, era contabilizada e registrada nos anais da metrópole. A economia de exportação – e só ela – vivia no figurino casa grande e senzala, o “único que existiu” segundo os nossos historiadores “marxistas”. O outro Brasil, o do mercado interno, o da pequena propriedade, o dos empreendedores que produziam, movimentavam e comercializavam bens e serviços, pesando 85% de tudo que se fazia aqui, viveu na clandestinidade e à margem da lei até o primeiro governo da “república” tomada de assalto pelos ditadores do credo “positivista” que nos assombra até hoje. Foi por mera distração deles que Rui Barbosa teve a oportunidade de baixar, a 17 de janeiro de 1890, os quatro decretos que constituíram a “lei áurea” da iniciativa privada no Brasil. “As companhias ou sociedades anônimas, seja civil ou comercial o seu objetivo, podem estabelecer-se sem autorização do governo” rezava a peça que transformava num direito do cidadão investir sua poupança pessoal num empreendimento reconhecido pela lei … só que não. Prudente de Morais, o terceiro da “republica”, foi o primeiro e talvez o único presidente brasileiro de todos os tempos que conhecia e praticou a teoria por trás dessa expressão. Desde então têm havido mais esforços para fazer regredir que para fazer avançar o Brasil que Rui e ele vislumbraram.

Não tivemos uma nobreza hereditária mas a de toga a substituiu com “vantagem” pois até ao “rei” ela submeteu. O direito brasileiro é ainda o do “direito adquirido” à diferença que sustentou o absolutismo monárquico e não o dos Iluministas e da republica sem aspas que consagra a igualdade e criminaliza o privilégio.

E, cada vez mais, é isso que nos mata.

É essa a história que se conta na História da Riqueza no Brasil, livro que consolida uma inspiradora série de trabalhos anteriores de Jorge Caldeira, o libertador da historiografia brasileira. A história é a psicanálise das sociedades, e esta que ele conduz aponta claramente um caminho: o da soberania do povo a partir da base municipal. “A maior e mais rica parte” só se libertará da opressão da outra com a despartidarização das eleições, o voto distrital puro e os direitos de retomada de mandatos (recall) e referendo de leis pervertidas no âmbito dos municípios. Só então poderemos retomar a vocação democrática de que vimos sendo desviados a força.

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Criminalidade e democracia

31 de outubro de 2017 § 10 Comentários

Em todos os tempos e todos os lugares essa gente do poder voa quando o povo lhe dá asas.

O que leva o ser humano ao crime é uma questão controvertida mas a da segurança pública é bem mais objetiva. Nós com 29,5, eles com 4,2 assassinatos por 100 mil habitantes apesar de todas aquelas armas, as idas e vindas dos Estados Unidos no tratamento desse problema podem ter algum valor didático.

Na esteira da luta pelos direitos civis nos anos 50 e 60 a Suprema Corte, refletindo a “narrativa” política dominante na época, aprovou medidas para reforçar os direitos dos condenados. Sendo o crime “consequência da má distribuição de renda” e a política penal “enviesada por preconceitos de classe e raça”, era hora do sistema voltar-se precipuamente para a reabilitação das “vítimas da sociedade”.

A nova orientação resultou num declínio acentuado da população carcerária mas a partir do meio da década as taxas de crimes violentos (inclui mais que assassinatos) começaram a subir. Foram de 200,2 por 100 mil em 1965 para 363,5 no fim da década e 487,8 por 100 mil em 1975.

O movimento pelos direitos das vítimas do crime decolou junto com o de libertação feminina que denunciava as cortes por culpar as vítimas nos crimes de estupro. Mas muito mais gente sentiu-se embarcada nessa inversão. Surgiam associações por todos os lados exigindo o fim do prende-e-solta do Judiciário. Os “Pais de Crianças Assassinadas”, as “Mães Contra a Direção Alcoolizada”, a “Organização Nacional de Assistência às Vitimas do Crime” (NOVA)…

