Voto distrital com “recall”: a reforma que inclui todas as reformas – 2
10 de julho de 2013 § 66 Comentários
(2º de uma série sobre voto distrital com recall.
Veja links de toda a série no final desta matéria)
Como submeter os representantes à vontade dos representados sempre foi o problema central das democracias. Historicamente falando este tem sido o seu “calcanhar de Aquiles”.
No primeiro ensaio o sistema ruiu quando a Grécia passou a ser mais que Atenas e não dava mais pra votar diretamente todos os assuntos numa praça.
Mil anos depois a República Romana, primeiro esboço de um sistema representativo, naufragou na corrupção porque não conseguiu resolvê-lo num processo que guarda não poucas semelhanças com este do Brasil atual.
Passados outros mil e trezentos anos, Brasília é a nossa Roma, que não enxerga os confins do “império” … que, por sua vez, também não enxergam Brasília. É dessa intangibilidade que resulta, para resumir ao essencial, que eles tenham livre acesso aos nossos bolsos sem que nós tenhamos como defendê-los ou, sequer, como determinar de que forma queremos que usem o que nos surrupiam.
Posta a condição para que um sistema de exploração se estabeleça impunemente, o resto a Natureza faz.
O altruismo, a ação direcionada para o bem comum é uma construção artificial do coletivo que só se impõe aos indivíduos pela força do constrangimento.
É exatamente essa a função do voto distrital com recall, instituição que, ao permitir a destituição seletiva de qualquer ocupante do poder a qualquer momento e em qualquer instância sem revolução nem comoção social, consagrou-se como a primeira resposta eficaz ao problema até então insolúvel da sujeição dos representantes à vontade dos representados.
Foi ela que salvou a democracia americana, a terceira tentativa do sistema de caminhar pela Terra, de dissolver-se na corrupção de que estava roída na virada do século 19 para o 20 e mudou para sempre a qualidade e a velocidade do desenvolvimento humano.
O voto distrital com recall põe um patrão – você, que já lhes paga o salário – em cima de cada deputado, vereador ou ocupante de cargo executivo. Submete-os à mesma lei que vale aqui fora: ou trabalham, e trabalham a favor da “empresa”, ou rua. Põe a direção da política de fato nas mãos do povo.
Acena-se por aqui com o voto distrital. Mas isso é muito menos que meia solução. O voto distrital não é um fim em si mesmo. O que é decisivo é o recall, o poder de retirar a qualquer momento um mandato de representação condicional e temporariamente concedido ao representante eleito.
A eleição tem de se tornar distrital apenas para abrir a possibilidade do recall. Para permitir que o avião vá sendo concertado enquanto voa. Com cada candidato concorrendo pelos votos de apenas um distrito o jogo da representação fica claro: eu e meus companheiros de distrito eleitoral demos a este determinado senhor um mandato condicional para nos representar (no Congresso, na Assembleia Legislativa, na Câmara Municipal); eu e meus companheiros de distrito podemos retirar esse mandato a qualquer momento sem que o resto do sistema seja afetado.
Regras claras, jogo limpo. Um, dois, três, cinco por cento dos eleitores de um distrito – o que importa é que a regra seja igual para todos – assinando a petição que qualquer um de nós pode iniciar, convoca-se uma votação delimitada àquele distrito em torno de uma pergunta simples: nosso representante segue nos representando ou perde o mandato e elegemos outro?
A par de instituir, finalmente, o “governo do povo, pelo povo e para o povo”, como é da definição de democracia de que sempre estivemos tão distantes, essa ferramenta nada menos que impõe a meritocracia à política e ao serviço público. Se não põe automaticamente todo mundo jogando a favor, permite que se dê remédio fulminante a quem jogar contra.
É a revolução permanente sem os riscos das revoluções.
Dá a cada um a sua pequena porção de poder sem dar a ninguém poder demais. Garante a cada cidadão o direito de contestar o que lhe parecer errado e receber obrigatoriamente uma resposta e arma-o com um poder efetivo para forçar novas reformas sempre que elas lhe parecerem necessárias: para resistir a impostos devastadores e acabar com a farra dos salários públicos cheios de penduricalhos; para tornar mais seguro e efetivo o instrumento das leis de iniciativa popular; para dar às vítimas potenciais o direito de dosar os remédios da segurança pública; para definirmos nós e não eles quais e quantos funcionários devem ser nomeados ou eleitos e para que…
Não há limites.
