Os proprietários da miséria nacional

4 de junho de 2019 § 11 Comentários

Artigo para O Estado de S. Paulo de 4/6/2019

A crise é generalizada porque é uma crise dos fundamentos. O país perdeu a capacidade de identificar as referências básicas em relação às quais se posicionar. Uma das mais básicas dessas referências básicas é o direito de propriedade. A brasileira, como toda sociedade deseducada, tem apenas a si mesma como referência. Age como se o mundo tivesse começado com ela. E como o Brasil começou com apenas 13 proprietários, a defesa da propriedade privada nunca foi popular por aqui.

Os 13 proprietários do Brasil eram, porem, apenas os prepostos do proprietário unico de Portugal e seu império ultramarino. Nas monarquias absolutistas “soberania” e “propriedade” (ou patrimônio) eram dois nomes da mesma coisa, ou melhor, da mesma pessoa. Tudo pertencia ao rei. O governante despótico não tinha de ir a uma assembléia de represetantes do povo para pedir dinheiro. A sociedade inteira é que tinha de ir a ele para suplicar que lhe deixasse as migalhas do pão que ela amassava.

A única exceção foi o rei inglês. Não é por questão de gosto que na Inglaterra os castelos são de pedra e madeira e os franceses, espanhóis, russos ou portuguêses são de ouro. Numa luta que vai fazer mil anos desde a Carta Magna de 1215, o rei inglês foi mantido sempre e cada vez mais “pobre” e mais dependente do Parlamento para manter seus luxos e sustentar suas guerras. Cada novo pedido de sua majestade por recursos foi negociado em troca de uma garantia a mais de proteção da propriedade de cada indivíduo da plebe sobre o resultado do seu trabalho contra o poder do rei e seus “nobres” de tomá-lo para si (lembra de João Sem Terra, o xerife de Nottingham e seus impostos e Robin Hood?), até que, a partir de 1680, o Parlamento ganhasse a supremacia de que desfruta até hoje.

A propriedade e a liberdade individuais emergiram, portanto, de uma luta travada entre um corpo de representantes do povo, que só tinha de seu a sua capacidade de trabalho, e um déspota. Onde o rei ou seu equivalente foram compelidos a depender do parlamento ou seu equivalente como fonte de alimentação da sua renda, a propriedade individual foi ganhando proteção cada vez mas sólida e a liberdade floresceu. Onde aconteceu o contrário o resultado foi o inverso.

A propriedade dos meios de produção onde esse tipo de processo histórico ocorreu não é um privilégio, ao contrário, é uma responsabilidade que atrela o seu titular ao processo de produção. Os proprietários sem proteção de “reis” são compelidos pelo mercado a voltar a sua propriedade para a melhor satisfação dos consumidores, e os que forem lentos ou ineptos nesse processo, serão penalizados por prejuízos e, se não aprenderem a lição, pela perda dessa propriedade.

“Mas é precisamente dessa escravidão que é preciso libertar o homem”, dirá um francês ou um aluno dos franceses da USP dos tempos em que ela existia como universidade. A alternativa é a privilegiatura, esse nosso feudalismo remasterizado, lembrará este escriba. Não ha terceira via…

Hernando de Soto, no seu livro clássico “O mistério do Capital: porque o capitalismo triunfou no Ociente e falhou nos outros lugares”, deixou a teoria de lado e foi a campo fazer medições do valor da obra visivel dos contingentes mais pobres das populações do Cairo, Lima, Manila, Cidade do México e Port-au-Prince (Haiti). Os resultados foram surpreendentes. No Haiti o valor dos imóveis rurais e urbanos ocupados por essa população e as construções neles existentes montaram a 5,2 bilhões de dólares em valores de 1995, quatro vezes mais que os bens de todas as empresas operando legalmente no país, nove vezes o valor de todas as propriedades do governo e 158 vezes o valor de todos os investimentos estrangeiros diretos feitos no Haiti em toda a sua história. No Peru, os 74 bilhões de dolares medidos equivaliam a cinco vezes o valor de todas as empresas com ações na bolsa de Lima, 11 vezes o de todas as empresas privatizáveis do governo peruano, 14 vezes mais que todo o investimento estrangeiro feito no país ao longo de toda a sua história. Cairo, Cidade do Mexico e Manila deram resultados ainda mais astronômicos. O livro registra uma menção ao Brasil cuja industria imoboliária passava por uma forte crise naquele momento mas as vendas de cimento batiam recordes todos os meses. O “favelão nacional”, hoje de dimensão continental, estava em plena construção…

A conclusão é que não é a disponibilidade de recursos naturais, o espírito empreendedor ou a quantidade de trabalho investido que explica a diferença da riqueza das nações, mas sim o grau de proteção da propriedade privada de que cada uma desfruta. Onde ela é garantida, a obra de cada cidadão, rico ou pobre, menor ou maior, é “capital vivo” que serve, como no caso da residência de cada cidadão nos EUA, como garantia do financiamento tomado para os seus próximos empreendimentos que, por sua vez, garantirão os desenvolvimentos seguintes. Com o tempo, desenvolve-se uma padronização de linguagem e regulamentação e todos os bens ganham uma segunda dimensão “de representação” que pode ser transacionada sem as limitações de “portabilidade” do bem físico, enquanto nos países onde essas residências são favelas erguidas em terrenos que ninguém sabe de quem são ou  serão, a mesma quantidade de esforço investido transforma-se apenas em “capital morto” cuja propriedade não está garantida nem mesmo para quem a construiu pessoalmente e, portanto, não se desdobra em fruto nenhum.

