A falta que a política faz
16 de abril de 2019 § 20 Comentários
Artigo para O Estado de S. Paulo de 16/9/2019
Além das seguidas capitulações espontâneas do presidente o que mais tem comprometido a reforma da previdência é a “embriaguez da onipotência numérica” vivida pela família Bolsonaro. Trata-se de uma confusão que decorre do encantamento com a contagem de numeros absolutos revelados pelo súbito destampar de panelas ha muito forçadamente lacradas operado pelo aprendizado no uso das redes sociais, que tem levado a trágicos erros de avaliação política pelo mundo afora, da Primavera Árabe em diante.
Depois do salto proporcionado pela ânsia do Brasil de livrar-se da venezuelização que elegeu Bolsonaro, as pesquisas indicam uma volta da opinião pública ao leito da normalidade. Cada vez mais as manifestações de radicalismo só repercutem no gueto da direita incondicional que não precisa ser conquistada pois já é e nunca deixará de ser dele assim como os 30% da esquerda incondicional foram do PT e são hoje dos seus sucedâneos. Para tudo mais elas só prejudicam. Como chegar a 308 deputados (partindo dos atuais 190) mais 49 senadores que a reforma requer carimbando qualquer conversa com eles como “prova” de corrupção?
A próxima parada, diz Paulo Guedes, é o Novo Pacto Federativo que reservará 70% do dinheiro dos impostos para estados e municípios e 30% para a União. A distribuição do dinheiro dos impostos em consonância com a quantidade de assistidos por cada ente de governo, entretanto, é produto, onde ocorre, de um arranjo político revolucionário e não o contrário. Na repartição do que quer que seja a parte do leão fica com quem detem o poder. É uma lei da natureza. Logo, para inverter a distribuição do dinheiro é preciso antes por o povo no poder.
O federalismo foi o arranjo institucional que deu consequência prática a essa inversão. A fórmula que criou governos dentro de governos, cada um deles soberano na sua esfera de atuacão mas dividido em tres poderes encarregados de filtrar as decisões uns dos outros foi, pela primeira vez na história da humanidade, uma teoria criada para ser posta imediatamente em prática estritamente dentro da característica pragmática da cultura anglo-saxônica. Não para “criar uma nova humanidade”, à latina, mas para resolver um problema específico: como montar um esquema funcional para transferir o poder do monarca absolutista humano para o conjunto da população, também humana, e evitar o retorno à condição anterior de opressão, agora por uma maioria. Esse o ponto a que chegou a Democracia 3.0, modelo século 18, que nós nunca alcançamos. E não foi suficiente. Ele teve de evoluir, no século 20, para a Democracia 4.0 que pos o indivíduo reinando soberano sobre todas as outras soberanias ao reforçar dramaticamente os poderes dos eleitores antes e depois do momento das eleições, com os direitos de cassar mandatos a qualquer momento, dar a última palavra sobre as leis que se dispõem a obedecer e submeter até os juizes, periodicamente, à confirmação do seu beneplácito. Por o carro adiante dos bois com um eleitorado inteiramente desarmado e legalmente proibido de defender-se contra a violência legislativa e regulatória dos donos do poder (como nos querem até em relação à própria vida os radicais desarmamentistas) só levará a uma multiplicação desastrosa dos focos de corrupção.
A maior dificuldade para arrumar o Brasil não está no confronto entre visões divergentes, está em formular uma visão divergente de fato, coisa que não poderá ser aprendida na práxis política corrente que, pela direita e pela esquerda, vive da distribuição de pequenos privilégios. Vai requerer um longo mergulho no estudo da teoria política, assunto hoje anatemizado como sintoma de propensão à corrupção, e da história da evolucão da democracia pois em todos os países os problemas foram os mesmos que enfrentamos e muitos conseguiram supera-los. Não é preciso reinventar a roda. A questão é como fazer isso num país que socializou o pequeno privilégio numa extensão inédita no mundo e onde todos amam o seu, cujas escolas ou estão destruidas, ou estão censuradas pelo aparelhamento ideológico, o que nos leva ao outro grande foco de ruidos dos primeiros 100 dias do governo Bolsonaro.
Nas democracias de DNA saxônico vigora um princípio que explica a resiliência delas e tem tudo a ver com federalismo. O controle da educação deve ficar o mais longe possivel de quem já tem o controle da força armada, explicitamente como elemento básico de prevenção contra a sede insaciável de mais poder que todo poder tem.
De fato não faz nenhum sentido, senão como instrumento de perpetuação no poder, que num país continental cheio de itaócas e de megalópoles plantadas em realidades culturais, geográficas e de vocação econômica radicalmente diversas umas das outras, um único órgão centralizado, como o MEC, imponha o mesmo currículo e os mesmos métodos pedagógicos para todo mundo em todos os níveis de educação. Por isso, naquelas democracias, o controle das escolas públicas não fica sequer na mão do poder municipal, fica a cargo da menor unidade do sistema, os conselhos (school boards) eleitos por cada bairro entre os pais dos alunos que frequentarão aquela escola. Com sete membros com mandatos de quatro anos desencontrados, metade eleita a cada dois anos, são esses boards que contratam os diretores de cada escola pública e aprovam (ou não) os seus orçamentos e os seus programas pedagógicos.