O instrumento do voto distrital com recall organiza e dá consequência à “voz das ruas” com a vantagem de traduzir-lhe todas as nuances. Seu exercício é educativo e conduz a um recorrente ajuste fino do sistema. Dá-nos a agilidade necessária para nos adaptarmos tão rápidamente quanto formos capazes, desamarrados, a um mundo em permanente mudança.
Plebiscito? Referendo? Constituinte específica?
Em torno de quais alternativas? E quem monta essa pauta? Os interessados em que nada mude? Ou os “movimentos sociais” que ninguém elegeu?
Pois é, um plebiscito pode ser o instrumento de um golpe, se insistirem nessa coisa de mudar na marra o jogo para 2014 como quer o PT, ou pode ser o veículo capaz de ordenar o debate que pode fazer o Brasil avançar 200 anos em um se for levado com os necessários vagar e clareza até uma decisão votada em 2015 para valer somente a partir de 2016.
Esta é a primeira exigência inegociável, portanto. Mas a principal é “fecharmos” todos no voto distrital com recall pela excelente razão de que esta é a reforma que inclui todas as outras reformas.
Seja um apóstolo dessa ideia!
Fale, escreva, passe, repasse e faça tudo isso de novo e de novo. Grite na rua pelo voto distrital com recall. E não esqueça de repetir sempre: com recall!
Se formos claros o suficiente, pode estar certo de que eles encontram a maneira de fazer passar a reforma que dará ao Brasil as pernas que lhe faltam para achar, daqui por diante, o seu próprio caminho.
Texto publicado originalmente na página 2 do jornal O Estado de S. Paulo de 10/7/2013
TODA A SÉRIE SOBRE VOTO DISTRITAL COM “RECALL”:
https://vespeiro.com/2013/08/21/democracia-a-mao-armada-9/
https://vespeiro.com/2013/08/14/a-travessia-do-deserto/
https://vespeiro.com/2013/08/02/porque-nao-ha-perigo-no-recall-7/
https://vespeiro.com/2013/07/23/recall-sem-batatas-nem-legumes/
https://vespeiro.com/2013/07/20/discutindo-recall-na-tv-bandeirantes-6/
https://vespeiro.com/2013/07/15/mais-informacoes-sobre-a-arma-do-recall/
https://vespeiro.com/2013/07/12/voto-distrital-com-recall-como-funciona/
https://vespeiro.com/2013/07/10/a-reforma-que-inclui-todas-as-reformas/
https://vespeiro.com/2013/06/25/voto-distrital-com-recall-e-a-resposta/
Quarentenas e coberturas burras ou inteligentes
31 de março de 2020 § 30 Comentários
Artigo para O Estado de S. Paulo de 31/3/2020
“Quem não se comunica se estrumbica“. Jair Bolsonaro é um sujeito que tem de ser ouvido “por partes”, como diria Jack, O Estripador. Para entender o que ele diz é preciso separar forma de conteúdo. É uma atitude que requer tomar calmante porque na forma ele agride com tanta força que o resto ninguém ouve, mas é obrigatória pois, sendo ele quem é, não é ele, é o Brasil quem “se estrumbica“.
A crônica da ultima “birra” é enfática. Para além da citação textual da “gripezinha” de Dráuzio Varela com que quis ironizar “aquela televisãozinha”, ele tinha recuado suspendendo dívidas e dando outras condições para viabilizar a quarentena nos estados. Nada era mais fácil e previsível, porém, que uma admoestação pública como a de João Doria provocasse a resposta que provocou…
Ora, tirar Bolsonaro do sério é covardia. Tarefa pra herói que tem mesmo pena do Brasil é ouvir inteligentemente o lado burro dos discursos que profere. É aí que entra a imprensa. Esse jornalismo rançoso, de superexposição de todo e qualquer pelo de controvérsia, encomenda o aprofundamento do dissenso. Anunciar que o passaporte para a exposição de quem vive de voto na telinha é provocar e sustentar controvérsias bem no meio de um desastre é um ato mais criminoso que o do político que topa esse jogo deletério. Mas tem sido a regra. Nada nesta pandemia pode ser compreendido analisando-se apenas os dados concretos do problema. Ninguém perde muito tempo com eles. O vírus foi politizado como tudo o mais. Ou você é “quarentenista” fechado ou dá briga. É proibido raciocinar em voz alta a respeito.
