Jornalixo x jornalismo: a eterna batalha – 5

9 de fevereiro de 2022 § 1 comentário

Julio Mesquita foi o Joseph Pulitzer brasileiro. Ha mais de um paralelo nas biografias desses dois imigrantes, um deles de segunda geração, tanto na trajetória pessoal quanto na trajetória empresarial… 

Mas na selva sul-americana, assombrada pelo bicho papão do Estado Jurássico Onívoro, o jornalismo que ele instituiu numa São Paulo afetada por uma exclusiva “bolha capitalista” que era ainda mais diferente do Brasil da virada do século 19 para o 20 do que continua sendo do de hoje, estava destinado a ser o último refúgio dos emigrados para a “América errada”. Aquilo que nos Estados Unidos exigiu dos precursores e dos herdeiros das empresas que se estruturaram à volta do jornalismo democrático apenas talento para inovação e não implicava mais que o risco do fracasso, aqui exigiu esse mesmo talento e mais doses cavalares de heroísmo.

Assim mesmo, aqui como em toda a parte, é notável o tanto de mal que a imprensa pôde evitar enquanto foi livre, mesmo frente ao pouco de bem que chegou a fazer, como se vê na falta quase absoluta que ela faz hoje.

Abolição, República, Campanha Civilista, o 1930 contra a fraude eleitoral, o 32 contra o fim do federalismo (1º exílio de Julio Mesquita Filho), a USP contra a ignorância cultivada, o 37 contra o fascismo (2º exílio e ocupação militar do jornal em 1940), o tsunami salvador de 45 vindo de fora, o 64 contra o comunismo, a resistência contra o regime militar, o 83 pelas diretas, a luta contra o estatismo até a virada do Milênio, são todos esforços contra a corrente que confundem-se com a história e a razão de ser que o jornal O Estado de S. Paulo pontuou com sangue, suor e lágrimas num país que tardou sempre em dar-se conta do que é que estava errado e falha rotundamente até hoje em descobrir o que é preciso fazer para que o certo dê certo.

O pequeno enclave democrático do mundo é mero aprendiz dos brasileiros em matéria de concentração da propriedade da mídia. Se lá o Estado nasceu para garantir a permanência da revolução democrática e o capítulo referido à imprensa da lei antitruste foi a pedra angular desse esforço, aqui o Estado nasceu para garantir a Contra-Reforma e impedir a democracia de se instalar. 

Nunca existiu qualquer restrição à propriedade cruzada de diferentes meios de informação numa mesma praça ou em âmbito nacional num país que sempre garantiu a censura pelo analfabetismo cultivado. E são exceções raras, desde sempre, os órgãos de imprensa escrita que não nasceram como subsidiários de esquemas espúrios de poder político. 

O público, entretanto, sempre soube, nos momentos críticos, identificar a diferença, o que, também como em toda a parte, compensou a desvantagem quantitativa do jornalismo face ao jornalixo. Ao longo de boa parte do tempo, até por desonestidade também aqui foi preciso fazer um jornalismo que ao menos parecesse honesto para não ser rejeitado pelo público.

Eventualmente alguns desses órgãos de mau nascimento tiveram até períodos de conversão para o jornalismo autêntico em função de acidentes de sucessão, em geral quando coincidiu de um proprietário também jornalista herdar sua direção. Eventos pouco comuns, entretanto, posto que, se jornalismo já é uma função que não é para quem quer, é para quem não consegue deixar de ser, heroísmo é um tipo de “vocação” mil vezes mais mal distribuída e que,  definitivamente, não é transmissível por hereditariedade como são as ações das sociedades anônimas…

A necessidade de restrição à concentração da propriedade da mídia surge, para o Brasil, com a era das eletrônicas. Mas o único controle que o Estado brasileiro desejava ele instituiu com o regime de concessões “precárias” de frequências que já fez nascer essas emissoras como suas filhas, às quais ele sempre negou a segurança da plena maioridade jurídica. 

Selou-se a sorte da democracia brasileira com o golpe aplicado por representantes de velhas oligarquias (leia-se José Sarney/Antonio Carlos Magalhães) que, prestes a serem banidas do cenário político pela redemocratização após o regime militar, se auto presentearam, e aos seus semelhantes, repetidoras das redes nacionais de televisão que criaram máfias políticas regionais virtualmente indestrutíveis, as mesmas que, sobrevivendo até hoje, congelam no passado o teratológico “software” institucional brasileiro.

