A chave da democracia americana
26 de fevereiro de 2019 § 18 Comentários
Artigo para O Estado de S. Paulo de 26/2/2019
A chave para o entendimento do sistema institucional americano é a distinção que eles fazem entre “direito negativo” e “direito positivo”.
“Direito negativo” é o de não ser submetido à ação coercitiva de outra pessoa ou do governo. Eles o têm por um direito natural, também dito de 1a geração. Nasce com e pertence a todas as pessoas, e está garantido enquanto ninguém agir para violá-lo. A common law, o direito baseado na tradição que foi comum a toda a Europa mas só sobreviveu na Inglaterra depois do advento do absolutismo monárquico que o nosso “direito romano” foi inventado para perenizar, fixa os círculos do espaço individual que as pessoas naturalmente sabem que não devem invadir: o do corpo, o do lar, o dos pertences, o da propriedade. Essa é a base do “direito negativo”. E desses círculos decorrem os seus desdobramentos civis e políticos, ditos de 2a geração, os direitos à vida, à liberdade de expressão, à liberdade religiosa, à legítima defesa, ao habeas corpus, a um julgamento justo, etc.
Já os “direitos positivos”, ditos de 3a geração, são os que requerem a ação de uma terceira pessoa para serem exercidos por quem vai desfrutá-los. Enquanto um “direito negativo” proíbe alguém ou o governo de agir contra o seu beneficiário, um “direito positivo” obriga outras pessoas ou o governo a agirem em benefício do seu detentor. Incluem-se nesse departamento os direitos sociais e culturais tais como à comida, à habitação, à educação, a um emprego, à saude, à seguridade social, ao acesso à internet ou o que mais se quiser incluir na lista que, no Brasil, por exemplo, é infindável.Lá a constituição da União, elaborada pelos “pais fundadores” iluministas, contempla exclusivamente os “direitos negativos” o que, na medida em que ela subordina todas as outras leis, estabelece a prevalência destes sobre os “direitos positivos”. Diz, no preâmbulo, que todo poder emana do povo que o delega aos seus representantes eleitos por sufrágio universal e define nos seus sete artigos, pela ordem, o congresso dos representantes do povo, a presidência, o judiciário, as relações entre os estados e deles com a União e as regras para emendar a constituição. As emendas da 1a à 8a garantem os já citados direitos de 2a geração que decorrem dos círculos de inviolabilidade do indivíduo. E a 9a e a 10a (para encerrar a disputa de egos entre os convencionais de 1787 que queriam cada um enfiar um direito a mais) declaram que tudo que não está formalmente proibido até ali “são direitos que pertencem ao povo ou aos estados”. Todos os temas da alçada do “direito positivo” que recheiam de ponta a ponta a nossa constituição federal lá ficam, portanto, restritos às constituições estaduais e municipais.
E aí vem o pulo do gato.
Como todo “direito positivo” (artificialmente criado) implica uma violação do “direito negativo” (inato, natural) de não ser coagido a nada nem ter o que é seu apropriado pelos outros, eles só podem ser criados, nos países de common law, por contrato, isto é, se todas as partes envolvidas concordarem com isso numa votação. E como cada “direito positivo” tem um custo o projeto que o propõe tem de incluir obrigatoriamente o seu esquema de financiamento: qual será a despesa, quem arcará com ela, como e quando ela será paga.Ou seja, não existe a hipótese de se fazer caridade com dinheiro alheio. Quem se dispuser a tanto deve usar o seu próprio.