E, no entanto, está mais claro a cada minuto que a verdade está no lugar de sempre – o meio – e não ha jeito de evitar o pior sem incluir o que há de verdade, tanto na necessidade da quarentena burra para não morrer na chegada da doença, quanto na da evolução para a inteligente o mais rápido possível para não morrer das consequências da outra.
Na China o governo é a polícia e todas as empresas são monopólios pertencentes ao mesmo patrão que além do de empregar, emitir a moeda com que opera suas empresas e aguentar tanto prejuízo quanto quiser nem que o “trabalhador” fique reduzido a comer morcegos, também tem o poder de prender e arrebentar quem ele quiser. Mas nem ela pode brincar com esse fogo. É o pais mais avançado do mundo em tecnologia da opressão o que veio a calhar numa crise como essa. Primeiro fechou Wuhan na marra. Mas o quanto antes passou a testar e tomar temperaturas em massa. Agora, com todo o pais fichado no reconhecimento facial e cada chinês vigiado 24 horas por dia, o celular diz ao governo onde ele anda, com quem se encontra e até de quem se aproxima e o algoritmo da polícia o classifica numa de três categorias: vermelho, amarelo ou verde. É verde quem não saiu do país nem se encontrou com ninguém vermelho ou amarelo nos últimos 14 dias. É amarelo quem veio de fora ou se encontrou com alguém vermelho nos últimos 14 dias. É vermelho quem foi testado positivo ou teve a sua temperatura medida com febre. Isso classifica também as cidades e regiões do pais. O trânsito é livre para as verdes, cidades ou pessoas; tudo é restringido para os amarelos; há supressão total da circulação dos vermelhos.
Assim 80% dos chineses voltaram a estar, como sempre estiveram, semi-soltos e trabalhando muito, enquanto o resto do mundo continua preso, menos nos países que estão fazendo coisa semelhante com os custos e limitações da liberdade democrática (ou quase) como Coreia do Sul, Cingapura, Taiwan, Alemanha e outros que, livres da contaminação em nível critico pela pandemia da conflagração ideológica, estão enfrentando o coronavirus com miolos em vez de bílis, aplicando testes e medindo temperaturas em massa e colhendo números tão bons quanto os da China.
Dinheiro e coordenação são as condições que nos faltam para transitarmos da quarentena burra para a inteligente a tempo de evitar o mergulho que estamos na iminência de dar da miséria para a miséria irreversível. Descobrir onde tem teste, quanto custa, como produzi-los na velocidade necessária; mobilizar “gargalos da quarentena” (supermercados, transportes, etc.) a medir temperaturas são formas de repercutir inteligentemente o modo burro de Bolsonaro afirmar sua parte da verdade desta epidemia e dispensa-lo de fazer a próxima “birra”.
Mas passar adiante dele empurrando-o para a reforma das reformas que, nem ele, nem muito menos quem hoje o critica, quis ou deixou fazer na profundidade necessária para acabar de uma vez por todas com o sistema de privilégios medieval que destruiu este país, seria a única forma da imprensa brasileira pagar a sua dívida histórica. Não só porque não escaparemos do abismo sem isso e porque tempo é tudo, mas porque foi pelo jornalismo pátrio nunca se ter dignado a fazer uma campanha de denuncia remotamente proporcional ao escândalo que são os privilégios da privilegiatura que a economia brasileira chegou a essa pandemia como o “velhinho” mais depauperado e de mais alto risco do planeta de morrer no primeiro minuto que faltar-lhe o ar.