A massa miserável precisa, portanto, da garantia da propriedade para apropriar-se do resultado do seu esforço e sair da miséria. A questão é identificar a ferramenta política capaz de transferir o poder das mãos de quem aparelha a força do estado para apropriar-se do resultado do trabalho alheio para as de quem precisa da proteção do estado contra esse tipo ancestral de rapinagem. E como o nosso Poder Judiciário demonstra todos os dias com “autos de fé” contra os hereges do “sistema” ou simplesmente pela força dos seus holerites, manda no estado quem tem o poder de contratar e, principalmente, de “demitir” políticos e funcionários públicos.

§ 11 Respostas para Os proprietários da miséria nacional

  • Amaury Machado disse:

    Seu diagnóstico é perfeito, mas a monarquia hereditária instalada nas estruturas é muito forte e unida.

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  • Walter Alba disse:

    Excelente artigo de Fernão! Demonstra claramente os principios que sustentam uma democracia consistente.

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  • Olavo Leal disse:

    Fernão: mais um grande artigo, relacionando aspectos históricos que ainda – parece que cada vez mais! – orientam e delimitam nossa vida.Há necessidade de agirmos com força nas ruas e junto aos nossos “representantes”, que, certamente tudo farão para não perderem os privilégios, que mantêm às nossas custas.

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  • Alexandre disse:

    No Brasil, não temos cidadãos (na acepção estrita do termo), temos pessoas que vivem no Brasil e que votam a cada dois anos (quase sempre em pessoas despreparados ou desonestas).

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  • Herbert Silvio Augusto Pinho Halbsgut disse:

    Hoje o artigo de Fernão é mais uma aula de cidadania, um esclarecedor chamamento à consciência de todos os cidadãos indignados com a grande favela em que “nossos representantes” transformaram as instituições brasileiras. São dezenas de partidos “políticos” cada qual com seus “proprietários”, digo, capitães hereditários que dominam milhares de sinecuras construídas através de nossa historia. Esperar por um milagre, ou lutar por um milagre? O milagre nós é que faremos exigindo nas ruas as mudanças necessárias para se estabelecer o sistema político democrático de voto distrital com recall. Contar com essa transformação a partir de dentro do Congresso Nacional é que é a grande tarefa que o Povo tem sim condições de realizar. A união faz a força e precisamos agir já!

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  • A crise é generalizada porque é uma crise dos fundamentos. Perfeito!. Tenho meditado sobre isso e tenho a impressão de que se trata de uma crise maior. Trum, Bolsonaro, Brexit, etc. são indícios de que algo maior está em curso. O que foi feito no passado parece não servir mais como referência do futuro: o passado não tinha Internet. O que a Internet está gestando, ninguém sabe. Lembro da Alice na encruzilhada, indecisa sobre o caminho a tomar. Vejo Executivo, Legislativo, Universidades e Judiciário acusando-se mutuamente para esconder o desconforto. Talvez devêssemos todos, humildemente, começar por admitir que estamos perdidos, tal qual Alice na encruzilhada. Gosto quando o Presidente admite que não sabe, me dá a impressão de que ainda resta alguém lúcido. De acordo Fernão, precisamos descer aos fundamentos.

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  • Mora disse:

    Ao longo de todos os tempos absorvemos os fundamentos externos, e com isso chegamos nessa ” casa de Irene” .Talvez chegando ao fundo do poço, enxerguemos que nos falta filosofia, e o primeiro fundamento seja entender a importância do voto distrital como início. Ou é primeiro ter fundamento para entender o caminho do voto distrital?

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  • ULRICH MIELENHAUSE disse:

    Fernao ja falei que sou seu fa, por sinal o unico Mesquita que ainda merece este nobre sobrenome centenario.Cancelei a assinatura do estadinho porque nao da mais para aguentar a linha editorial. Seu artigo perfeito relara a hidtoria da nefasta heranca portuguesa que deixou aqui um Brasil onde os amigos do rei TUDO TEM e o povo luta para sobrviver.Repito o que sempre falo: o buraco acumulado de privilegios,aposentadorias criminosas e todos penduricalhos, tipo stf ter 2500 funcionarios e os desniveis salariais,NAO SE CORRIGEM NA DEMOCRACIA.
    Se nao corrigir o Brasil o pais quebra. A venezuela nos espera!!!

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  • Antonio Brigolatto Carmona Barrionuevo disse:

    Eu até agora não entendi, o porquê de o nosso povo não se interessar pelo voto distrital puro com recall. Eu faço parte de um grupo, que esta trabalhando a mais de dois anos, na divulgação do sistema, e estamos percebendo que o interesse do povo é muito pequeno em relação ao sistema. São pessoas que estão sendo roubadas dia e noite, e estão contentes com a péssima condição de vida que estão vivendo. Como é duro tentar passar uma informação para um povo que não esta nem aí para a política. O sujeito não percebe que a política vai ajuda-lo ou vai prejudica-lo.

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  • Antonio Brigolatto Carmona Barrionuevo disse:

    Complementando o meu comentário: O plano da divulgação do sistema de eleições distrital puro com recall foi planejado em dois passos, o primeiro passo é divulgar o sistema para quase 100% do povo. O segundo passo é convocar passeatas pacificas em todas as regiões do pais, para exigir dos políticos que o sistema distrital seja implantado na nossa democracia. O esforço de cada um vai gerar os frutos que esperamos com a implantação do sistema de eleições distrital puro com recall.

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