Correndo em paralelo com a diferenciação entre “direito negativo” e “direito positivo” está o princípio do federalismo, a mais forte garantia em países de dimensão continental e ampla diversidade de situações de que o sistema estará sempre voltado para servir o indivíduo e jamais poderá acumular poder suficiente para voltar-se contra ele. Cada instância de governo – a municipal, a estadual e a federal – é definida em função do seu grau de proximidade do indivíduo e deve ser absolutamente soberana até o limite do alcance dele. Tudo que diz respeito a uma única comunidade – a escolha do seu modelo de governo, policiamento local, saneamento, vias publicas, educação, saude, proteção contra incêndios, normas de comércio, etc. – deve ser decidido e custeado por ela própria e mais ninguém, respeitadas as linhas básicas da constituição. Só aquilo que envolver mais de uma comunidade – estradas, transporte intermunicipal, circulação de bens, repressão ao crime, sistema penal, etc. – deve ficar a cargo dos governos estaduais. E somente o que não pode ser resolvido por um único governo estadual fica a cargo da União.Acrescenta-se finalmente à fórmula um sistema preciso de representação dos eleitores em cada uma dessas instâncias de governo, o que se consegue com eleições distritais puras em que cada distrito elege apenas um representante. Tudo começa pela eleição do conselho que vai dirigir cada escola publica entre os moradores de cada bairro do país. E daí vai subindo para os municípios, para os estados, para a União. Sempre com cada representante, com base no endereço, sabendo exatamente quem é cada um dos seus eleitores. Sempre com cada representado guardando o poder de manter ou não o seu representante até o fim do mandato (recall ou retomada de mandatos), de obriga-lo a tratar dos assuntos que ele indicar (leis de iniciativa popular), de impedi-lo de impor-lhe o que quer que seja (referendo das leis vindas de cima), de afastar juizes lenientes ou enviesados (com eleições periódicas de retenção ou substituição de juízes).
Com essas liberdade e flexibilidade, aos poucos o sistema foi evoluindo segundo a necessidade e a preferência de cada comunidade. O bairro vota – sim ou não – um melhoramento da escola a ser pago com um aumento temporário só do seu IPTU, a cidade, a contratação de mais policiais ou a construção de um novo hospital mediante um aumento temporário da taxa local de comércio, o estado uma nova estrada a ser paga pelos seus usuários mediante pedagio…
E fez-se a luz … sempre na medida e no preço exatamente desejados.
Ética para o juiz, o vídeo
30 de novembro de 2015 § 10 Comentários
A conferência já tem dois anos mas continua atual. Como só encontrei o vídeo no Youtube ontem, resolvi reproduzi-lo aqui também.
Abaixo a revolução!
18 de novembro de 2014 § 29 Comentários
Vejo o tom subindo no debate nacional, o que se reflete também aqui, entre os comentaristas habituais dos textos do Vespeiro. E vejo-o com reações ambíguas. Por um lado, anima ver o fim da passividade que ajudou a nos trazer até às beiradas em que andamos agora; por outro, inquieta pensar que isso possa levar o país a cair outra vez na velha tentação latina de “cortar caminho”. É difícil, mesmo, contemplar o caminho do meio no contexto de instituições tão espúrias quanto travadas em que vivemos. Mas acredito firmemente que não existe outro.
Nos comentários à matéria anterior, discuti com a leitora Varlice os limites da imagem que usei da guilhotina. Em seguida fui aos arquivos do Vespeiro para remete-la a um texto mais completo sobre a idéia de revolução (que sei que ela não abraça pessoalmente) publicado em janeiro deste ano. Por falta de qualquer coisa que pudesse acrescentar, além da réplica feita ao comentário dessa amiga ao texto anterior a este, achei que é oportuno repetí-lo neste momento. Aí vai:
Revendo ha pouco no celular os destaques e anotações que fiz à margem do “1889” de Laurentino Gomes (versão e-book), detenho-me em duas penduradas no manifesto de criação do primeiro Clube Republicano do Pará às vésperas do golpe que pôs fim ao Império por Lauro Sodré, um ex-estudante da Escola Militar que foi o grande centro de fermentação dos cânones positivistas de Augusto Comte que a Europa já abandonara meio século antes mas que os militares brasileiros de então (e Getulio Vargas depois deles) ainda abraçavam com fervor.
A primeira era esta:
“…é sobre as ruinas e os destroços do passado que se levantará o futuro. Progredir é continuar mas a construção tem por preliminar indispensavel a demolição…“
E a segunda, esta:
“…nas republicas a unica distinção é aquela que é oriunda do mérito e das virtudes individuais”.