Um caso de cura da nossa doença
25 de julho de 2017 § 43 Comentários
Artigo para O Estado de S. Paulo de 25/7/2017
Ha 100, 120 anos atras os Estados Unidos estavam numa crise muito parecida com a do Brasil de hoje. O fim da cultura rural, a urbanização caótica, a explosão da miséria e da violência nas grandes cidades, a descoberta da economia de escala esmagando o trabalho, as novas tecnologias (ferrovias) proporcionando a ocupação econômica de territórios virgens antes que houvesse regras para a sua exploração, os “robber barons” que primeiro trilharam esses caminhos criando monopólios com ajuda de políticos corruptos e levando a patamares nunca sonhados o poder de subornar…
Com o problema e suas causas essencias diagnosticados o remédio, formulado na legislação antitruste para impedir a criação de monopólios, não era ministrado por um sistema tomado por caciques que controlavam ha décadas as portas de entrada da politica e do serviço público. A separação dos poderes, a independência de um judiciário também venal, a blindagem dos mandatos, todas as instituições criadas pelos fundadores para garantir a hegemonia da vontade popular estavam sendo usadas para anulá-la. A expressão da vontade dos eleitores exclusivamente por meio de canais de representação combinada com a intocabilidade dos mandatos tinham sido pervertidas em garantias de impunidade contra a falsificação dessa vontade. Ia morrendo numa odiada tirania da minoria o sonho do governo do povo, pelo povo e para o povo.
As esperanças começaram a renascer com o movimento Progressista (1890-1920) que se inspirava no modelo suiço de recurso a ferramentas de democracia direta para contornar instâncias de representação recalcitrantes. O foco concentrou-se em dois instrumentos importados e uma adaptação nacional. Os direitos de referendo das leis dos legislativos municipais e estaduais e de propor leis por iniciativa popular como se fazia nos cantões suiços para criar um acelerador para forçar reformas e um freio contra leis viciadas por interesses espúrios. Eleições primárias diretas para neutralizar o primeiro foco de acordos contra o direito de escolher que estava no poder dos caciques de decidir quem podia ou não se candidatar. O “recall” ou retomada de mandatos a qualquer momento por iniciativa popular viria mais adiante para quebrar resistências. O objetivo era “manter a opnião pública sempre em posição de ascendência sobre as instituições de representação para amarra-las concretamente à vontade popular”.
Por aquela mesma altura o jornalismo americano passou por uma revolução com o surgimento da revista McClure e seu jornalismo investigativo em profundidade revolvendo a sujeira (“muckraking”) da política, desmascarando os “robber barons” e seus métodos de ação e indicando os remédios contra a institucionalização da mentira. A matéria de Ida Tarbell sobre Rockefeller e seus esquemas com as ferrovias, que tinham “departamentos de política” exatamente semelhantes em métodos e propósitos aos das nossas odebrechts e JBSs, tornou-se um icone desse novo jornalismo. E as circulações saltaram para a casa dos milhões de exemplares.
Em 1901, o presidente McKinley é assassinado antes da posse e Theodore Roosevelt, um “outsider” que entrara para a política para desafiar “o sistema”, fizera fama em Nova York desvendando grandes esquemas de corrupção e, por ter sempre desafiado os velhos caciques republicanos, tinha “sido contemplado” com a vice-presidência numa manobra para tira-lo da eleição presidencial de 1900, torna-se presidente da Republica e passa a “governar com os jornalistas”, abraçando amplamente as reformas e procurando, com inédito sucesso, coordenar com eles a comunicação de suas investidas nesse campo.
São Francisco e Los Angles tinham feito os primeiros ensaios e houve outras experiências no nivel municipal mas o movimento toma impulso decisivo ao se transformar em bandeira de luta do governo nacional.
Em 1902 o estado de Oregon inscreve em sua constituição os direitos de iniciativa e referendo. Ali estabeleceu-se o modelo de coleta de assinaturas que ficou nacionalmente conhecido como o “Sistema do Oregon”: 8% do eleitorado para qualificar uma lei de iniciativa popular e 5% para forçar um referendo. Com eles nas mãos, os eleitores foram construindo por ensaio e erro todo o resto da receita. Entre 1902 e 1913, 108 leis de inciativa popular foram a voto no Oregon. A primeira delas para instituir as primárias diretas. Até 1915, quando a 1a Guerra Mundial esfriou o movimento, outros 15 estados tinham adotado o modelo. A Califórnia foi o primeiro a incorporar o “recall” em 1911. Isso acabou com as resistências e consolidou a revolução.