Nos mercados publicitários incipientes do país, onde não circulavam verbas suficientes para sustentar, de fato, mais que umas poucas estações de rádio, pululavam as redes de rádio e TV do esquema do “coronelismo eletrônico” e, mais adiante, das novas igrejas, que se auto-alimentavam: elegiam os governadores, os prefeitos e os legisladores locais que anunciavam preferencialíssimamente apenas nos seus próprios meios de comunicação, matavam a concorrência de inanição, calavam todas as vozes dissonantes e tornavam-se “donos do pedaço”. E se, por acaso, alguma onda ética ameaçasse varrer um desses “coronéis” do cenário político, ela não chegava aos telespectadores, ouvintes e eleitores das suas jurisdições, que ficavam sabendo do que se passava apenas através das lentes cor-de-rosa dos meios de comunicação dos próprios acusados. 

De dois em dois anos, aliás, entra, até hoje, nos intervalos desses “noticiários”, o “horário eleitoral gratuito” para uso em véspera de eleição – espécie de prêmio de consolação concedido aos políticos ou candidatos a políticos “sem mídia própria” financiados pelo Estado. Nesses períodos, os veículos eletrônicos de massa, ditos “livres”, estão proibidos de veicular qualquer tipo de informação sobre os candidatos que possa ser interpretada como uma opinião contra ou a favor de algum concorrente. E todos têm de abrir espaço “gratuito” para as peças de propaganda elaboradas pelos próprios candidatos, todos eles vindos da ou aprovados pela privilegiatura, já que o financiamento de campanhas eleitorais foi transformado no nosso mais sólido monopólio estatal. 

Somente o jornalismo escrito – acessível apenas aos 10 ou 15% da população que não são afetados pelo chamado “analfabetismo funcional” – pode ser de fato independente no país, se e quando quiser sê-lo. Mas este é o segmento que, tornado imunodeficiente ao jornalixo pela conjunção da crise do modelo de negócios desencadeada pela internet e seu efeito distópico no comando das empresas jornalísticas, está dominado hoje por “coletivos” virtualmente acéfalos que, salvo as honrosas exceções que confirmam a regra, trabalham quase sempre em ordem unida “jornalistando” uns para os outros e emitindo listas de “cancelamento” de dissidentes: quem lê um, lê todos.

Configura-se a “tempestade perfeita” que explica o nível para o qual mergulhou a esperança de democracia no Brasil (e no mundo).

Horário eleitoral é o “x” do problema

6 de janeiro de 2012 § 4 Comentários

Na coluna de hoje para o Estadão, O Silêncio dos Coniventes (aqui), Dora Kramer, registra que nenhum governador, da situação ou da oposição, reclamou do ministro Fernando Bezerra, da Integração Nacional, por ter destinado 90% da verba de prevenção de enchentes para Pernambuco, Estado cujo governo ele se prepara para disputar, “ainda que fosse apenas para denotar interesse na defesa dos direitos dos seus governados“.

O tucanato em geral e o senador Aécio Neves em particular pegou leve, com críticas protocolares” ao ministro Fernando Pimentel e suas consultorias milionárias porque “ele foi e ainda é um potencial aliado do PSDB em Minas Gerais“, comportamento que se repete agora em relação ao ministro Bezerra porque ele “é a aposta eleitoral do governador de Pernambuco, Eduardo Campos, sonho de consumo do PSDB“.

Posto assim o cenário“, conclui, “o PSDB não tem moral para dizer que o PT atua com foco exclusivo na disputa eleitoral (…) Aposta na articulação de bastidor em detrimento da relação com a sociedade“.

Ela tem razão.

Mas isso é o de menos. O que há de realmente importante nessa situação é que, dada a atual regra do jogo, não podia ser diferente.

A questão que interessa é:

Por que o PSDB e todos os partidos que o precederam, inclusive o PT que com toda a sua militância e profissionalismo só conseguiu chegar ao poder depois que entendeu isso, “apostam na articulação de bastidor em detrimento da relação com a sociedade“?

Porque, sobretudo neste país de 85% de analfabetos funcionais (mas não somente nele), o que decide a eleição é a televisão.