Taí a principal chave que explica a diferença entre a estabilidade das repúblicas saxônicas, nascidas de parto natural, pela discussão e pelo convencimento, e a eterna turbulência das republicas latinas (da francesa para baixo) extraídas a fórceps e nunca recuperadas das lesões sofridas nesses processos dolorosos.
Como é que o “mérito” e as “virtudes individuais” poderiam se estabelecer como únicas fontes de legitimação de toda e qualquer “distinção” a partir de um regime que se impôs pela força ou pela traição?
Ser ou não ser, eis a questão!
Nas revoluções – e tanto mais quanto mais violentas tiverem sido – a força impõe-se sobre o merecimento, o que fica carimbado para sempre na consciência virgem do novo regime nascente sob a forma de um trauma indelével. O que sobra em pé, finda a tempestade, nunca são as belas idéias que põem as revoluções em marcha, é o terror que elas empregam para se impor e consolidar.
Depois que o passado está “destroçado”, como queria o nosso revolucionário – o que ocorre necessariamente, ou pela força, ou pela traição – é a facção que menos se impuser limites no uso da violência ou da felonia que ficará em posição de “levantar o futuro”.
O resultado prático desses processos naufraga, portanto, sempre na mesma contradição: é daqueles que venceram pela imoralidade que se espera a instituição do império da moralidade…
O que ha de mais curioso nesse manifesto de Lauro Sodré, entretanto, é que numa única de suas frases ele inclui a tese e a antítese de tudo que ele acaba por afirmar e esbarra, certamente sem querer, na síntese do grande divisor de águas que separa a cultura política saxônica da cultura política latina:
“Progredir é continuar, mas a construção tem por preliminar indispensável a demolição…”
A cultura política saxônica é, precisamente, a expressão da continuidade, da convivência entre as instituições do passado e as instituições do presente; a latina é o resultado das demolições sucessivas, de banho de sangue em banho de sangue.
Lá, entre eles, rola uma cabeça ou outra dos inflexíveis empedernidos, enquanto prossegue a discussão. Entre nós a regra geral é rolarem todas as que seguirem insistindo em discutir.
É este o engano trágico de todos os latinos (e não só deles), arrancados de suas raízes, apagada a memória do que foram, sem saber o que serão num mundo que recomeça sempre do zero. E é este o segredo dos povos saxônicos que nunca queimaram os navios com que vêm navegando de ilha em ilha na sua trajetória histórica sem interrupções.
Eles seguem transitando livre e naturalmente entre o presente e o passado reconhecendo com autêntica familiaridade todas as etapas desse caminho. Frequentam a mesma paisagem institucional que seus antepassados frequentaram. Vivem o que são e o que foram como estágios diferentes de uma trajetória que é de todos e de que todos conscientemente sentem-se resultantes.
São todos habitantes da mesma ilha, súditos dos mesmos reis e do mesmo Parlamento, regidos pelas mesmas leis e pelos mesmos tribunais que, cada um a seu tempo, vieram somar-se à caminhada História adiante com os que já a vinham empreendendo antes deles. Novos e velhos equipamentos institucionais convivem lado a lado, moderando-se e complementando-se mutuamente; sem pressa nenhuma se vai afastando para o lado aquilo que a prática comprova dispensável ou incompatível com as necessidades do presente.
Eles aposentam suas velhas instituições com todas as honras pelos serviços prestados. Suas leis são as mesmas velhas leis de sempre, que são leis, humildemente, apenas e tão somente porque se têm provado bons arranjos para a solução de problemas determinados desde o início dos tempos, e não por se apoiarem em qualquer verdade pretensamente absoluta ou para forjar “uma nova ordem” ou engendrar “uma nova humanidade”.
Tudo é maleável, flexível e adaptável, como gente é.
Não ha “lados” irreconciliáveis; não ha verdades absolutas; não ha “soluções” definitivas. Há um processo; cuida-se de tornar segura a navegação e não de empurrar tudo à força para chegar onde, afinal de contas, ninguém sabe aonde as coisas haverão de acabar por ter numa caminhada que não tem final à vista…
“Progredir é continuar”. E exatamente por isso a demolição não é uma preliminar indispensável. Muito pelo contrário.