Hoje nenhum servidor público ou representante eleito, aí incluídos os juizes, é estavel em seu cargo ou em seu mandato e tudo é passivel de ir a voto direto nos EUA. Seja tomando carona nas eleições do calendário normal (a cada dois anos, incluindo legislativas e majoritárias), seja por meio de eleições especialmente convocadas, leis de inciativa popular, veto a leis dos legislativos, cassação de cargos e mandatos são diretamente decididos pelos eleitores. Na ultima eleição para presidente a média nacional de quesitos nas cédulas foi de 72. Impostos, emissão de divida, gestão de escolas publicas, temas ambientais, leis sobre usos e costumes, direitos do consumidor, regulamentos de negócios, salário minimo, alimentação e agricultura, legislação penal, tudo pode ser proposto ou desafiado mediante coleta de assinaturas ou mecanismos automáticos impondo esse procedimento aos próprios legislativos em assuntos sensiveis nos municípios e nos estados americanos. Ha mais de uma duzia de modelos diferentes de “ballot measure” ou “medidas para votação” passiveis de serem incluidas na cédula da próxima eleição para um “sim” ou “não” dos eleitores.
Foi isso que pos a política jogando a favor da nação, reduziu drasticamente a corrupção e fez deles o povo mais rico e mais livre da história da humanidade.
Brasil e o lobo
30 de março de 2017 § 10 Comentários
Artigo para O Estado de S. Paulo de 30/3/2017
Nem a imprensa, nem a polícia sozinhos. O problema é quando as duas deixam de lado a função de controlar uma à outra para cair numa espiral de mutua manipulação que anaboliza perigosamente a força de ambas e só pode resultar em catástrofes como a da “Carne Fraca”.
Aquilo foi um filme acelerado dos últimos três anos. Querer proibir que se tire do episódio as conclusões que ele aponta é desperdiçar mais uma oportunidade – talvez a última – de sairmos da rota de desastre. Um caso de fraude a contrato com a merenda escolar, outro de suspeita de utilização de carne além do prazo de validade na fabricação de embutidos e mais dois ou três indícios de pecadilhos menores envolvendo dosagens de conservantes e de componentes empregados em receitas de carnes industrialmente processadas. Nem a Policia Federal nem a imprensa sozinhas conseguiriam, com material tão fraco, destruir o último polo de excelência que sobrevivia no país e por seis milhões de famílias na rua da amargura. Mas juntas…
Tem sido um processo. A imprensa foi sinalizando “ao mercado” que o simples carimbo do “teve acesso a” passava a ser suficiente para legitimar a publicação sem nenhuma apuração independente de material vazado por partes interessadas. Com o tempo passou-se a disputar esses falsos “furos jornalísticos” com a superexposição do material obtido. Policiais e promotores obscuros passaram a ter, de repente, a exposição que não se dá nem a presidentes nos momentos de crise nacional.
O resultado é um clássico da literatura universal. Pode-se conjecturar quanto de amor à justiça, de vaidade, de simples leviandade ou de intenções criminosas tem havido por trás de cada um desses episódios. Mas negar que as coisas evoluíram para um esquema fácil demais de delação + grampo telefônico + exposição de pedaços de verdade, resultando em generalizações temerárias, injustiças, insegurança jurídica, paralisia econômica e destruição maciça de riqueza; negar que essa arma está ao alcance de todo e qualquer bandido da politica e tem sido usada para por a verdade a serviço da mentira e a justiça a serviço do crime é pelo menos tão desonesto quanto afirmar que é sempre só a isso que se resume a Lava Jato.
Ha duas disputas sobrepostas nesta encruzilhada da vida nacional. Aquela com que mais se procura entreter o público é a da corrida pela herança formal da terra arrasada em que o país se vai transformando e anima a novela da corte que hipnotiza a imprensa. Essa disputa, até segunda ordem, ainda se resolve no voto que, não por acaso, é a bola da vez. A outra, mais subterrânea e essencial, regida pela aritmética, é a que, mais cedo ou mais tarde, terá necessariamente de desaguar numa profunda revisão da repartição do PIB entre a casta que se apropriou do estado e detém os privilégios ilegítimos que se especializou em contrabandear para dentro da ordem legal e a multidão dos trabalhadores da economia privada sucessivamente saqueada para sustenta-los.
