Sobre chantagem e amores bandidos

7 de maio de 2019 § 10 Comentários

Artigo para O Estado de S. Paulo de 7/5/2019

Democracia é a resposta natural que toda comunidade de iguais tende a dar aos seus problemas comuns. São muito raros na História, entretanto, os “povos sem rei”. Com exceção da Suíça que nunca teve um e criou em 1291 o modelo que viria a ser o de soberania absoluta do eleitor que hoje todo o mundo que funciona copia, essa situação só se configurou pelo isolamento em territórios distantes de súditos de monarquias europeias como os que vieram colonizar as américas. “Como sobreviver? Quem vai cuidar de construir os abrigos e fortificações? De caçar e plantar o que comer? Quem se dedicará à defesa? Quem ditará as leis? Quem se encarregará de faze-las cumprir”? Foi disso que trataram o Pacto do Mayflower e os town meetings (assembléias em praça publica) das primeiras colônias de Massachussetts. Foi para isso que evoluiu na prática, mais de 100 anos antes, o modelo das Câmaras Municipais do império português onde durante séculos comunidades isoladas nas vilas dos sertões votaram e foram votadas, em pacífica e regularíssima sucessão, para organizar os meios de prover por si mesmas todas as suas necessidades.

Desde 1808, porém, um filtro de seleção negativa instalou-se no Rio de Janeiro. E cumpriu darwinianamente o seu papel. Não era mais do feito d’armas nem da ousadia empreendedora ou do financiamento privado das Bandeiras que se poderia subir na vida. Surgira um meio mais fácil. E de lá a velha doença europeia veio arrancando o Brasil à sua americanidade. Sai Reinado entra Império, sai Império entra Republica, nunca a corrupção pelo privilégio foi tão extensamente socializada. Impossível prosperar sem compor-se com o Sistema. Quem não se deixou contaminar já morreu, senão física, com certeza econômica e politicamente. Afundou no lumpen. Está reduzido a cuidar de sobreviver até amanhã ao tiroteio…

Hoje os laços de família, e não a ideologia, é que são o maior obstáculo à mudança. Está invertida a lei antinepotismo. Nenhum brasileiro com voz ou algum grau de acesso aos centros de decisão deixa de ter pelo menos “cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive (…) investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, (…) no exercício de cargo em comissão ou de confiança, ou, ainda, de função gratificada na Administração Pública direta e indireta, em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios”, ou de deter, ele mesmo, um privilegiozinho corporativo menor que não está disposto a perder. E a conta da Previdência é onde tudo isso deságua, no ponto mais alto das remunerações por “direitos adquiridos” mediante aquele toque mágico que transporta instantaneamente pobres mortais das incertezas deste vale de lágrimas para a segurança da “estabilidade vitalícia no emprego”.

No contexto do isolamento perfeito entre o País Real e o País Oficial que atingimos em função do monopólio até da prerrogativa de pedir votos ao povo reservado aos membros dessa privilegiatura, o desafio que se apresenta ao solitário agente que os governos importam do País Real para lidar com a economia dos desprivilegiados que eles nunca viveram não é apenas o de convencer o povo do ponto de vista do presidente e seu governo mas antes o de convencer o presidente e seu governo a firmar um ponto de vista diverso daquele que formaram como agentes da privilegiatura alienada que foram até ontem. Só então, e na medida do sucesso sempre relativo dessa primeira operação, poderão partir para a tentativa de convencer os caronas e os caronas dos caronas do estado aqui fora de que não haverá escapatória ao amargo fim se transferirem o tratamento do problema para onde ele não está.

A minoria com superprivilégios – a dos donos do estado e seus funcionários – é de meros 0,5% da população. E a minoria com hiperprivilégios é uma fração dentro dessa fração. Só a cumplicidade da maioria pode, portanto, explicar a resiliência dos privilégios de parcela tão ínfima do eleitorado num país que em algum momento ainda vota.

Dois fatores elucidam esse falso mistério. O primeiro é a falta de enraizamento do País Oficial no País Real que enseja esse nosso sistema eleitoral que não permite identificação entre representados e representantes uma vez eleitos. A bordo de um partido bem aquinhoado de dinheiro “público” de campanha eles não precisam mais dos eleitores nem para se reeleger. Podem dedicar-se exclusivamente ao único jogo de soma zero, que é o do poder, no qual o Brasil é meio e não fim. Daí o espantoso na afirmação do solerte Paulinho da Força de que para derrotar Bolsonaro convém manter os 210 milhões de brasileiros semi-afogados  mais alguns anos debaixo d’água ser apenas a sinceridade com que foi feita e não o significado do que foi dito como este jornal lembrou em editorial.

