O que ha de mais “fake” que as “fake news”

10 de janeiro de 2022 § 14 Comentários

O empreendedorismo é o domínio do instinto. Não é para quem quer é para quem é. A política e seu produto por excelência na democracia — a lei — é a superação da que rege o instinto e manda todo bicho “usar sua força para comer o mais possível sempre que a ocasião se apresentar”, um movimento concertado de defesa das presas contra os predadores que acaba por ser acatado até por esses últimos quando a História os ensina a pensar adiante da próxima refeição.

A informática não mudou rigorosamente nada na essência das relações humanas que já foi bem precisamente sintetizada no adágio de que “o homem é o lobo do homem”. Ela criou uma reprodução matemática do mundo real sujeita não mais às velocidades e multiplicações do universo da História e do mundo físico mas às próprias a essa ciência abstrata, o que subverteu violentamente as noções de espaço e tempo, fundamentos do conhecimento humano, com implicações altamente disruptivas nas aplicações que daí decorrem, especialmente as ligadas à produção e à transação de bens e riquezas e, mais que para todas as outras, para a capacidade de cada nação de impor leis precisas, estáveis e bem delimitadas como têm de ser as das raras democracias de fato existentes. 

Como sempre, desde o controle do fogo, do arco e da roda e da domesticação dos animais, das plantas e dos metais, essa disrupção proporcionou aos “predadores alfa” da política e da economia explorar os vazios de regulamentação que se abriram com a violência e o oportunismo que o instinto lhes pede. Sob a bandeira da “reforma da humanidade” de sempre, o Google auto-atribuiu-se o direito de mudar as regras do ciclo de vida da informação espionando, indexando e tornando acessíveis para todo o sempre os pormenores das manifestações de preferência e trocas de informações entre cada um dos seres humanos sem pedir licença a ninguém, ato criminalizado em todas as legislações do mundo para todas as tecnologias não baseadas em bits. 

Em paralelo, na melhor técnica do malandro que atrai a vítima sempre com a promessa de benefícios impagáveis, copiou e indexou a informação coletada e sistematizada por profissionais de todos os campos do saber em todos os tempos sem pagar direitos a quem trabalhou para produzi-la, outro crime tipificado para todos os meios anteriores, e entregou o produto desse saque planetário como um “presente grátis” a quem antes tinha de pagar por ele, “apenas” em troca da livre espionagem dos hábitos, preferências, intimidades e roteiros dos consumidores desse “serviço”. E então amealhou uma fortuna indecente vendendo os segredos de cada eleitor e cada consumidor aos tubarões da política e da economia.

Escancarada a porta, por lá passaram as boiadas da Amazon e do Facebook, as “ferrovias” de hoje com seu séquito de robber barons de vida curta, comprados com baratos bilhões para colocarem-se à salvo sem incomodar ou concorrer, e todo o resto das mazelas que conhecemos, com as Apples no fim da fila, explorando nas chinas da vida o trabalho escravo pelo qual seriam presas em casa e arrastando todos os seus concorrentes para o mesmo atalho que matou, numa só cajadada, séculos de conquistas dos trabalhadores nas democracias, tudo sob o silêncio cúmplice da política podre que finge não entender a exata semelhança entre os crimes dos donos das big techs e seus caronas de hoje e os dos robber barons de ontem.

Agora, montados nos trilhões de dólares amealhados com esse tipo de “competência”, já se sentem fortes o bastante para desafiar as maiorias de frente com a censura explícita e a incineração virtual dos “hereges” em autos-de-fé públicos mediante os quais ficam “cancelados” não só das tribunas a partir das quais a política captura os votos necessários para deter essa gigantesca falcatrua como também da vida econômica que migrou totalmente para a reprodução virtual do mundo real.

Em maio de 2014, depois que a Agência de Proteção de Dados da Espanha reassegurou a um professor o direito de ter o seu passado esquecido, a União Européia como um todo, mais “freguesa” que proprietária das mega multiplataformas da internet, restabeleceu o princípio de que o futuro da vida digital deve ser estabelecido pelas pessoas, suas leis e suas instituições democráticas e não por qualquer grupo de moleques montados numa tecnologia nova o bastante para não ser imediatamente compreendida, em seus meandros e processos, nem pelos seus usuários, nem muito menos pelos legisladores, o que recoloca nos seus devidos termos a questão decisiva deste início de 3º Milênio marcado pelo desvio do “capitalismo de espionagem” (surveillance capitalism) que só pode prosperar com a morte da democracia.

O atual impasse prende-se mais à corrupção que às dificuldades técnicas envolvidas. Não é preciso inventar nada de conceitual ou filosoficamente novo, como querem fazer crer os enganadores de sempre, apenas submeter as big techs e suas praças públicas virtuais às mesmas leis que enquadraram os robber barons do passado e garantem o exercício dos direitos fundamentais do homem nas praças públicas físicas (à propriedade, à sua intimidade #ownyourdata, à liberdade de crença e expressão, ao devido processo, etc.), impondo aos tecnólogos, como condição para operar seus aplicativos, plataformas e redes, a busca das soluções necessárias para implementar essas garantias.

Sim, conseguir são outros 500. Mas ser obrigado a tentar é tudo que sempre fez a humanidade andar para a frente…

Quanto ao gigantismo que desenvolveram violando as leis que todos os seus concorrentes eram obrigados a cumprir, vale o mesmo princípio. A democracia se reapresentou ao mundo em 1787 com a missão de evitar a criação de superpoderes no universo da política com a bandeira de que somente cada indivíduo tinha o direito de escolher o seu modo de alcançar a felicidade e definir o que era ou não “fake” para ele em matéria de pensamentos e crenças, o que lhe deu um impulso inicial brilhante mas não suficiente.