Essa disputa obedece a alinhamentos que transcendem os que regem o discurso das confrarias envolvidas na primeira e faz com que, nos bastidores, manobrem e votem na mais perfeita ordem unida do mais reacionário “pastor” à mais carbonária das “passionarias” do Congresso, sempre a favor do privilégio (dos 86% de funcionários excluídos da reforma da previdência, por exemplo) e contra o povo miserável que pagará mais impostos por isso.
Encurralada pelo esgotamento do organismo hospedeiro que colonizou, a “privilegiatura” brasileira, assim como todas que a precederam na História, vai se arrastar até onde lhe permitirmos que se arraste. Mas a extensão dessa sobrevida, indefensável por qualquer tipo de argumento racional, dependerá essencialmente de manter o eleitorado confundindo essas duas lutas uma com a outra.
A polarização do debate nacional pelo “patrulhamento ideológico” e o medo dos “linchamentos morais” promovidos a pretexto de “defesa da operação Lava Jato” é hoje o principal artifício a que se tem recorrido para estabelecer e manter essa confusão.
Mas fatos são fatos. É em sintonia perfeitamente fina com a alternância das figuras de turno no poder, a evolução do calendário eleitoral e, mais especialmente, o cronograma das reformas que se vão sucedendo os personagens visados nas delações. Marcelo Odebrecht exerce hoje um poder maior que o que jamais sonhou, na sua megalomania, poder comprar com dinheiro. Qualquer nome que meramente pronuncie está condenado a arder eternamente no mármore do inferno. O movimento redentor que começou com o rigor de investigação e as sentenças precisas e individualizadas do “Mensalão” e mobilizou o país inteiro a ter esperança iguala hoje, sob a indiferença geral, todos os políticos ao Lula da hipercorrupção pelo poder ou aos cunhas e cabrais da hipercorrupção pelo dinheiro, todos os empresários que doaram para campanhas ao nosso multinacional Midas pelo avesso e, por ultimo e não por menos, toda a indústria brasileira de proteína animal a uns tantos picaretas e fiscais corruptos pendurados nela.
É o “meio” que tem feito a “condenação” onde quer que se o aplique.
Capturar e punir ladrões é essencial. Mas as culpas são de quem as têm. Todas as democracias do mundo convivem com o financiamento privado de campanhas porque a alternativa é óbvia e ululantemente muito pior. O STF lavrou sentença provando que é fácil diferenciar os raupps do trigo e até Dallagnol já discursou que não importa o “numero” do caixa, todos podem incluir ou não corrupção que é sempre fácil de identificar e punir. Mas a conclusão dessas premissas ninguém afirma em voz alta porque defender financiamento privado e individualização de julgamentos seria “renegar a Lava Jato”.
E tome lista fechada!
O mundo se assustou com o show diário a que nos acostumamos mas em poucos dias já dava pra ver até da China que não é o caso de pegar a arma e sair atirando cada vez que se grita “Lobo!” por aqui. Não seria hora da gente aprender também?
Recall e democracia no Brasil
30 de março de 2016 § 1 comentário
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https://vespeiro.com/2013/07/10/a-reforma-que-inclui-todas-as-reformas/
2
https://vespeiro.com/2013/07/12/voto-distrital-com-recall-como-funciona/
3
https://vespeiro.com/2013/07/15/mais-informacoes-sobre-a-arma-do-recall/
4
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6
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7
https://vespeiro.com/2015/12/01/receita-de-reconstrucao-nacional/
8
https://vespeiro.com/2015/12/15/noticias-da-democracia/
9
https://vespeiro.com/2016/03/30/o-que-fazer-depois-do-grito-2/
10
https://vespeiro.com/2016/01/27/o-fim-do-feudalismo-sem-gallantry/
11
https://vespeiro.com/2015/01/21/como-e-a-selecao-de-juizes-nos-eua/
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