Um conjunto de “distritos escolares”, o primeiro elo do sistema de eleições distritais puras, único que cria uma identificação perfeita entre os representantes eleitos e cada um dos seus representados permitindo o controle direto legítimo e seguro de uns sobre os outros, constituirá um distrito eleitoral municipal. Uma soma destes fará um distrito estadual, um conjunto dos quais dará um dos distritos federais que elegerão os deputados do Congresso Nacional.
A política, o patinho feio de todo o drama brasileiro, não pode, portanto, ser o último fator a ser considerado. Se for para curar o país, terá de ser o primeiro.
Não foi por acaso que a ditadura de Getulio Vargas começou com a queima cerimonial, ao estilo nazi, das bandeiras dos estados brasileiros.
O psicanalista psicopata
16 de outubro de 2013 § 2 Comentários
Li ontem o 11º capítulo do 2º volume do “Getúlio”, de Lira Neto, história que conheço por vivos relatos na primeira pessoa já que é parte constitutiva da saga de minha própria família.
Tudo, nessa experiência, dos fatos propriamente ditos que vão da louca tentativa de golpe comunista em 1935 – a chamada “Intentona” – à oficialização e ao violento recrudescimento da ditadura de Getúlio Vargas para a qual ela serviu de pretexto, até o modo como eles são reconstituídos por Lira Neto, que também não consegue ocultar suas próprias baldas, passou-me a impressão de déja vu; reforçou a penosa sensação de desperdício que sempre é, nesta solidão dos ilustrados num país que não lê, revisitar a História do Brasil.
São tantas as semelhanças entre os erros que se repetem em 1930 (o surgimento de Getúlio Vargas), 1935 (a “Intentona Comunista”), 1937 (início do período negro da ditadura Vargas), 1964 (o contragolpe que abortou a “republica sindicalista” janguista), 1968 (a “luta armada” respondida pelo AI-5 e a repressão dos anos 70), 1992 (Collor), 2003 (o início da “Era PT”), tanto da parte da esquerda “revolucionária” internacionalista quanto dos idealistas da democracia liberal em seu desespero comum contra a iniquidade social e a corrupção de que nunca conseguimos nos livrar, que dá pena vê-los outra vez à beira de serem reeditados, ainda que como farsa.
As duas pontas autênticas dessas elites se alternam regularmente, de geração em geração, do protagonismo nas tentativas de mudar o rumo deste país ao pau-de-arara e ao exílio, traídas sempre, uma vez instalado um dos lados no poder, pelo núcleo duro da corrupção que espera sentado a poeira baixar para se alinhar ora a um lado ora ao outro até fazê-lo cair de podre, tenha o ultimo episódio sido iniciado pela ação de uns ou pela reação dos outros às iniciativas de um dos dois.
Eles nunca conseguem muito mais que alçar da periferia para o centro, nos momentos de desespero, o “tertius” que parece limpo porque ainda não teve a oportunidade de se sujar e encarnará a próxima safra de violências políticas, institucionais e morais porque o país terá de passar. Isto quando escapamos das colheitas também de violências físicas…
A “revolução”- seja a feita com a intenção de empurrar, seja a feita para resistir aos empurrões – não faz mais que manter em suspenso o processo histórico ao qual se terá de retornar fatalmente mais adiante. E retornar do ponto de partida, o que redunda em atraso num mundo em que atrasar-se é erro cada vez mais impiedosamente punido.
Não ha como aprender democracia senão praticando-a ininterruptamente por tempo suficiente para experimentar alhos e bugalhos e constatar – física e palpavelmente – que não ha senão gente neste nosso vale de lágrimas, sendo a ausência de santos e de diferenças essenciais entre os não santos – e portanto a alternância em si mesmo – a única resposta razoável ao desafio do poder. E como a acumulação de tais experiências normalmente toma mais tempo do que o que vive um homem, a História é a chave da charada. Só depois de assegurar o domínio dela é que se pode caminhar para adiante.
A História é a psicanálise das sociedades. Assim como um indivíduo só pode assumir o controle do seu destino e escolher caminhos novos depois de entender como e porque veio a ser aquilo em que se transformou, assim as sociedades.
Muito mais que as tecnologias do futuro, é na reconstituição fidedigna do passado que está o valor mais importante da educação. E ninguém sabia melhor disso que Antonio Granmsci, o grande guru da esquerda brasileira.
A tática, desde sempre desonesta, foi inventada quando ainda havia um alegado objetivo moral a justificar o emprego dela. Hoje não há. Foi apropriada por cleptocracias cujo único objetivo é empanturrar-se de poder, sem distinguir as duas formas que ele assume: a da prepotência e a do dinheiro.
A esta altura, aparelhar as escolas e os demais meios de difusão da cultura para falsificar deliberadamente a História como tem feito sistematicamente o PT antes e depois de chegar ao poder, é igualar-se ao analista psicopata que se aproveita da fragilidade e da desorientação do seu cliente para induzi-lo ao suicídio.
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