Mas o segundo fator é que é o mais insidioso. Agora mesmo, no Olimpo do Judiciário, está sendo armada a cama para Rogério Marinho, o articulador da reforma. O formidável poder de chantagem e intimidação que essa minoria dentro da minoria privilegiada detém pelo controle do gatilho do acionamento (ou não) da lei é o que tem decidido as paradas. A corrupção, inerente à condição humana, é eventual. Mas a corrupção institucionalizada, aquela que nos rouba com a lei e não contra a lei, esta é sistemática e transfere todo santo dia montanhas de dinheiro das favelas para os palácios que, no entanto, podem continuar posando de virtuosos, o que a faz triplamente subversiva.

Para que possamos sair desta nossa Idade das Trevas, o Brasil inteiro terá de rever o seu amor bandido pelo pequeno privilégio. Mas o Brasil “indignado”, em especial, este terá de reconsiderar fria e racionalmente quanto do “pega ladrão” em que se deixa a toda hora embarcar é gritado para fazer ou para impedir que se faça justiça, ou o sol jamais voltará a brilhar.

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§ 10 Respostas para Sobre chantagem e amores bandidos

  • Cyro Laurenza disse:

    Que profundidade didática você atingiu contando a História do Brasil em uma coluna de certa terça feira!!!!!

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  • Fernando Geribello disse:

    Felicitações pelo artigo.
    Entretanto, está faltando um artigo sobre a aquisição pelo STF de lagostas e vinhos no importe de mais de R$ 400 mil, em nosso querido Brasil, onde a metade da população NÃO tem, sequer, água, luz e esgoto.
    Fernando

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  • Adalton disse:

    O texto retrata muito bem o mal que não suportamos mais.o autor elucida todas aflições que sentimos e imposta goela abaixo.Essa é a verdadeira história da política brasileira.

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  • Renato Pires da Silva Filho disse:

    Caro dr. Bruno,
    Em relação ao seu e-mail de 03 de maio, em que nos encaminha cópia do Ofício n. 495/DIRET/GAB/DETRAN, esclarecemos que, como sempre nos manifestamos, temos TODO interesse em ajudar a FAPEC a concluir seu processo de atualização de credenciamento junto ao Denatran e Detran, em função da Resolução CONTRAN no. 730., que está em andamento desde Dezembro de 2018, porém dependendo de algumas providências complementares de parte da FAPEC, conforme inúmeros comunicados e relatórios que temos enviado, em especial a nominação da Equipe Multidisciplinar.
    Por oportuno, lembramos que a FAPEC já é entidade credenciada junto ao Denatran, e que já protocolou sua atualização perante aquele órgão, sendo que esse protocolo basta para que possa continuar prestando serviços ao DETRAN MS, como aliás fez a nova empresa lá credenciada, a IBAC/Brasil. Portanto, cabe à FAPEC, com a máxima urgência, seguir os procedimentos da Portaria 41 do DETRAN MS e reafirmar seu credenciamento junto aquele órgão, para poder continuar prestando os serviços de EAD.

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  • Antonio Brigolatto Carmona Barrionuevo disse:

    Mais uma vez fico admirado com aquilo que o senhor tem nos fornecido de informações. Quanto tempo o nosso país e nosso povo tem perdido e sofrido, nas mãos daqueles que passaram pelos poderes e estão passando. O povo, esse peregrino da ignorância e do sofrimento, ignorância e sofrimento causado por aqueles que passaram e estão passando pelos poderes da nossa esfarrapada república.

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  • Herbert Sílvio Augusto Pinho Halbsgut disse:

    “Sobre chantagens e amores bandidos” é um excelente esclarecimento a todos os eleitores brasileiros que mantém através do voto essa sinecura toda que domina nossas melhores instituições, mesmo que por ignorância induzida por maus ” políticos”. Apreciei muito o trecho em que Fernão resume: “Impossível prosperar sem compor-se com o Sistema. Quem não se deixou contaminar já morreu, senão física, com certeza econômica e politicamente. Afundam no lúmpen. Está reduzido a cuidar de sobreviver até amanhã ao tiroteio”. A solução para isso somente a mudança de “Sistema” através do voto distrital com recall, sobre o que Fernão já nos presenteou com excelentes abordagens didáticas. Pergunto: quem no Sistema atual é contra? Precisamos estar atentos para distinguir que mãos embalam o berço esplendido do nosso Congresso Nacional, onde muitos “representantes” – senadores e deputados federais – são meros fantoches de grupos de interesses nacionais e internacionais e que não tem nenhum compromisso com a Nação brasileira. Está nas mãos dos cidadãos brasileiros a força para a transformação necessária – e árdua – para um novo sistema verdadeiramente democrático: a participação na vida política atuando nos partidos políticos e em discussões através de toda a mídia da imprensa democrática e livre, dando a cara ao tapa se necessário for!

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  • marcos andrade moraes disse:

    Muito bom! O livro do Caldeira, Historia da Riqueza no Brasil, explica no detalhe. Obviamente, Bolsonaro e sua máfia tendem a piorar este cenário…
    MAM

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