Na virada do século 19 para o 20, refém da corrupção gerada pelo seu principal “defeito de fabricação” que foi a blindagem, ainda que temporária, dos mandatos dos representantes eleitos contra seus eleitores, acrescentou à sua lista de objetivos prioritários, mediante o aparato antitruste que só pôde impor depois de armar a mão do eleitor para dar a palavra final sobre cada ato dos seus representantes, a prevenção da criação de superpoderes também na economia privada, o que pôs em cena o único “estado de bem estar social” que jamais se materializou no mundo real: não o que o socialismo prometia autorizando o governante de plantão a distribuir dinheiro alheio entre seus amigos e correligionários mas aquele que Theodore Roosevelt dotou do moto continuo naturalmente invulnerável à politicagem da limitação da competência para açambarcar mercados pela manutenção obrigatória do grau mínimo de competição necessário em cada setor da economia para obrigar os empreendedores a disputar trabalhadores aumentando salários e consumidores reduzindo preços, com o Estado estritamente no papel de árbitro.

Foi esse o truque simples que fez dos Estados Unidos o que são (estes em que o PIB do estado de Nova York equivale ao do Brasil inteiro e o dos outros 49 estados é “lambuja” e não aquele que nossa imprensa mostra) e propiciou que arrastassem a humanidade inteira atras de si para patamares mais altos de liberdade, afluência e progresso da ciência ao longo de escassos ¾ do século 20 que os alcançados na soma de todas as centenas de séculos anteriores.

Agora quer a horda dos reacionários a volta ao padrão anterior a 1787, com sua igreja ditando o que é e o que não é “verdade” e calando quem discorda na marra em nome da “defesa da democracia”.

FAKE“!

A tergiversação em torno dessa empulhação, do gigantismo das big techs e de todos os seus nefandos corolários explica-se pelos trilhões acumulados pelos modernos robber barons, que engraxam tanto os que correm atras do poder de explorar o próximo pela via da economia quanto os especializados em faze-lo pela da política, muito mais que por qualquer dificuldade técnica para corrigir o rumo e aplicar a elas regulamentos honestos, democráticos e limpos.

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§ 14 Respostas para O que ha de mais “fake” que as “fake news”

  • José Luiz De Sanctis disse:

    É preciso acabar com a ditadura das bigtechs. Vamos divulgar este excelente artigo para que mais pessoas tomem ciência do que se trata, antes que seja censurado. Infelizmente tenho que usar um e-mail desses tiranos.

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  • Paulo Murano disse:

    Fernão é ótimo em história e sofrível no ideário pessoal. Afirmações abrindo o texto no primeiro parágrafo passam longe de máximas de valor confiável.

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  • Mauro Ribeiro Silva disse:

    O que me preocupa é a falta de alcance e discussão das ideias do Fernão, que me parecem muito certas e sensatas porém não atingem uma centena de visualizações. Sinceramente gostaria de ver isto mudar porque a bandeira dele é a liberdade, que para mim é primordial.

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  • Assusta sempre ver a história em movimento.
    Isso vai passar qd for controlado por leis como todo o resto.

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  • Paulo Terracota disse:

    Ser testemunha desse admirável e assustador mundo novo, nós dá a sensação de fragilidade e impotência frente ao monstro que tudo vê e tudo pode !

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  • milbertini disse:

    Discordo do que disse o Fernão sobre o Estado de Nova York ter o maior PIB dos EUA. O correto segundo a Wikipedia é:
    1) California, sendo o PIB da California quase o dobro do de New York
    2) Texas
    3) New York

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  • Fernão disse:

    Eu nunca disse que o estado de NY tem o maior PIB dos EUA

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  • Paulo Murano disse:

    “A informática não mudou rigorosamente nada na essência das relações humanas”

    Caracas! A estupidez fortalece iguais.

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    • A. disse:

      Sr. Paulo “rançoso”, “o diferente”:
      “Você não deveria ter ficado velho antes de ficar sábio”
      William Shakespeare, “Rei Lear”, cena 5 do primeiro ato

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  • Herbert Sílvio Augusto Pinho Halbsgut disse:

    Apresentação assustadora sobre o que vai no mundo dos interesses das bigtechs e que nos afeta em nossos direitos, pois manipulam nossas vidas e influenciando até nossas decisões, mormente em época de eleições. E o povão do favelão nacional que nada lê, fica a margem do processo decisório por falta de informação de bom nível e se resignam a ficar curtindo programas populares na televisão…
    Este seu artigo deve ser replicado em outros blogs de jornalistas e em jornais de grande circulação. Ficaria sob medida naqueles nas páginas de opinião do Estadão.
    Contando com um Congresso Nacional que não sabe legislar como poderemos nos defender dos ataques das bigtechs.

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  • Jackson disse:

    Pior que as Big Techs são nossos togados do stf que se acham no direito de decidir quem está propondo fairness somente considerando a ideologia dos amigos. O Torquemada sem cabelo se acha o oráculo da defesa da verdade e não passa do bobo da corte

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  • Carlos Oliveira disse:

    O que há de mais “fake” que as “fake news” ???

    Para mim, a resposta é óbvia:
    _AS AGÊNCIAS DE “CHECAGEM” !!!

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