Os primeiros a entender isso com toda a clareza que só os cínicos costumam ter foram – ora vejam! – o eterno senador e ex-presidente José Sarney e o seu Ministro das Comunicações da época, Antônio Carlos Magalhães.

Ao lotear nacionalmente as redes de televisão, no alvorecer da Nova Republica, entre os velhos coronéis que, de Getúlio Vargas até o general João Figueiredo, nunca tinham deixado de mandar no Brasil, os dois antigos esbirros do regime militar guindados ao poder pela má sorte que levou deste mundo às vésperas da posse o presidente que o país preferiria ter tido garantiram que assim continuasse sendo até hoje, realidade à qual, diga-se de passagem, amoldaram-se docilmente todos os democratas de fachada que hoje os abraçam e homiziam e que, na época, só tinham contra a ditadura o fato de não serem eles a encarná-la.

Isto selou o destino político do Brasil.

De que tratam essas “articulações de bastidor” senão de decidir qual grupo terá mais tempo no horário gratuito das televisões, essa operação de lavagem cerebral que, sai ministro entra ministro faxinado, martela incessantemente em cada um dos intervalos do Jornal Nacional – e antes e depois dele durante toda a parcela de cada dia e de cada noite em que a massa dos eleitores brasileiros está de olhos e ouvidos abertos – que o ladrão do dia, exposto em seus “malfeitos” em uma única matéria de dois ou três minutos a cada edição, é na verdade um santo?

Que a organização profissional para a qual ele rouba é, na verdade, uma agremiação de heróis altruístas que, “historicamente”, têm lutado pelos interesses dos desvalidos contra as forças ocultas que querem explorá-los e privá-los dos seus direitos especiais, adquiridos com a ajuda de tais santos?

Quanto tempo levará até que a massa que não lê e mal ouve comece a enxergar a relação de causa e efeito entre a matéria do hospital pocilga e a matéria do ladrão do dia se os manuais de jornalismo afirmam que “objetividade” é deixar exclusivamente para a fonte (oficial, ou seja, o próprio ladrão) o direito de afirmá-lo, enquanto os manuais de política ensinam os candidatos a pouco se importarem com a realidade que tem dois minutos de matéria por dia já que a versão do seu partido para ela terá mais de 30?

A doença política brasileira não acaba antes que seja extinto o foco da infecção que é a férrea censura que os políticos exercem sobre os meios eletrônicos de comunicação, eufemisticamente chamada de “horário eleitoral gratuito“.

Devia estar na Constituição (já que ela aceita tudo, que venha uma a favor da Nação!) a regra estipulando que nenhum político ou candidato tem direito de se dirigir ao público sem contraditório.

E no entanto, como já registrei tantas vezes aqui, nem mesmo as entidades de defesa da liberdade de imprensa brasileiras mencionam essa forma de censura.

Por trás dessa cortina de silêncio está outro fato simples. Poucos órgãos da imprensa escrita, a única que desfruta de liberdade completa no país, pertencem a grupos que não têm na televisão a sua principal base de sustentação econômica. Cada jornalista, por sua vez, sabe que, mais dia menos dia, terá de bater à porta de um deles para pedir emprego.

Acontece que os donos das televisões são os coronéis eletrônicos criados pela dupla Sarney/ACM que, não por acaso, estão hoje refestelados no Senado da Republica e no Congresso Nacional – com ficha já suja ou ainda limpa, pouco importa – ditando as regras para as eleições e para o uso e a propriedade dos rádios e televisões.

É assim que o círculo se fecha.

Enquanto a regra for essa, quem quiser até pode tentar estabelecer “uma relação com a sociedade” à margem do rolo compressor do horário eleitoral gratuito. Mas estará cantando a canção do infinito numa capoeira. Não chegará jamais a disputar seriamente o poder, jogo que ganha-se ou perde-se antes das eleições comprando e vendendo tempo na TV a troco de pedaços do país e nacos do futuro dos seus cidadãos.

O resto é água mole em pedra dura. Ou o cara sai da política, ou vende a alma ao diabo porque a regra estabelecida é que só se chega ao fim desse jogo transformando-se num agente dele.

É por isso que, para o jornalismo sério, que só faz sentido como instrumento de reformas, este deve ser o alvo. O resto é barulho inconsequente.

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