No mesmo 1975, Robert Martinson, do New York City Colege, publicou a primeira pesquisa nacional séria de resultados de programas de reabilitação. Eram praticamente nulos. Os fatos diziam que era impossível prever racionalmente a periculosidade futura de alguém pelo seu comportamento na prisão e que a reincidência era praticamente a norma para os criminosos violentos que tinham tido penas encurtadas. Àquela altura, com todos os mecanismos de redução e de “penas alternativas” os codenados estavam cumprindo apenas 37% de suas sentenças na média nacional. O movimento focou, então, no conceito de “Veracidade das Sentenças”. Tanto para dar satisfação às vítimas quanto para desincentivar o crime, dizia-se, era necessário deter o prende-e-solta e o faz-de-conta do Judiciário e fazer com que as sentenças expressassem as penas que de fato seriam cumpridas.

Mas a execução foi mais dificil que a formulação da ideia. A discussão arrastava-se ainda quando em 1981, com Reagan presidente, os instrumentos de democracia semi-direta que andavam meio esquecidos voltaram triunfalmente à cena com a revolta nacional contra impostos iniciada pela Proposition nº 13 (dê um google que o caso é ótimo), uma lei de iniciativa popular contra um aumento abusivo do imposto sobre propriedade (IPTU) na Califórnia. Rapidamente o exemplo migrou para a área da segurança publica. Em 1982 os eleitores da Califórnia aprovaram, com a Proposition nº 8, uma “Carta dos Direitos das Vítimas do Crime”. Ela começava por afirmar oficialmente que “a prisão serve para punir os criminosos”. Alem de baixar a idade para tratar como adultos os criminosos juvenis violentos, ela estabelecia o conceito “Tres Crimes e Você está Fora” (“Three Strikes and You’re Out”) dobrando a pena para o segundo e dando prisão perpétua a quem cometesse o terceiro. Na sequência, 21 estados passaram leis populares impondo sentenças mínimas e critérios rígidos para a progressão de penas. “Comitês de sentença” independentes e instâncias de recurso contra reduções determinadas por juizes foram tentados. E a população carcerária começou a aumentar.

Com a “Epidemia do Crack”, que lá ocorreu nos anos 80, a situação tornou-se explosiva. Antigos hospitais, quarteis e depósitos foram transformados em presidios às pressas. Estados como Michigan e Iowa passaram problemas tão graves que acabaram por criar mecanismos de “progressão de pena de emergência” libertando prisioneiros escala de crimes acima toda vez que os niveis máximos de lotação dos presídios eram ultrapassados.

O movimento de refluxo teve início com a diferenciação entre traficantes e usuários e o estabelecimento de penas alternativas só para estes. Passo a passo, anos 80 afora, a nova tendência – “a segurança da sociedade vem em primeiro lugar e a conveniência do infrator deve estar subordinada a ela” – se foi firmando com as penas de reclusão aumentando para crimes violentos e as alternativas se generalizando preferencialmente para crimes contra a propriedade.

Reconhecendo que o pêndulo tinha ido longe demais na volta do excesso de leniência, os californianos, em reformas sucessivas, também acabariam por revogar definitivamente a regra dos tres crimes em 1996. Mas com as experiências acumuladas o país chegou, em 1994, ao Violent Crime Control and Law Enforcement Act , assinado por Joe Biden, que recomendava 60 reformas incorporando o conceito de “Veracidade das Sentenças”, criando restrições mais bem definidas para a progressão de penas, institucionalizando os comites de condicional para substituir a solitária discreção do juiz nessa tarefa, criando um fundo nacional para a construção de prisões e contratação de policiais, definindo crimes de ódio e dando outras providências.

As reformas nos estados e nos municípios prosseguiram, então, a partir de um novo patamar mais claro e seguro para todos pois o sentido do sistema de democracia semi-direta é imitar a condição humana de mobilidade e ajuste permanente. O que ele tem de melhor é a força para trazer de volta à Terra as autoridades que o poder sem limites põe voando na estratosfera e obrigá-las a atacar os problemas que afligem a população pela vertente que lhes for indicada por ela. O resto acontece por ensaio e erro como é adequado à nossa espécie que, para além de estar sempre mais propensa ao erro que ao acerto, vive num ambiente tão dinâmico que cada “solução” é sempre apenas o início do próximo problema.

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